terça-feira, fevereiro 28, 2006
tratado secreto do teatro # 18
# 18 – cena décima oitava
a – deve estar bastante frio lá fora. já quase não há ninguém. os marinheiros recolheram-se aos navios. os estivadores só devem vir lá para as quatro da manhã. o rio enfim deserto. as ruas enfim, quase, desertas. daqui a pouco tudo estará certo e perfeito. só o rio, só as ruas, as gentes recolhidas. a lua emanando a sua luz. um ou outro cão, um ou outro gato. daqui a nada, enfim, um silêncio aparente surgirá como uma bênção nesta espera.
b – se acabarem os cigarros vou à rua.
a – não! agora já não se sai nem entra. se saíres já não voltas. sair daquela porta implica abandonares tudo, sem retorno. estamos demasiado próximos da hora.
b – assumes o comando. muito bem, se acabarem os cigarros ficarei. sabes a história daquele escritor russo que durante a primeira revolução, ainda antes dos bolcheviques, se viu fechado em casa, sitiado, pensava que ia morrer… não me lembro do nome dele… tinha um saco com tabaco e não tinha papel de enrolar. aliás nenhum papel. tinha-o gasto todo no manuscrito de um romance. aguentou assim durante três dias. depois pensou: «se vou morrer, tenho tabaco, não tenho papel, que me interessa o romance». e fez cigarros com o manuscrito. fumou todo o romance durante aquela semana em que ali esteve preso. quando a revolta abrandou e franquearam a porta da sua casa, um amigo apareceu, muito aflito para saber se ele estava vivo. «pois estou. e escrevi um romance. nunca um romance me deu tanto prazer. fumei-o todo.»
a – vou fazer chá, queres?
b – obrigado. não quero. nem água, nem comida, nem chá.
a – então faço para mim. vou pôr água a aquecer na chapa.
b – deixa-me abraçar-te.
a – abraça-me quando quiseres. não precisas de pedir. tu é que tinhas dito que não me querias ao teu lado…
b – quero agora. assim… por trás, sentir as tuas costas no meu peito. as tuas pernas. apertar-te contra mim… continua a ser tão bom. quente…
a – sentes agora?
b – o quê?
a – este cheiro humano, a rato.
b – estou a abraçar-te…
a – pois estás, ainda bem.
b – e é nisso que pensas?
a – não.
b – então pensas em quê?
a – no chá.
a – deve estar bastante frio lá fora. já quase não há ninguém. os marinheiros recolheram-se aos navios. os estivadores só devem vir lá para as quatro da manhã. o rio enfim deserto. as ruas enfim, quase, desertas. daqui a pouco tudo estará certo e perfeito. só o rio, só as ruas, as gentes recolhidas. a lua emanando a sua luz. um ou outro cão, um ou outro gato. daqui a nada, enfim, um silêncio aparente surgirá como uma bênção nesta espera.
b – se acabarem os cigarros vou à rua.
a – não! agora já não se sai nem entra. se saíres já não voltas. sair daquela porta implica abandonares tudo, sem retorno. estamos demasiado próximos da hora.
b – assumes o comando. muito bem, se acabarem os cigarros ficarei. sabes a história daquele escritor russo que durante a primeira revolução, ainda antes dos bolcheviques, se viu fechado em casa, sitiado, pensava que ia morrer… não me lembro do nome dele… tinha um saco com tabaco e não tinha papel de enrolar. aliás nenhum papel. tinha-o gasto todo no manuscrito de um romance. aguentou assim durante três dias. depois pensou: «se vou morrer, tenho tabaco, não tenho papel, que me interessa o romance». e fez cigarros com o manuscrito. fumou todo o romance durante aquela semana em que ali esteve preso. quando a revolta abrandou e franquearam a porta da sua casa, um amigo apareceu, muito aflito para saber se ele estava vivo. «pois estou. e escrevi um romance. nunca um romance me deu tanto prazer. fumei-o todo.»
a – vou fazer chá, queres?
b – obrigado. não quero. nem água, nem comida, nem chá.
a – então faço para mim. vou pôr água a aquecer na chapa.
b – deixa-me abraçar-te.
a – abraça-me quando quiseres. não precisas de pedir. tu é que tinhas dito que não me querias ao teu lado…
b – quero agora. assim… por trás, sentir as tuas costas no meu peito. as tuas pernas. apertar-te contra mim… continua a ser tão bom. quente…
a – sentes agora?
b – o quê?
a – este cheiro humano, a rato.
b – estou a abraçar-te…
a – pois estás, ainda bem.
b – e é nisso que pensas?
a – não.
b – então pensas em quê?
a – no chá.
segunda-feira, fevereiro 27, 2006
tratado secreto do teatro # 17
# 17 – cena décima sétima
b – temos de parar com isto. este confessionário não nos está a levar a lado nenhum. já estou naquele estado em que percebo tudo mas não entendo nada. já faltam poucas horas, se vamos ter de fazer as coisas nós, e assim vai ser, precisamos de energia, de alguma, da que resta. no estado em que estamos, nada pode ser pior que não conseguir levar isto até ao fim. daqui a pouco o sol nasce. já não aguento estes monólogos. estas… sei lá o que é isto. já não te consigo ter aqui ao lado, nem estar aqui sentado, nem levantado, aliás. ou avançamos agora ou…
a – … ou nada. ainda não é o momento. ainda temos de esperar. há coisas que não se podem fazer nem um minuto antes nem um minuto depois.
b – onde está a espada?
a – dentro da mala de chapéus cor-de-rosa, ao pé das roupas quentes que trouxemos. a espada e o cálice. envoltos num manto de veludo vermelho.
b – muito fino. coisa tão sacerdotal… «manto de veludo vermelho»… sim senhor. espada flamejante… cálice… e afinal estamos a falar de uma faca e de uma tigela. ajuda-te este misticismo, este ambiente de dicionário de símbolos?
a – ajuda-me. ajuda-me porque é verdade. é uma faca, pois, mas tem a lamina ondulada como uma chama. qual é o problema de lhe chamar flamejante? tem um punho e guardas. qual é problema de lhe chamar espada? uma tigela? é dourada, tem um pé. olha-se e é evidentemente um recipiente por onde se bebe. um cálice. o veludo protege-os, faz com que não se danifiquem. qual é o problema de tudo isto? que problema tens tu com as palavras? com os termos que uso? é evidente que o que vamos fazer e a forma como o vamos fazer é um acto sacerdotal. se tu conseguisses não estar sempre a agarrar-te às palavras. assim permites que elas te amarrem e dominem. torna-te ainda mais cativo do que já és.
b – mais cativo? – também é um belo termo, muito mais poético que preso –, mais «ca-ti-vo» não posso estar, queridinha. e as palavras tem poder. nem eu me prendo às palavras nem elas a mim. as palavras são sons, vibrações, agem sobre nós. não são inócuas. nem mesmo quando querem ser. não há nada mais poderoso que o som e a vibração das palavras.
a – bem! e eu é que sou a do ambiente místico.
b – que merda de conversa. ainda queres esperar. queres receber indicações lá do teu cavaleiro homem ou mulher, ou masculino ou violeta. queres esperar pela luz cor de laranja, pelo toque do gongo, pela estrela de belém, pelos reis magos. então esperemos. fazemos como tu queres. mas por mim ia buscar a «fa-ca» e a «ti-ge-la» e acabava já com este arrasto.
a – não! tu és livre. tu fazes-te «pre-so», mas és completamente livre. podes sair daqui no exacto momento em que o decidires. a única coisa que te «ca-ti-va» és tu. talvez seja mesmo o poder das palavras que te mantêm preso aqui ou em qualquer outro lado. mas não te iludas, se alguma coisa, nos farrapos de consciência que ainda tens, te diz que este «sacerdotismo» deve ser levado a termo, é porque sentes que assim tem de ser. até já tentaste dar razões e argumentos para aqui te manteres. não é esse amor que vive em ti e te domina que queres exorcizar? não é o limbo que queres abandonar? não foi este o único meio que, no fundo, encontraste para o conseguires? não é esta a tua derradeira tentativa para deixar de habitar esse estado entre vida e não-vida? não me lixes com ironias e considerações sobre as palavras. não há diferença nenhuma entre nós. estamos aqui em pleno pé de igualdade. o que te assusta é que sabes isso tão bem como eu. §
§ b – ainda há cigarros?
b – temos de parar com isto. este confessionário não nos está a levar a lado nenhum. já estou naquele estado em que percebo tudo mas não entendo nada. já faltam poucas horas, se vamos ter de fazer as coisas nós, e assim vai ser, precisamos de energia, de alguma, da que resta. no estado em que estamos, nada pode ser pior que não conseguir levar isto até ao fim. daqui a pouco o sol nasce. já não aguento estes monólogos. estas… sei lá o que é isto. já não te consigo ter aqui ao lado, nem estar aqui sentado, nem levantado, aliás. ou avançamos agora ou…
a – … ou nada. ainda não é o momento. ainda temos de esperar. há coisas que não se podem fazer nem um minuto antes nem um minuto depois.
b – onde está a espada?
a – dentro da mala de chapéus cor-de-rosa, ao pé das roupas quentes que trouxemos. a espada e o cálice. envoltos num manto de veludo vermelho.
b – muito fino. coisa tão sacerdotal… «manto de veludo vermelho»… sim senhor. espada flamejante… cálice… e afinal estamos a falar de uma faca e de uma tigela. ajuda-te este misticismo, este ambiente de dicionário de símbolos?
a – ajuda-me. ajuda-me porque é verdade. é uma faca, pois, mas tem a lamina ondulada como uma chama. qual é o problema de lhe chamar flamejante? tem um punho e guardas. qual é problema de lhe chamar espada? uma tigela? é dourada, tem um pé. olha-se e é evidentemente um recipiente por onde se bebe. um cálice. o veludo protege-os, faz com que não se danifiquem. qual é o problema de tudo isto? que problema tens tu com as palavras? com os termos que uso? é evidente que o que vamos fazer e a forma como o vamos fazer é um acto sacerdotal. se tu conseguisses não estar sempre a agarrar-te às palavras. assim permites que elas te amarrem e dominem. torna-te ainda mais cativo do que já és.
b – mais cativo? – também é um belo termo, muito mais poético que preso –, mais «ca-ti-vo» não posso estar, queridinha. e as palavras tem poder. nem eu me prendo às palavras nem elas a mim. as palavras são sons, vibrações, agem sobre nós. não são inócuas. nem mesmo quando querem ser. não há nada mais poderoso que o som e a vibração das palavras.
a – bem! e eu é que sou a do ambiente místico.
b – que merda de conversa. ainda queres esperar. queres receber indicações lá do teu cavaleiro homem ou mulher, ou masculino ou violeta. queres esperar pela luz cor de laranja, pelo toque do gongo, pela estrela de belém, pelos reis magos. então esperemos. fazemos como tu queres. mas por mim ia buscar a «fa-ca» e a «ti-ge-la» e acabava já com este arrasto.
a – não! tu és livre. tu fazes-te «pre-so», mas és completamente livre. podes sair daqui no exacto momento em que o decidires. a única coisa que te «ca-ti-va» és tu. talvez seja mesmo o poder das palavras que te mantêm preso aqui ou em qualquer outro lado. mas não te iludas, se alguma coisa, nos farrapos de consciência que ainda tens, te diz que este «sacerdotismo» deve ser levado a termo, é porque sentes que assim tem de ser. até já tentaste dar razões e argumentos para aqui te manteres. não é esse amor que vive em ti e te domina que queres exorcizar? não é o limbo que queres abandonar? não foi este o único meio que, no fundo, encontraste para o conseguires? não é esta a tua derradeira tentativa para deixar de habitar esse estado entre vida e não-vida? não me lixes com ironias e considerações sobre as palavras. não há diferença nenhuma entre nós. estamos aqui em pleno pé de igualdade. o que te assusta é que sabes isso tão bem como eu. §
§ b – ainda há cigarros?
domingo, fevereiro 26, 2006
tratado secreto do teatro # 16
# 16 – décima sexta cena
a – tenho de me sentar. deixa-me ficar aqui ao pé de ti. §
§ é bom voltar a sentir-te perto. §
§ … é verdade que tenho vermes a circular nas veias e ínfimas partículas de um mal irremediável no cérebro. e acredita, eu sei que tu me vês para além da pele. se há pouco disse aquilo foi porque… porque tenho vermes a circular nas veias e ínfimas partículas de um mal irremediável no cérebro. §
§ ouve-me com atenção. não te falei desta – vou chamar-lhe outra vez: «entidade», não te deixes prender pelos termos que uso – não te falei dela por acaso. é algo, alguém, que conheço bem e que me conhece bem. faz parte da minha história e é o fundamento de tudo o que durante este dia se passou e se irá passar. actualmente, ela, a «entidade», consegue assumir muitas formas. pode manifestar-se como luz, como matéria, som… conheço este «algo-alguém» há muito tempo, ainda era um ser comum. tão comum como se um cão comum com forma de gente. como nós. eu não habito nenhum plano de entendimento especial ou diferente do teu. «ela» aparece-me, às vezes fala-me, simplesmente porque a conheço, ou melhor, porque ela sabe que eu sou capaz de a reconhecer.
b – e está viva ou morta?
a – não sei meu querido. e que interessa isso. tu dizes que estás no limbo. são belas palavras, soão bem, mas não são nada, mesmo com as tuas maravilhosas explicações… desculpa, prometemos que não iríamos comentar as confissões um do outro…
b – confis…
a – … por favor não te estejas sempre a agarrar às palavras, deixa-me prosseguir. não te vou, explicar quem é esta «entidade». sei que se o fizesse tu entenderias, mas eu não consigo, não sei. só te quero contar uma coisa. do tempo em que a… bem, dá-lhe tu um nome, era um ser comum e em mim havia uma correspondência exacta entre a minha aparência e o que está para dentro dela. §
§ quando a conheci, tinha a forma de uma rapariga. hoje é raro não assumir uma forma masculina quando se manifesta, mesmo quando só se faz sentir em energia é um sinal masculino que se sente. vi-a num café aqui mesmo ao lado. no café onde durante estes anos que aqui vivemos fomos todos os dias, todas as manhãs, todas as noites. o «nosso café» como tu lhe chamas. foi por isso que quis tanto vir para este bairro… lembras-te quando vimos esta casa, a janela, a emoção que sentimos?… enfim, foi em abril, ou maio, em abril em maio, um dia de muito sol e de muita chuva. o café estava cheio dos «teus» marinheiros e estivadores, não havia mesas livres e tu sabes como eu detesto comer ao balcão – nessa altura o balcão estava do outro lado e ainda não tinham forrado as paredes com aqueles azulejos horríveis… –, o que é que interessam a merda do balcão e dos azulejos… ela estava numa mesa sozinha, apercebeu-se que eu me ia embora por não ter lugar sentado e ofereceu-me a cadeira à sua frente. tinha um rosto de uma banalidade comovente. não havia naquele ser uma coisa, por pequena que fosse, que se destacasse dos triliões de seres com que nos cruzamos todos os dias na rua e não distinguimos uns dos outros. e isso era um encanto. fumava uns cigarros sem filtro que partia ao meio antes de os acender: «estou a tentar deixar de fumar». a voz tremia-lhe um bocadinho. quando chegou o meu galão e o bolo, a empregada, a marília, a mesma marília que ainda lá está, deixou escorregar a faca que ao cair raspou ao de leve a mão dela, não a magoou muito mas foi o suficiente para que uma gota de sangue se tornasse num fino traço escarlate a desenhar-lhe espirais pelos dedos. a marília ficou muito aflita, meia gaga a desculpar-se, foi a correr buscar algodão e mais não quê e eu, e eu, eu senti um impulso descontrolado de lhe lamber a mão e beber o sangue, engolir aquele desenho. quando dei por mim ali estava, com a mão dela na minha e a minha boca a sorver, a sarar aquela pequena ferida. a empregada chegou, viu aquilo e ficou paralisada, deve ter pensado que nos conhecíamos, depois lá se desparalisou com um risinhos nervosos e tentou prosseguir com a sua tarefa de enfermagem. mas ela, a comum, a banal, a igual aos triliões de iguais que se cruzam connosco todos os dias na rua, não deixou: «não é preciso, já estão a tratar de mim» e manteve a mão imóvel na minha. quando acabei, senti uma vergonha imensa. tive tanto medo de levantar a cabeça e enfrentar o olhar dela. medo que me fosse pedida uma explicação. mas tive coragem. muita coragem. a coragem verdadeira é nestas coisas que se prova. essa é que essa, nas grandes tragédias, é só acção, é não termos, alternativa, é brutalidade.
b – também se pode fugir.
a – pois, a fuga, e não é a mesma coisa ?... tive muita coragem…
b – tu tens sempre muita coragem…
a – … ouve por favor… pronto, levantei a cabeça e olhei-a. dentro dos olhos, enquanto lhe largava a mão. ela só agradeceu, pegou num meio cigarro e: «sabe, estou a tentar deixar de fumar». ficámos as duas a brilhar. a brilhar! o sabor daquele sangue na minha boca foi um elixir mágico. já não fui capaz de comer nem de dizer mais uma palavra. sorri, levantei-me, fui a correr pagar. saí. quando dei por mim já estava junto ao rio sem sequer ter notado o caminho. completamente impregnada por aquele sabor que envés de se desvanecer com o tempo se tornava cada vez mais intenso. tão intenso que passou a ser o sabor da minha saliva. ninguém mais sente. mas aquele sangue mantém-se vivo e fresco na minha boca. para mim ficou absolutamente claro que voltaria a encontrar aquela mulher. enganei-me. como mulher, como ser comum, como naquele dia, nunca mais. há pouco tempo, tinha acabado de tomar banho, o sabor do sangue tornou-se de tal maneira forte que nem conseguia contê-lo, escorria-me aquele sabor, novamente como um traço escarlate pelos lábios. depois a luz ficou cor de laranja, e no centro, dentro de um violeta carregado, vi um homem… não sei se um homem, qualquer coisa de masculino, androceu violeta com o rosto tapado. soube que era ela. soube sem uma dúvida. tinha voltado. como um cavaleiro de cor e beleza para me conduzir, até aqui. a este momento. esta «presença», ou como tu lhe queiras chamar, é minha única fonte de força. não tens de acreditar em mim. nem eu tenho essa intenção. só queria que soubesses isto porque independentemente do sentido que tudo isto faça para ti, tens de saber que eu não estou aqui sozinha contigo, nem ajo sozinha perante ti. nem nunca estive sozinha contigo. conta com essa verdade de mim. §
§ querido.
a – tenho de me sentar. deixa-me ficar aqui ao pé de ti. §
§ é bom voltar a sentir-te perto. §
§ … é verdade que tenho vermes a circular nas veias e ínfimas partículas de um mal irremediável no cérebro. e acredita, eu sei que tu me vês para além da pele. se há pouco disse aquilo foi porque… porque tenho vermes a circular nas veias e ínfimas partículas de um mal irremediável no cérebro. §
§ ouve-me com atenção. não te falei desta – vou chamar-lhe outra vez: «entidade», não te deixes prender pelos termos que uso – não te falei dela por acaso. é algo, alguém, que conheço bem e que me conhece bem. faz parte da minha história e é o fundamento de tudo o que durante este dia se passou e se irá passar. actualmente, ela, a «entidade», consegue assumir muitas formas. pode manifestar-se como luz, como matéria, som… conheço este «algo-alguém» há muito tempo, ainda era um ser comum. tão comum como se um cão comum com forma de gente. como nós. eu não habito nenhum plano de entendimento especial ou diferente do teu. «ela» aparece-me, às vezes fala-me, simplesmente porque a conheço, ou melhor, porque ela sabe que eu sou capaz de a reconhecer.
b – e está viva ou morta?
a – não sei meu querido. e que interessa isso. tu dizes que estás no limbo. são belas palavras, soão bem, mas não são nada, mesmo com as tuas maravilhosas explicações… desculpa, prometemos que não iríamos comentar as confissões um do outro…
b – confis…
a – … por favor não te estejas sempre a agarrar às palavras, deixa-me prosseguir. não te vou, explicar quem é esta «entidade». sei que se o fizesse tu entenderias, mas eu não consigo, não sei. só te quero contar uma coisa. do tempo em que a… bem, dá-lhe tu um nome, era um ser comum e em mim havia uma correspondência exacta entre a minha aparência e o que está para dentro dela. §
§ quando a conheci, tinha a forma de uma rapariga. hoje é raro não assumir uma forma masculina quando se manifesta, mesmo quando só se faz sentir em energia é um sinal masculino que se sente. vi-a num café aqui mesmo ao lado. no café onde durante estes anos que aqui vivemos fomos todos os dias, todas as manhãs, todas as noites. o «nosso café» como tu lhe chamas. foi por isso que quis tanto vir para este bairro… lembras-te quando vimos esta casa, a janela, a emoção que sentimos?… enfim, foi em abril, ou maio, em abril em maio, um dia de muito sol e de muita chuva. o café estava cheio dos «teus» marinheiros e estivadores, não havia mesas livres e tu sabes como eu detesto comer ao balcão – nessa altura o balcão estava do outro lado e ainda não tinham forrado as paredes com aqueles azulejos horríveis… –, o que é que interessam a merda do balcão e dos azulejos… ela estava numa mesa sozinha, apercebeu-se que eu me ia embora por não ter lugar sentado e ofereceu-me a cadeira à sua frente. tinha um rosto de uma banalidade comovente. não havia naquele ser uma coisa, por pequena que fosse, que se destacasse dos triliões de seres com que nos cruzamos todos os dias na rua e não distinguimos uns dos outros. e isso era um encanto. fumava uns cigarros sem filtro que partia ao meio antes de os acender: «estou a tentar deixar de fumar». a voz tremia-lhe um bocadinho. quando chegou o meu galão e o bolo, a empregada, a marília, a mesma marília que ainda lá está, deixou escorregar a faca que ao cair raspou ao de leve a mão dela, não a magoou muito mas foi o suficiente para que uma gota de sangue se tornasse num fino traço escarlate a desenhar-lhe espirais pelos dedos. a marília ficou muito aflita, meia gaga a desculpar-se, foi a correr buscar algodão e mais não quê e eu, e eu, eu senti um impulso descontrolado de lhe lamber a mão e beber o sangue, engolir aquele desenho. quando dei por mim ali estava, com a mão dela na minha e a minha boca a sorver, a sarar aquela pequena ferida. a empregada chegou, viu aquilo e ficou paralisada, deve ter pensado que nos conhecíamos, depois lá se desparalisou com um risinhos nervosos e tentou prosseguir com a sua tarefa de enfermagem. mas ela, a comum, a banal, a igual aos triliões de iguais que se cruzam connosco todos os dias na rua, não deixou: «não é preciso, já estão a tratar de mim» e manteve a mão imóvel na minha. quando acabei, senti uma vergonha imensa. tive tanto medo de levantar a cabeça e enfrentar o olhar dela. medo que me fosse pedida uma explicação. mas tive coragem. muita coragem. a coragem verdadeira é nestas coisas que se prova. essa é que essa, nas grandes tragédias, é só acção, é não termos, alternativa, é brutalidade.
b – também se pode fugir.
a – pois, a fuga, e não é a mesma coisa ?... tive muita coragem…
b – tu tens sempre muita coragem…
a – … ouve por favor… pronto, levantei a cabeça e olhei-a. dentro dos olhos, enquanto lhe largava a mão. ela só agradeceu, pegou num meio cigarro e: «sabe, estou a tentar deixar de fumar». ficámos as duas a brilhar. a brilhar! o sabor daquele sangue na minha boca foi um elixir mágico. já não fui capaz de comer nem de dizer mais uma palavra. sorri, levantei-me, fui a correr pagar. saí. quando dei por mim já estava junto ao rio sem sequer ter notado o caminho. completamente impregnada por aquele sabor que envés de se desvanecer com o tempo se tornava cada vez mais intenso. tão intenso que passou a ser o sabor da minha saliva. ninguém mais sente. mas aquele sangue mantém-se vivo e fresco na minha boca. para mim ficou absolutamente claro que voltaria a encontrar aquela mulher. enganei-me. como mulher, como ser comum, como naquele dia, nunca mais. há pouco tempo, tinha acabado de tomar banho, o sabor do sangue tornou-se de tal maneira forte que nem conseguia contê-lo, escorria-me aquele sabor, novamente como um traço escarlate pelos lábios. depois a luz ficou cor de laranja, e no centro, dentro de um violeta carregado, vi um homem… não sei se um homem, qualquer coisa de masculino, androceu violeta com o rosto tapado. soube que era ela. soube sem uma dúvida. tinha voltado. como um cavaleiro de cor e beleza para me conduzir, até aqui. a este momento. esta «presença», ou como tu lhe queiras chamar, é minha única fonte de força. não tens de acreditar em mim. nem eu tenho essa intenção. só queria que soubesses isto porque independentemente do sentido que tudo isto faça para ti, tens de saber que eu não estou aqui sozinha contigo, nem ajo sozinha perante ti. nem nunca estive sozinha contigo. conta com essa verdade de mim. §
§ querido.
sábado, fevereiro 25, 2006
tratado secreto do teatro # 15
# 15 – décima quinta cena
b – pensei que iria ver este rio… viver este rio, por muitos mais anos. antes daqui vivermos nunca tinha estado perto de navios, navios verdadeiros, navios carregados de suor e trabalho. de sal. sal marinho e sal do corpo: nó cego de sangue e sirenes. marinheiros e estivadores cantando de esforço, músculos destruídos pelo cansaço de anos e anos de combate desigual contra esse gigante de poder, que se renova a cada instante, sem trégua: o mar-vento que lhes fenda os rostos. alguma vez viste as mãos destes homens? parecem rudes e brutais, cruéis até. mas seriam capazes de pegar numa pena como se beijassem o bico de um pássaro em pleno voo. pegariam numa pena com a mesma destreza e a mesma emoção com que uma mãe abraça um filho acabado de renascer. e também podem ser duras, e implacáveis. para eles matar ou beijar tem o mesmo sinal de amor… se beijam é amor, se matam é roma. o gesto é inverso mas a humanidade é a mesma. se lhes pedes que te batam, eles batem-te com a força das mais arrebatadoras tempestades. sem hesitar. sem medo de te magoar. sem pena de te magoar. se lhes pedes para te acariciarem, acariciam-te, sem medo de que te desfaças com tamanha doçura. quer o teu corpo sangre de espancamento ou se liquefaça em seivas, o que sentes é sempre gratidão, uma imensa gratidão, por uma entrega tão total e bela e completa. eles ouvem os teus pedidos e cumprem o que pedes sem qualquer pedido de retorno, eles nunca querem nada de ti. são seres para quem só a solidão conta e basta. a única coisa que precisam é de solidão e só a solidão desfeita pode matar um marinheiro ou um estivador. §
§ muitas vezes, deitados aqui, ouvia as sirenes dos petroleiros e enquanto fazíamos amor imaginava que as tuas mãos eram as deles. via o teu corpo como um marinheiro, imaginava-me sujeito à vontade descontrolada daqueles homens. eu sei que tu percebias porque correspondias sempre, sabiamente, sem dizermos uma palavra. nunca falámos quando fazíamos amor. tudo se passou sempre de pensamento para pensamento, de desejo para desejo. e sentia as sirenes entrarem em mim através das teu olhar. tinha o corpo aberto. disponível. nunca fiz amor só contigo. sempre que nos deitávamos, milhares de seres, visíveis e invisíveis, estavam connosco. presentes no corpo, ou na mente, ou no sangue, no sémen. sempre nos olhos. §
§ nessa altura os teus olhos não estavam nem foscos nem vidrados como me disseste esta manhã que estavam e eu sei que estão. eu vejo-te para lá da tua aparente juventude, do teu aspecto são, rosado e cuidado. eu sei ver a podridão debaixo dessa fina camada protectora. apesar de não saberes, a tua pele é demasiado transparente. até as bactérias e os microscópicos vermes que te estão a consumir navegando nas veias eu vejo. §
§ nessa altura os teus olhos eram límpidos e directos. agiam sobre mim, dentro de mim, como varas que me penetravam. enquanto aqui estivemos fomos o rio, os navios e os marinheiros. fomos as sirenes cantantes e os gritos dos estivadores acartando contentores. bebemos o sal do suor daqueles homens e tivemos a força de arrasto daqueles navios. o poder das amarras. fomos um cais imenso de onde atracámos e partimos até estarmos corroídos por esta metástase diabólica que não nos permite nada, nem atracar nem partir. §§
§§ tens razão. foi uma sorte as máquinas não terem vindo. é uma sorte termos de agir pelas nossas mãos. com a espada de fogo. e o cálice.
b – pensei que iria ver este rio… viver este rio, por muitos mais anos. antes daqui vivermos nunca tinha estado perto de navios, navios verdadeiros, navios carregados de suor e trabalho. de sal. sal marinho e sal do corpo: nó cego de sangue e sirenes. marinheiros e estivadores cantando de esforço, músculos destruídos pelo cansaço de anos e anos de combate desigual contra esse gigante de poder, que se renova a cada instante, sem trégua: o mar-vento que lhes fenda os rostos. alguma vez viste as mãos destes homens? parecem rudes e brutais, cruéis até. mas seriam capazes de pegar numa pena como se beijassem o bico de um pássaro em pleno voo. pegariam numa pena com a mesma destreza e a mesma emoção com que uma mãe abraça um filho acabado de renascer. e também podem ser duras, e implacáveis. para eles matar ou beijar tem o mesmo sinal de amor… se beijam é amor, se matam é roma. o gesto é inverso mas a humanidade é a mesma. se lhes pedes que te batam, eles batem-te com a força das mais arrebatadoras tempestades. sem hesitar. sem medo de te magoar. sem pena de te magoar. se lhes pedes para te acariciarem, acariciam-te, sem medo de que te desfaças com tamanha doçura. quer o teu corpo sangre de espancamento ou se liquefaça em seivas, o que sentes é sempre gratidão, uma imensa gratidão, por uma entrega tão total e bela e completa. eles ouvem os teus pedidos e cumprem o que pedes sem qualquer pedido de retorno, eles nunca querem nada de ti. são seres para quem só a solidão conta e basta. a única coisa que precisam é de solidão e só a solidão desfeita pode matar um marinheiro ou um estivador. §
§ muitas vezes, deitados aqui, ouvia as sirenes dos petroleiros e enquanto fazíamos amor imaginava que as tuas mãos eram as deles. via o teu corpo como um marinheiro, imaginava-me sujeito à vontade descontrolada daqueles homens. eu sei que tu percebias porque correspondias sempre, sabiamente, sem dizermos uma palavra. nunca falámos quando fazíamos amor. tudo se passou sempre de pensamento para pensamento, de desejo para desejo. e sentia as sirenes entrarem em mim através das teu olhar. tinha o corpo aberto. disponível. nunca fiz amor só contigo. sempre que nos deitávamos, milhares de seres, visíveis e invisíveis, estavam connosco. presentes no corpo, ou na mente, ou no sangue, no sémen. sempre nos olhos. §
§ nessa altura os teus olhos não estavam nem foscos nem vidrados como me disseste esta manhã que estavam e eu sei que estão. eu vejo-te para lá da tua aparente juventude, do teu aspecto são, rosado e cuidado. eu sei ver a podridão debaixo dessa fina camada protectora. apesar de não saberes, a tua pele é demasiado transparente. até as bactérias e os microscópicos vermes que te estão a consumir navegando nas veias eu vejo. §
§ nessa altura os teus olhos eram límpidos e directos. agiam sobre mim, dentro de mim, como varas que me penetravam. enquanto aqui estivemos fomos o rio, os navios e os marinheiros. fomos as sirenes cantantes e os gritos dos estivadores acartando contentores. bebemos o sal do suor daqueles homens e tivemos a força de arrasto daqueles navios. o poder das amarras. fomos um cais imenso de onde atracámos e partimos até estarmos corroídos por esta metástase diabólica que não nos permite nada, nem atracar nem partir. §§
§§ tens razão. foi uma sorte as máquinas não terem vindo. é uma sorte termos de agir pelas nossas mãos. com a espada de fogo. e o cálice.
sexta-feira, fevereiro 24, 2006
tratado secreto do teatro # 14
# 14 – décima quarta cena
a – … poucos têm vida. menos ainda morte. eu não espero a morte… esperança da morte… é tudo ao contrário… olha as minhas mãos, vê como estão incapazes. VÊ! estou incapaz! as minhas mãos foram ferramentas de uma força sem limites. quando escrevia, mais que ser feliz, era capaz… tu não percebes. há anos que nos olhamos e observamos e tu concluis e concluis e concluis… mas pouco entendes. eu já tive nas mãos o tremor da grande concepção, o tambor da ruidosa marca da concepção e do nascimento. e perdi o fluxo da criação. transformei-me em criatura. ignóbil. inútil. e isso provocou-me um fascínio irresistível. um deslumbramento a que não fui capaz de resistir. estar perante ti, alguém que sabia – estas coisas sentem-se na pele – ter o poder de me secar a alma. é a mais irresistível das tentações. assim que te vi quis medir forças contigo. nos olhares, nas palavras, no sexo, nas horas passadas neste quarto. eu sabia que iria perder, és demasiado poderoso na tua malignidade. ou doença. eu sei que não ages com motivação. nada em ti se movimenta com uma direcção consciente e determinada, isso ainda faz o teu poder de destruição mais forte. mais corrosivo e implacável. eu vi. soube. deslumbrei-me. cedi. perdi. §
§ e no entanto… a liberdade move-se. em direcção a mim. a nós. como um comboio sem condutor. hoje será o dia do advento, do combate. tudo ou nada. e digo-te, fico feliz com o facto das máquinas não terem aparecido e o prédio não ir ser demolido hoje. muito feliz, muito, por ser nas nossas mãos que ficou a espada flamejante com que iremos cortar o cordão umbilical do nosso desastre interior. a liberdade move-se. em direcção a nós. deixaremos de ser dois corvos sob uma chuva ácida.
a – … poucos têm vida. menos ainda morte. eu não espero a morte… esperança da morte… é tudo ao contrário… olha as minhas mãos, vê como estão incapazes. VÊ! estou incapaz! as minhas mãos foram ferramentas de uma força sem limites. quando escrevia, mais que ser feliz, era capaz… tu não percebes. há anos que nos olhamos e observamos e tu concluis e concluis e concluis… mas pouco entendes. eu já tive nas mãos o tremor da grande concepção, o tambor da ruidosa marca da concepção e do nascimento. e perdi o fluxo da criação. transformei-me em criatura. ignóbil. inútil. e isso provocou-me um fascínio irresistível. um deslumbramento a que não fui capaz de resistir. estar perante ti, alguém que sabia – estas coisas sentem-se na pele – ter o poder de me secar a alma. é a mais irresistível das tentações. assim que te vi quis medir forças contigo. nos olhares, nas palavras, no sexo, nas horas passadas neste quarto. eu sabia que iria perder, és demasiado poderoso na tua malignidade. ou doença. eu sei que não ages com motivação. nada em ti se movimenta com uma direcção consciente e determinada, isso ainda faz o teu poder de destruição mais forte. mais corrosivo e implacável. eu vi. soube. deslumbrei-me. cedi. perdi. §
§ e no entanto… a liberdade move-se. em direcção a mim. a nós. como um comboio sem condutor. hoje será o dia do advento, do combate. tudo ou nada. e digo-te, fico feliz com o facto das máquinas não terem aparecido e o prédio não ir ser demolido hoje. muito feliz, muito, por ser nas nossas mãos que ficou a espada flamejante com que iremos cortar o cordão umbilical do nosso desastre interior. a liberdade move-se. em direcção a nós. deixaremos de ser dois corvos sob uma chuva ácida.
quarta-feira, fevereiro 22, 2006
tratado secreto do teatro # 13
# 13 – décima terceira cena
b – só amo uma pessoa… houve uma altura em que julguei… uma altura… não foi muito tempo… uma altura em que amei… deixei de ser eu… não é verdade. não amo só uma pessoa. foi maneira de dizer. eu também te amo e é por isso que aqui estamos a viver este suplício, este cheiro fétido em que nos tornámos. §
talvez… §
§ …talvez seja melhor dizer as coisas de outra maneira. amo um ser como se fosse desde sempre e para sempre. por quem não hesitaria um segundo em dar a vida, se tivesse vida. todos os dias me deito a recitar mentalmente o seu nome, durmo a recitar mentalmente o seu nome, acordo a recitar mentalmente o seu nome… na verdade, eu dei-lhe a vida. há um ser a quem doei a minha vida, percebes. eu não tenho vida porque dei a minha vida a uma pessoa e essa pessoa não a guardou… é o limbo. o limbo existe. eu experimento-o todos os dias. há a vida, há a não-vida e há o limbo. quando me conheceste eu já não era vivo, nem não-vivo. era o que sou hoje, um habitante do limbo. por isso permiti-te tudo. até a tortura de ter de voltar a dizer «amo-te» a alguém, mesmo não estando a mentir, o que faz a tortura ainda maior… já tive a esperança da morte. uma morte verdadeira. e vivi-a. já senti aquilo que tu estás a sentir agora, essa crença – o acto de fé, de que falavas há bocado – eu já tive essa convicção, essa fé. o que tu queres experimentar hoje, já eu vivi antes, e sei que apenas resulta em mais limbo, mais tortura, mais amor desfeito. §§§
§… quer dizer, não sei, não tenho a certeza… já não tenho a certeza daquilo que pensas e fazes e queres. talvez aquilo porque passei, a morte de que tive esperança nunca se tenha consumado realmente e seja por isso que nunca deixei este limbo. talvez seja mesmo verdade que tu te moves num plano de sabedoria que eu nunca atingi. talvez aquilo que planeaste para hoje seja mesmo a verdadeira expressão da salvação. é irrelevante, seja ou não seja, tenho consciência de que chegamos a um ponto sem retorno e de que teremos de cumprir esta «tarefa» – posso chamar-lhe assim? – mas devo confessar-te que a única coisa que realmente me mantém neste lugar de crucificação é ainda acreditar que me posso libertar da orla de vulcão em que resido. disse-te e senti amor por ti em consequência do vácuo que sinto que sou.
b – só amo uma pessoa… houve uma altura em que julguei… uma altura… não foi muito tempo… uma altura em que amei… deixei de ser eu… não é verdade. não amo só uma pessoa. foi maneira de dizer. eu também te amo e é por isso que aqui estamos a viver este suplício, este cheiro fétido em que nos tornámos. §
talvez… §
§ …talvez seja melhor dizer as coisas de outra maneira. amo um ser como se fosse desde sempre e para sempre. por quem não hesitaria um segundo em dar a vida, se tivesse vida. todos os dias me deito a recitar mentalmente o seu nome, durmo a recitar mentalmente o seu nome, acordo a recitar mentalmente o seu nome… na verdade, eu dei-lhe a vida. há um ser a quem doei a minha vida, percebes. eu não tenho vida porque dei a minha vida a uma pessoa e essa pessoa não a guardou… é o limbo. o limbo existe. eu experimento-o todos os dias. há a vida, há a não-vida e há o limbo. quando me conheceste eu já não era vivo, nem não-vivo. era o que sou hoje, um habitante do limbo. por isso permiti-te tudo. até a tortura de ter de voltar a dizer «amo-te» a alguém, mesmo não estando a mentir, o que faz a tortura ainda maior… já tive a esperança da morte. uma morte verdadeira. e vivi-a. já senti aquilo que tu estás a sentir agora, essa crença – o acto de fé, de que falavas há bocado – eu já tive essa convicção, essa fé. o que tu queres experimentar hoje, já eu vivi antes, e sei que apenas resulta em mais limbo, mais tortura, mais amor desfeito. §§§
§… quer dizer, não sei, não tenho a certeza… já não tenho a certeza daquilo que pensas e fazes e queres. talvez aquilo porque passei, a morte de que tive esperança nunca se tenha consumado realmente e seja por isso que nunca deixei este limbo. talvez seja mesmo verdade que tu te moves num plano de sabedoria que eu nunca atingi. talvez aquilo que planeaste para hoje seja mesmo a verdadeira expressão da salvação. é irrelevante, seja ou não seja, tenho consciência de que chegamos a um ponto sem retorno e de que teremos de cumprir esta «tarefa» – posso chamar-lhe assim? – mas devo confessar-te que a única coisa que realmente me mantém neste lugar de crucificação é ainda acreditar que me posso libertar da orla de vulcão em que resido. disse-te e senti amor por ti em consequência do vácuo que sinto que sou.
terça-feira, fevereiro 21, 2006
tratado secreto do teatro # 12
12 – cena décima segunda
a – prefiro estar de pé enquanto falo.
b – eu fico aqui.
a – começo eu. §
§ só quando tinha doze anos é que soube que era um ser humano. até aos doze recusava-me a sê-lo. rastejava. sentia a pele verde, escamas, patas com as pontas dos dedos achatadas, dedos de osga. trepava paredes com os movimentos rápidos das osgas. outras vezes sentia-me uma pequena barata caseira ou mesmo uma grande barata voadora. era raro estar na posição vertical. sentia-me absolutamente rastejante. sempre. réptil ou insecto. mas rastejante. era quase impossível convencerem-me de que era humana. de quando em quando encontrava seres que da minha «espécie». baratas, lagartos, cobras, salamandras e a comunicação com eles era tão perfeita, tão fluida. fui muito feliz durante aquele tempo. houve mesmo um dia em que senti nascerem plumas coloridas no meu corpo. plumas longuíssimas, vermelhas e azuis e cuspi fogo. nesse dia para além de rastejar pude voar. saí pela janela do meu quarto como um perfeito e luminoso dragão. sobrevoei o meu bairro. horas seguidas durante a madrugada. fiquei tão deslumbrada com essa possibilidade que me demorei tempo demais. não imaginas o que é o apelo das asas. há uma energia sobrenatural que nos empurra para o voo. quando ganhei coragem para voltar ao meu quarto já os meus pais lá estavam. tinha sete anos e até aos onze estive amarrada à cama com umas correntes e uns cintos de cabedal. eles teriam feito tudo para me «tratarem». só me era permitido sair da cama para ir à casa de banho ou tomar banho. ainda assim, durante esses anos, nunca abandonei a minha condição rastejante. o meu sonho réptil. se tivesse querido ter-me-ia escapado com facilidade às correntes. bastava que tivesse feito escorregar o meu corpo serpenteante. mas nunca o fiz. naquela madrugada em que saí para voar, vi o olhar de pânico e terror imenso dos meus pais. percebi que os estava a matar e eu queria-lhes muito bem. a partir dali tudo se passava exclusivamente na minha cabeça. tentava contrariar ao máximo as modificações do corpo. deixava que a enfermeira tratasse de mim sem nunca a contrariar. até os médicos começaram a achar que eu estava a progredir. e, na perspectiva deles estava. voltei a ver sorrisos na cara do meu pai. a minha mãe voltou a dormir descansada. isso também me fazia bem, apesar do sofrimento de estar ali amarrada e ter praticamente perdido o contacto com insectos e répteis. e o pior de tudo: não ter voltado a voar. ser dragão é expressão máxima da liberdade, da força, da sabedoria, do poder, da vontade de fazer bem a tudo e a todos. tive de prescindir disso, mas ganhei a consciência leve da tranquilidade dos meus pais. não disse: «ter PRATICAMENTE perdido o contacto com insectos e répteis», por acaso. houve sempre baratas pequenas ou lagartixas que me vinham visitar à cama e que eu guardava secretamente debaixo dos lençóis – tinha as mãos livres, tinha dito?, acho que não – e à noite nos meus únicos momentos de solidão podia acariciá-los, beijá-los. senti-los a andar sobre a minha cara e nas palmas das mãos. §
§ aos onze anos os médicos decidiram que as amarras já não eram necessárias, mas que deveria continuar acamada durante, pelo menos, mais um ano e continuar a ter a assistência continuada de uma acompanhante, mas, segundo eles, não havia necessidade de ser uma enfermeira. foi nessa altura que uma rapariga de dezasseis anos veio viver connosco. tinha os cabelos compridos e muito encaracolados, castanho-escuro e pele muito branca. um dia apareceu com o cabelo pintado de ruivo. parecia um anjo, uma fada. aquela rapariga tornou-se um elo entre a consciência que sempre tinha mantido de mim própria, não-humana, rastejante. consciência de ser um réptil ou um insecto. ela tratava e mim de uma maneira diferente de tudo o que tinha sentido. todos os gestos dela eram lentos e delicados. gostava que fosse ela a lavar-me, por isso fingia ser incapaz de o fazer sozinha. eram momentos mágicos, sublimes. ficávamos as duas dentro da banheira durante horas. e ela lavava-me sempre a olhar-me nos olhos. fixamente. não dizíamos uma palavra. não precisávamos de dizer uma palavra. não havia palavras para dizer. só o toque. só o despertar daquele novo e inesperado contacto sensual com um ser de uma espécie que até ali não era a minha. §
§ fui perdendo as minhas capacidades de transformação física e os sonhos foram deixando de ser centrados na minha anterior identidade. durante um tempo deixei mesmo de ter identidade. quando uma barata ou uma lagartixa vinham ter comigo à cama anda lhes sorria mas já não sentia aquela igualdade fraterna de antes. acordava sempre antes do sol nascer numa ânsia desmedida de ver aquela fada entrar pelo meu quarto. comecei a sentir coisas humanas. comecei a reparar nos primeiros cheiros, a ser sensível aos olhares das pessoas, a diferenciá-las. quando ela entrava no quarto, ainda de pijama vestido, comecei a sentir uma vontade que não sabia explicar de lhe tocar na pele. ela costumava beijar-me a testa ao mesmo tempo que me dava os bons-dias e eu comecei a corresponder-lhe. experimentei o primeiro beijo, senti os meus lábios a aquecer pela primeira vez. ela tomou conta de mim e da minha alma. deixava-me beijar-lhe o corpo, beijava-me o corpo. passava os cabelos sobre a minha pele. ao fim de um ano tinha-me tornado, definitivamente humana. §
§ até que no dia do meu aniversário ela apareceu no quarto completamente transformada. eu estava acordada há horas, como sempre, à espera que ela chegasse e me trouxesse o sol a que me tinha habituado desde o princípio. mas desta vez tinha o corpo verde raiado de um azul cerúleo. a pele coberta de umas escamas duras. tinha perdido toda a horizontalidade. rastejava como uma iguana. os olhos vermelhos. garras. saltou para a minha cama e tentou comunicar comigo. dizer-me qualquer coisa. já não era possível comunicar. §
§ no dia do meu décimo segundo aniversário, percebi que aquela fada que me tinha sido enviada, nem era fada, nem humana. era o réptil que eu tinha esperado para a minha vida durante todos aqueles anos em que estive amarrada à cama. mas eu já estava. condenada à humanidade. já não era possível fazer fosse o que fosse para retornar à minha anterior forma de existência. não sei porque não se revelou ela logo no princípio. tudo teria sido diferente. o meu amor tinha-me levado a uma respiração humanóide e tinha-me arrancado ao estado natural em que tinha nascido, para no exacto momento em que perdera toda a minha alma rastejante, ela se mostrar, como era. réptil, insecto, serpente, dragão, como eu havia sido. §
§ tratei-a como a um animal pestilento. depois de ter sentido o primeiro amor, senti a primeira raiva. o primeiro ódio e matei-a. estrangulei-a com um cinto. não sei que razões ela teve para fazer aquilo. nem lhe dei tempo para ela mo revelasse. não lhe consegui perdoar que me tivesse forçado à condição humana sendo ela como eu. sabendo ela o que eu era e o que eu sentia. ela podia ter-me salvo. nem sei se ela tinha alguma intenção escondida, alguma coisa programada. um plano. sei que tinha doze anos e que a raiva não me deixou sequer pensar. aos doze anos soube que era humana e que era capaz de matar.
a – prefiro estar de pé enquanto falo.
b – eu fico aqui.
a – começo eu. §
§ só quando tinha doze anos é que soube que era um ser humano. até aos doze recusava-me a sê-lo. rastejava. sentia a pele verde, escamas, patas com as pontas dos dedos achatadas, dedos de osga. trepava paredes com os movimentos rápidos das osgas. outras vezes sentia-me uma pequena barata caseira ou mesmo uma grande barata voadora. era raro estar na posição vertical. sentia-me absolutamente rastejante. sempre. réptil ou insecto. mas rastejante. era quase impossível convencerem-me de que era humana. de quando em quando encontrava seres que da minha «espécie». baratas, lagartos, cobras, salamandras e a comunicação com eles era tão perfeita, tão fluida. fui muito feliz durante aquele tempo. houve mesmo um dia em que senti nascerem plumas coloridas no meu corpo. plumas longuíssimas, vermelhas e azuis e cuspi fogo. nesse dia para além de rastejar pude voar. saí pela janela do meu quarto como um perfeito e luminoso dragão. sobrevoei o meu bairro. horas seguidas durante a madrugada. fiquei tão deslumbrada com essa possibilidade que me demorei tempo demais. não imaginas o que é o apelo das asas. há uma energia sobrenatural que nos empurra para o voo. quando ganhei coragem para voltar ao meu quarto já os meus pais lá estavam. tinha sete anos e até aos onze estive amarrada à cama com umas correntes e uns cintos de cabedal. eles teriam feito tudo para me «tratarem». só me era permitido sair da cama para ir à casa de banho ou tomar banho. ainda assim, durante esses anos, nunca abandonei a minha condição rastejante. o meu sonho réptil. se tivesse querido ter-me-ia escapado com facilidade às correntes. bastava que tivesse feito escorregar o meu corpo serpenteante. mas nunca o fiz. naquela madrugada em que saí para voar, vi o olhar de pânico e terror imenso dos meus pais. percebi que os estava a matar e eu queria-lhes muito bem. a partir dali tudo se passava exclusivamente na minha cabeça. tentava contrariar ao máximo as modificações do corpo. deixava que a enfermeira tratasse de mim sem nunca a contrariar. até os médicos começaram a achar que eu estava a progredir. e, na perspectiva deles estava. voltei a ver sorrisos na cara do meu pai. a minha mãe voltou a dormir descansada. isso também me fazia bem, apesar do sofrimento de estar ali amarrada e ter praticamente perdido o contacto com insectos e répteis. e o pior de tudo: não ter voltado a voar. ser dragão é expressão máxima da liberdade, da força, da sabedoria, do poder, da vontade de fazer bem a tudo e a todos. tive de prescindir disso, mas ganhei a consciência leve da tranquilidade dos meus pais. não disse: «ter PRATICAMENTE perdido o contacto com insectos e répteis», por acaso. houve sempre baratas pequenas ou lagartixas que me vinham visitar à cama e que eu guardava secretamente debaixo dos lençóis – tinha as mãos livres, tinha dito?, acho que não – e à noite nos meus únicos momentos de solidão podia acariciá-los, beijá-los. senti-los a andar sobre a minha cara e nas palmas das mãos. §
§ aos onze anos os médicos decidiram que as amarras já não eram necessárias, mas que deveria continuar acamada durante, pelo menos, mais um ano e continuar a ter a assistência continuada de uma acompanhante, mas, segundo eles, não havia necessidade de ser uma enfermeira. foi nessa altura que uma rapariga de dezasseis anos veio viver connosco. tinha os cabelos compridos e muito encaracolados, castanho-escuro e pele muito branca. um dia apareceu com o cabelo pintado de ruivo. parecia um anjo, uma fada. aquela rapariga tornou-se um elo entre a consciência que sempre tinha mantido de mim própria, não-humana, rastejante. consciência de ser um réptil ou um insecto. ela tratava e mim de uma maneira diferente de tudo o que tinha sentido. todos os gestos dela eram lentos e delicados. gostava que fosse ela a lavar-me, por isso fingia ser incapaz de o fazer sozinha. eram momentos mágicos, sublimes. ficávamos as duas dentro da banheira durante horas. e ela lavava-me sempre a olhar-me nos olhos. fixamente. não dizíamos uma palavra. não precisávamos de dizer uma palavra. não havia palavras para dizer. só o toque. só o despertar daquele novo e inesperado contacto sensual com um ser de uma espécie que até ali não era a minha. §
§ fui perdendo as minhas capacidades de transformação física e os sonhos foram deixando de ser centrados na minha anterior identidade. durante um tempo deixei mesmo de ter identidade. quando uma barata ou uma lagartixa vinham ter comigo à cama anda lhes sorria mas já não sentia aquela igualdade fraterna de antes. acordava sempre antes do sol nascer numa ânsia desmedida de ver aquela fada entrar pelo meu quarto. comecei a sentir coisas humanas. comecei a reparar nos primeiros cheiros, a ser sensível aos olhares das pessoas, a diferenciá-las. quando ela entrava no quarto, ainda de pijama vestido, comecei a sentir uma vontade que não sabia explicar de lhe tocar na pele. ela costumava beijar-me a testa ao mesmo tempo que me dava os bons-dias e eu comecei a corresponder-lhe. experimentei o primeiro beijo, senti os meus lábios a aquecer pela primeira vez. ela tomou conta de mim e da minha alma. deixava-me beijar-lhe o corpo, beijava-me o corpo. passava os cabelos sobre a minha pele. ao fim de um ano tinha-me tornado, definitivamente humana. §
§ até que no dia do meu aniversário ela apareceu no quarto completamente transformada. eu estava acordada há horas, como sempre, à espera que ela chegasse e me trouxesse o sol a que me tinha habituado desde o princípio. mas desta vez tinha o corpo verde raiado de um azul cerúleo. a pele coberta de umas escamas duras. tinha perdido toda a horizontalidade. rastejava como uma iguana. os olhos vermelhos. garras. saltou para a minha cama e tentou comunicar comigo. dizer-me qualquer coisa. já não era possível comunicar. §
§ no dia do meu décimo segundo aniversário, percebi que aquela fada que me tinha sido enviada, nem era fada, nem humana. era o réptil que eu tinha esperado para a minha vida durante todos aqueles anos em que estive amarrada à cama. mas eu já estava. condenada à humanidade. já não era possível fazer fosse o que fosse para retornar à minha anterior forma de existência. não sei porque não se revelou ela logo no princípio. tudo teria sido diferente. o meu amor tinha-me levado a uma respiração humanóide e tinha-me arrancado ao estado natural em que tinha nascido, para no exacto momento em que perdera toda a minha alma rastejante, ela se mostrar, como era. réptil, insecto, serpente, dragão, como eu havia sido. §
§ tratei-a como a um animal pestilento. depois de ter sentido o primeiro amor, senti a primeira raiva. o primeiro ódio e matei-a. estrangulei-a com um cinto. não sei que razões ela teve para fazer aquilo. nem lhe dei tempo para ela mo revelasse. não lhe consegui perdoar que me tivesse forçado à condição humana sendo ela como eu. sabendo ela o que eu era e o que eu sentia. ela podia ter-me salvo. nem sei se ela tinha alguma intenção escondida, alguma coisa programada. um plano. sei que tinha doze anos e que a raiva não me deixou sequer pensar. aos doze anos soube que era humana e que era capaz de matar.
segunda-feira, fevereiro 20, 2006
tratado secreto do teatro # 11
# 11 – cena décima primeira
b – porque é que estamos escondidos debaixo da manta?
a – para só nos vermos um ao outro.
b – e porquê?
a – temos de falar.
b – eu sei o que tu me queres dizer. sei o que vai acontecer. sempre soube. como tivemos o revés da demolição e vens dar-me uma lição sobre procedimentos a seguir. É isso?
a – ainda não. mas teremos de ter essa conversa sim, mas mais tarde.
b – então? temos de falar de?
a – há coisas que devemos contar um ao outro antes de prosseguirmos com o inevitável. coisas nossas, coisas que desconhecemos, é preciso, percebes? é preciso estarmos limpos de todas as memórias escondidas. das coisas mais importantes e das coisas menos importantes, das coisas que ainda estão ocultas entre nós. enquanto tivermos algo de oculto entre nós não poderemos celebrar este acto de fé…
b – … acto de fé? ACTO DE FÉ? então tu passas da racionalidade extrema, da demonstração permanente de que tudo é uma evidência e agora falas-me em acto de fé? de fé?
a – mas a fé é isso querido. é o nosso olhar perante a evidência, perante o que experimentámos directamente e nos faz crer que essa «coisa» é verdadeira, ainda que admita espaço para a dúvida, e para a continuidade da procura. Um acto de fé é um credo na verdade experimentada.
b – tens noção da maneira como estás a falar. decoraste isso tão bem. até deves ter escrito primeiro ou lido num livro. tens isto calculado e planeado a cada centímetro de segundo. isso dá-me nojo. ainda que tenhas razão. mas essa forma decorada de falar é repugnante. denúncia demais a tua premeditação §
§ primeiro ias bem. acho que sim, devemos revelar coisas que nem sabemos que temos em nós começando por aquelas que sabemos que temos. limpar-nos desta amalgama de coisas ocultas que carregamos há tantos anos. mas fiquemos por aí e deixemos a fé de lado. se quiseres pensar nessa coisa do acto e fé, pensa, mas não me fales nisso. ou então, fala nisso mas de outra maneira. tenho nojo desta situação mas ainda não tenho nojo de ti e não quero começar a ter.
a – muito bem. desculpa. só estava a explicar-te a razão de estarmos aqui debaixo da manta, de ter vindo deitar-me ao teu lado enquanto ainda dormias e de nos ter coberto para que quando acordasses só me visses a mim.
b – e não te passou pela cabeça que quisesse ver outra coisa para além de ti?
a – passou. por isso é que fiz isto. para salvaguardar o teu previsível desejo de saltar daqui, de ir imediatamente para a janela, de te agarrares outra vez às pernas…
b – talvez tenhas feito bem. afinal que coisinha não fizeste tu maravilhosamente bem desde o inicio «daquilo que teve principio» – muito bem achada esta tua frase sobre nós. muito bem achada.
a – mas agora não temos de ficar aqui sempre. só quis ter tempo, quando acordasses, para te falar nisto. saber se concordavas
b – sim minha senhora! §
§ procederemos a estas confissões. um de cada vez. um fala o outro escuta. sempre que um terminar dará ao outro um sinal de que é a sua vez de falar. mas com uma condição?
a – diz…
b – porque é que estamos escondidos debaixo da manta?
a – para só nos vermos um ao outro.
b – e porquê?
a – temos de falar.
b – eu sei o que tu me queres dizer. sei o que vai acontecer. sempre soube. como tivemos o revés da demolição e vens dar-me uma lição sobre procedimentos a seguir. É isso?
a – ainda não. mas teremos de ter essa conversa sim, mas mais tarde.
b – então? temos de falar de?
a – há coisas que devemos contar um ao outro antes de prosseguirmos com o inevitável. coisas nossas, coisas que desconhecemos, é preciso, percebes? é preciso estarmos limpos de todas as memórias escondidas. das coisas mais importantes e das coisas menos importantes, das coisas que ainda estão ocultas entre nós. enquanto tivermos algo de oculto entre nós não poderemos celebrar este acto de fé…
b – … acto de fé? ACTO DE FÉ? então tu passas da racionalidade extrema, da demonstração permanente de que tudo é uma evidência e agora falas-me em acto de fé? de fé?
a – mas a fé é isso querido. é o nosso olhar perante a evidência, perante o que experimentámos directamente e nos faz crer que essa «coisa» é verdadeira, ainda que admita espaço para a dúvida, e para a continuidade da procura. Um acto de fé é um credo na verdade experimentada.
b – tens noção da maneira como estás a falar. decoraste isso tão bem. até deves ter escrito primeiro ou lido num livro. tens isto calculado e planeado a cada centímetro de segundo. isso dá-me nojo. ainda que tenhas razão. mas essa forma decorada de falar é repugnante. denúncia demais a tua premeditação §
§ primeiro ias bem. acho que sim, devemos revelar coisas que nem sabemos que temos em nós começando por aquelas que sabemos que temos. limpar-nos desta amalgama de coisas ocultas que carregamos há tantos anos. mas fiquemos por aí e deixemos a fé de lado. se quiseres pensar nessa coisa do acto e fé, pensa, mas não me fales nisso. ou então, fala nisso mas de outra maneira. tenho nojo desta situação mas ainda não tenho nojo de ti e não quero começar a ter.
a – muito bem. desculpa. só estava a explicar-te a razão de estarmos aqui debaixo da manta, de ter vindo deitar-me ao teu lado enquanto ainda dormias e de nos ter coberto para que quando acordasses só me visses a mim.
b – e não te passou pela cabeça que quisesse ver outra coisa para além de ti?
a – passou. por isso é que fiz isto. para salvaguardar o teu previsível desejo de saltar daqui, de ir imediatamente para a janela, de te agarrares outra vez às pernas…
b – talvez tenhas feito bem. afinal que coisinha não fizeste tu maravilhosamente bem desde o inicio «daquilo que teve principio» – muito bem achada esta tua frase sobre nós. muito bem achada.
a – mas agora não temos de ficar aqui sempre. só quis ter tempo, quando acordasses, para te falar nisto. saber se concordavas
b – sim minha senhora! §
§ procederemos a estas confissões. um de cada vez. um fala o outro escuta. sempre que um terminar dará ao outro um sinal de que é a sua vez de falar. mas com uma condição?
a – diz…
tratado secreto do teatro # 04
segunda parte
# 04 - voz-off
(poema)
# 04 - voz-off
(poema)
domingo, fevereiro 19, 2006
tratado secreto do teatro # 10
# 10 – cena décima
(b, derrotado, dorme. a move o seu corpo sobre b. com o rosto acaricia-lhe as costas, as nádegas. sente b entre as coxas, no sexo. lentamente vai-se afastando do corpo dele e da cama. a caminha para a janela e fixa, já no escuro, a rua, as pessoas, o rio, a lua.)
a – não há retorno. basta olhar para estas pessoas na rua. estamos todos contaminados. o rio está contaminado. e nós… sei que estás a ouvir-me. deixa-te ficar aí, atrás de mim. basta-me ver o reflexo violeta do teu corpo no vidro da janela. já só conto cotigo para pôr fim a isto. ele vai vacilar. ama-me com demasiado ódio ou odeia-me com demasiado amor. se lhe dissesse para voltarmos para a rua, para a vida moribunda que tínhamos e ele iria sem uma hesitação. só conto contigo cavaleiro. tu percebes-me. como eu, tu sabes que é preciso fazer isto. vai ser tudo muito mais violento. mais duro. se as maquinas tivessem vindo… que raio, porque haviam elas de ter falhado. confirmei esta data dezenas de vezes… tu sentes o odorífero cheiro a rato? tu sentes, não sentes? foi o que ficou de humano nesta casa. ele não quer sentir. só te tenho a ti, cavaleiro violeta. cobre-me com a tua luz laranja. suga-me para dentro do teu raio violeta. apoia-me. tenho vontade de me voltar. mas não o quero fazer. vi-te de olhos cerrados enquanto lhe caligrafava as costas. nessa altura conduziste-me. sopraste-me as palavras certas. a minha língua funcionava como um pincel nas tuas mãos. se tinhas o rosto tapado é porque eu não devo ver o teu rosto. nem desejo ver o teu rosto. eu conheço-o. sei quem és. tu sabes que sei. conseguiste atingir o plano alto dos dois raios da magna via: laranja e violeta. meu querido sacerdote. hoje estás aqui e nem sequer te tinha invocado conscientemente. já quando éramos crianças sabíamos que este momento chegaria e agora que chegou tu não faltaste para me ajudar. foi para isso que vieste não foi? claro que foi. vês aquele homem, no automóvel ali em baixo? daqui a quarenta e cinco minutos vai ter um acidente, mas agora, neste exacto momento, quem o vê só será capaz de lhe reconhecer segurança e soberba e desprezo por tudo. até o automóvel é uma demonstração de desprezo pela existência. o telemóvel dele vai tocar, ele vai atender, vai responder com a brutalidade que lhe é habitual, vai descontrolar-se, o carro vai derrapar, bater no lancil, capotar. estará morto e nem sequer conseguirá perceber que já morreu. vês aquela senhora com a bata azul à porta da casa dos tecidos. não está a fazer nada. é uma mulher honesta. boa. sonha com a hora de apanhar o barco para o montijo e chegar a casa. tudo o que ela quer é chegar a casa e cair no sofá, ligar a televisão e desligar-se durante umas horas antes de se deitar. será a primeira a levar com o carro. também ela morrerá e também ela depois de morta não saberá que já morreu. estou exausta disto tudo. compreendes-me, não compreendes?
voz-off - «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
ITE MISSA EST.
fim da primeira parte
(b, derrotado, dorme. a move o seu corpo sobre b. com o rosto acaricia-lhe as costas, as nádegas. sente b entre as coxas, no sexo. lentamente vai-se afastando do corpo dele e da cama. a caminha para a janela e fixa, já no escuro, a rua, as pessoas, o rio, a lua.)
a – não há retorno. basta olhar para estas pessoas na rua. estamos todos contaminados. o rio está contaminado. e nós… sei que estás a ouvir-me. deixa-te ficar aí, atrás de mim. basta-me ver o reflexo violeta do teu corpo no vidro da janela. já só conto cotigo para pôr fim a isto. ele vai vacilar. ama-me com demasiado ódio ou odeia-me com demasiado amor. se lhe dissesse para voltarmos para a rua, para a vida moribunda que tínhamos e ele iria sem uma hesitação. só conto contigo cavaleiro. tu percebes-me. como eu, tu sabes que é preciso fazer isto. vai ser tudo muito mais violento. mais duro. se as maquinas tivessem vindo… que raio, porque haviam elas de ter falhado. confirmei esta data dezenas de vezes… tu sentes o odorífero cheiro a rato? tu sentes, não sentes? foi o que ficou de humano nesta casa. ele não quer sentir. só te tenho a ti, cavaleiro violeta. cobre-me com a tua luz laranja. suga-me para dentro do teu raio violeta. apoia-me. tenho vontade de me voltar. mas não o quero fazer. vi-te de olhos cerrados enquanto lhe caligrafava as costas. nessa altura conduziste-me. sopraste-me as palavras certas. a minha língua funcionava como um pincel nas tuas mãos. se tinhas o rosto tapado é porque eu não devo ver o teu rosto. nem desejo ver o teu rosto. eu conheço-o. sei quem és. tu sabes que sei. conseguiste atingir o plano alto dos dois raios da magna via: laranja e violeta. meu querido sacerdote. hoje estás aqui e nem sequer te tinha invocado conscientemente. já quando éramos crianças sabíamos que este momento chegaria e agora que chegou tu não faltaste para me ajudar. foi para isso que vieste não foi? claro que foi. vês aquele homem, no automóvel ali em baixo? daqui a quarenta e cinco minutos vai ter um acidente, mas agora, neste exacto momento, quem o vê só será capaz de lhe reconhecer segurança e soberba e desprezo por tudo. até o automóvel é uma demonstração de desprezo pela existência. o telemóvel dele vai tocar, ele vai atender, vai responder com a brutalidade que lhe é habitual, vai descontrolar-se, o carro vai derrapar, bater no lancil, capotar. estará morto e nem sequer conseguirá perceber que já morreu. vês aquela senhora com a bata azul à porta da casa dos tecidos. não está a fazer nada. é uma mulher honesta. boa. sonha com a hora de apanhar o barco para o montijo e chegar a casa. tudo o que ela quer é chegar a casa e cair no sofá, ligar a televisão e desligar-se durante umas horas antes de se deitar. será a primeira a levar com o carro. também ela morrerá e também ela depois de morta não saberá que já morreu. estou exausta disto tudo. compreendes-me, não compreendes?
voz-off - «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
ITE MISSA EST.
fim da primeira parte
sábado, fevereiro 18, 2006
tratado secreto do teatro # 9
# 9 – cena nona
a – vês? assim. só ao de leve. vou esticar-te os dedos, posso?... devagar. um a um. queres que os beije para não doer tanto?… estás frio. olha para mim. não tenhas medo querido, deixa-me lavar-te a cara com a boca… eu aqueço-te. deixa-me continuar a lavar-te… não precisas de dizer nada. vou tentar esticar as tuas pernas. se te doer muito, basta que me olhes, ou toques ligeiramente, e eu paro. não está a doer muito pois não? tenta deitar-te… tenho de tirar estes lençóis… espera, não te deixes cair. eu amparo-te.
…vou lá dentro deitar os lençóis fora e já volto para continuar a tratar de ti…
… já aqui estou. posso continuar querido? não penses em nada. acalma agora enquanto a minha boca te lava. ou então pensa na praia, no escorpião, no menino branco… a minha boca não é assim tão repugnante. estás roxo de frio e tensão… é bom lavar-te com a língua. tu nunca sabes mal. nada em ti sabe mal. não importa o que seja. estás mais quente? tens sono? não tenhas medo de te deixar dormir. eu continuarei a lavar-te até que estejas macio e leve de toda esta porcaria. adormece com o teu menino branco. adormece querido. eu faço-te festas no peito e na cara. repara, à frente estás quase limpo. cada bocadinho de ti. deixa-me virar-te para te lavar atrás. devagar querido, senão tens muitas dores. o teu corpo está completamente preso. as minhas mãos e a minha boca hão-de trazer-te ao normal. só é preciso tempo. massajo-te os ombros enquanto te lambo e amacio. sei que estás quase a adormecer. conheço os teus olhos quando estás quase a adormecer, a maneira como inclinas o pescoço. se dormires umas horas vai ficar novamente preparado. vais poder ir à janela e ver o rio e os barcos, imaginar tu os marinheiros. já estás mais quente! a tua pele clara começa a renascer dessa tortura a que te sujeitaste. lavo-te. lavo-te. lavo-te. cada centímetro de pele. e aqueço-te. eu sei que a minha língua te aquece e que as minhas mãos ainda te descontraem. deixa-me agora deitar-me em cima de ti. fazer de cobertor. a minha pele aquece-te, não aquece? temos de descansar. os dois. uma hora que seja.
b – a tua boca… a tua língua a lavar-me… as tuas mãos… a tua pele sobre mim. eu adormeço debaixo do teu calor. mas adormeço de cansaço. de derrota. não confio em ti. não confio em nada. sei o que queres. sei para o que me preparas. adormeço sim. desta vez não por ti, não por nós, não por mim. por DERROTA. só por derrota.
a – vês? assim. só ao de leve. vou esticar-te os dedos, posso?... devagar. um a um. queres que os beije para não doer tanto?… estás frio. olha para mim. não tenhas medo querido, deixa-me lavar-te a cara com a boca… eu aqueço-te. deixa-me continuar a lavar-te… não precisas de dizer nada. vou tentar esticar as tuas pernas. se te doer muito, basta que me olhes, ou toques ligeiramente, e eu paro. não está a doer muito pois não? tenta deitar-te… tenho de tirar estes lençóis… espera, não te deixes cair. eu amparo-te.
…vou lá dentro deitar os lençóis fora e já volto para continuar a tratar de ti…
… já aqui estou. posso continuar querido? não penses em nada. acalma agora enquanto a minha boca te lava. ou então pensa na praia, no escorpião, no menino branco… a minha boca não é assim tão repugnante. estás roxo de frio e tensão… é bom lavar-te com a língua. tu nunca sabes mal. nada em ti sabe mal. não importa o que seja. estás mais quente? tens sono? não tenhas medo de te deixar dormir. eu continuarei a lavar-te até que estejas macio e leve de toda esta porcaria. adormece com o teu menino branco. adormece querido. eu faço-te festas no peito e na cara. repara, à frente estás quase limpo. cada bocadinho de ti. deixa-me virar-te para te lavar atrás. devagar querido, senão tens muitas dores. o teu corpo está completamente preso. as minhas mãos e a minha boca hão-de trazer-te ao normal. só é preciso tempo. massajo-te os ombros enquanto te lambo e amacio. sei que estás quase a adormecer. conheço os teus olhos quando estás quase a adormecer, a maneira como inclinas o pescoço. se dormires umas horas vai ficar novamente preparado. vais poder ir à janela e ver o rio e os barcos, imaginar tu os marinheiros. já estás mais quente! a tua pele clara começa a renascer dessa tortura a que te sujeitaste. lavo-te. lavo-te. lavo-te. cada centímetro de pele. e aqueço-te. eu sei que a minha língua te aquece e que as minhas mãos ainda te descontraem. deixa-me agora deitar-me em cima de ti. fazer de cobertor. a minha pele aquece-te, não aquece? temos de descansar. os dois. uma hora que seja.
b – a tua boca… a tua língua a lavar-me… as tuas mãos… a tua pele sobre mim. eu adormeço debaixo do teu calor. mas adormeço de cansaço. de derrota. não confio em ti. não confio em nada. sei o que queres. sei para o que me preparas. adormeço sim. desta vez não por ti, não por nós, não por mim. por DERROTA. só por derrota.
tratado secreto do teatro # 8
# 8 – cena oitava
a – tens de perceber. aqui não estamos sós. nunca estivemos. é por isso que chegámos a este beco. mas agora é diferente e a única saída é entregarmo-nos a esta luz desconhecida que nos está a abençoar. eu também tenho medo. mas o medo não me paralisará, nunca. deixa-me limpar-te. deixa-me tirar-te daí. lavo-te o corpo com beijos, lavo-te com água do meu corpo.
b – não volto a lavar-me. nem mesmo com líquido que dantes tanto desejava. já te disse que fico aqui. não há diferença entre o que sou agora e a sujidade que me envolve. talvez tu não estejas só. agora, dantes. talvez sintas essa bênção… talvez seja real… não duvido de nada, quero lá saber. mas não me estendas mais esperanças. eu estou sozinho. e é sozinho que continuarei até ao final.
a – queres que te diga como está o rio? como são os barcos que estão a zarpar? queres que imagine para ti os marinheiros que os ocupam?
b – se quiseres?
a – … tu queres?
b – SIM!. é isso que queres que te diga não é?
a – é.
b – então fala, do rio, dos barcos, dos marinheiros, do vento, das amarras, do cais…
a – …o rio está branco. a lua já se reflecte na água. só há um barco. um pequeno veleiro… todos os marinheiros têm camisas brancas e sem mangas. estão sem calças puxando as cordas das velas. abraçam-se num corpo único. numa força única. as velas sobem com o vigor poderoso dos braços daqueles homens. têm as pernas entrelaçadas. os pés descalços, as vozes roucas. queres ouvir como eles gritam por ti? eles desejam-te. chamam-te para o navio. queres ir? gostas que eles te desejem?
b – a lua já se vê?
a – já. disse-te que o rio está branco com o seu reflexo.
b – então as máquinas não vêm. desistiram. o prédio não será demolido hoje. estamos condenados à noite. de que me serve saber do desejo dos marinheiros se estou aqui preso, a ti, não é a tua imaginação que me vai soltar nem dar asas. tu programaste tudo. tu sabes a maneira como me condenaste…
a – eu não te condenei. estou a salvar-te. a salvar-nos. a salvar-nos deste terror que tem sido a vida. olha o meu corpo. vê como é aparentemente jovem mas em verdade apodrecido. repara nos meus olhos. são foscos. vidrados. os cabelos sem forma. vê-me por dentro. esquece a minha aparência. até agora só foste capaz de ver os meus olhos aparentes, os cabelos aparentes, o corpo aparente. por uma vez que seja, faz um esforço e vê-me por dentro e ver-te-às a ti. contigo passa-se o mesmo. não é a sujidade da tua merda e do teu mijo que importa. estás enganado. pensas que mudas alguma coisa com isso. imbecil. o que é sórdido é a podridão que tens dentro. aprende a ver à transparência e compreenderás tudo: a razão porque estamos aqui. porque temos que estar aqui. a razão porque «alguém» veio em nosso auxilio. a razão porque o cheiro a rato é agradável, é perfume. tens de sair desse estado de choque em que ficaste depois de te ter gravado a pele. tens que desprender o corpo. voltar a estar vulnerável. só assim verás a luz laranja que eu vi e a figura violeta que me acompanhava enquanto te pincelava com a língua…
b – figura violeta…
a … as máquinas já não vêm. é um facto. teremos que enfrentar a noite. é um facto. e tu sabes o que isso significa. teria sido mais fácil se eles não tivessem falhado. agora está tudo nas nossas mãos. nas tuas principalmente. é por isso que tens de te preparar. podes ficar todo sujo por fora. é indiferente. não podes é ficar sujo por dentro. e tens de perceber que já não vais a tempo de destruir o corpo contra a parede, nem de expelir as vísceras. comeria o teu ódio ingerindo o teu coração sem hesitar se isso te ajudasse. mas é tarde demais. prepara-te. deixa-me ajudar-te a estares preparado. se não quiseres que te lave por fora eu não lavo, mas deixa-me lavar-te por dentro. deixa-me falar-te dos marinheiros.
a – tens de perceber. aqui não estamos sós. nunca estivemos. é por isso que chegámos a este beco. mas agora é diferente e a única saída é entregarmo-nos a esta luz desconhecida que nos está a abençoar. eu também tenho medo. mas o medo não me paralisará, nunca. deixa-me limpar-te. deixa-me tirar-te daí. lavo-te o corpo com beijos, lavo-te com água do meu corpo.
b – não volto a lavar-me. nem mesmo com líquido que dantes tanto desejava. já te disse que fico aqui. não há diferença entre o que sou agora e a sujidade que me envolve. talvez tu não estejas só. agora, dantes. talvez sintas essa bênção… talvez seja real… não duvido de nada, quero lá saber. mas não me estendas mais esperanças. eu estou sozinho. e é sozinho que continuarei até ao final.
a – queres que te diga como está o rio? como são os barcos que estão a zarpar? queres que imagine para ti os marinheiros que os ocupam?
b – se quiseres?
a – … tu queres?
b – SIM!. é isso que queres que te diga não é?
a – é.
b – então fala, do rio, dos barcos, dos marinheiros, do vento, das amarras, do cais…
a – …o rio está branco. a lua já se reflecte na água. só há um barco. um pequeno veleiro… todos os marinheiros têm camisas brancas e sem mangas. estão sem calças puxando as cordas das velas. abraçam-se num corpo único. numa força única. as velas sobem com o vigor poderoso dos braços daqueles homens. têm as pernas entrelaçadas. os pés descalços, as vozes roucas. queres ouvir como eles gritam por ti? eles desejam-te. chamam-te para o navio. queres ir? gostas que eles te desejem?
b – a lua já se vê?
a – já. disse-te que o rio está branco com o seu reflexo.
b – então as máquinas não vêm. desistiram. o prédio não será demolido hoje. estamos condenados à noite. de que me serve saber do desejo dos marinheiros se estou aqui preso, a ti, não é a tua imaginação que me vai soltar nem dar asas. tu programaste tudo. tu sabes a maneira como me condenaste…
a – eu não te condenei. estou a salvar-te. a salvar-nos. a salvar-nos deste terror que tem sido a vida. olha o meu corpo. vê como é aparentemente jovem mas em verdade apodrecido. repara nos meus olhos. são foscos. vidrados. os cabelos sem forma. vê-me por dentro. esquece a minha aparência. até agora só foste capaz de ver os meus olhos aparentes, os cabelos aparentes, o corpo aparente. por uma vez que seja, faz um esforço e vê-me por dentro e ver-te-às a ti. contigo passa-se o mesmo. não é a sujidade da tua merda e do teu mijo que importa. estás enganado. pensas que mudas alguma coisa com isso. imbecil. o que é sórdido é a podridão que tens dentro. aprende a ver à transparência e compreenderás tudo: a razão porque estamos aqui. porque temos que estar aqui. a razão porque «alguém» veio em nosso auxilio. a razão porque o cheiro a rato é agradável, é perfume. tens de sair desse estado de choque em que ficaste depois de te ter gravado a pele. tens que desprender o corpo. voltar a estar vulnerável. só assim verás a luz laranja que eu vi e a figura violeta que me acompanhava enquanto te pincelava com a língua…
b – figura violeta…
a … as máquinas já não vêm. é um facto. teremos que enfrentar a noite. é um facto. e tu sabes o que isso significa. teria sido mais fácil se eles não tivessem falhado. agora está tudo nas nossas mãos. nas tuas principalmente. é por isso que tens de te preparar. podes ficar todo sujo por fora. é indiferente. não podes é ficar sujo por dentro. e tens de perceber que já não vais a tempo de destruir o corpo contra a parede, nem de expelir as vísceras. comeria o teu ódio ingerindo o teu coração sem hesitar se isso te ajudasse. mas é tarde demais. prepara-te. deixa-me ajudar-te a estares preparado. se não quiseres que te lave por fora eu não lavo, mas deixa-me lavar-te por dentro. deixa-me falar-te dos marinheiros.
«CONQUISTA-ME»
(ligar o som do computador)
# 03 - voz-off
# 03 – voz-off
Seigneur, quand vous mourûtes, le rideau se fendit,
Ce que l’on vit derrière, personne ne l’a dit
La rue est dans la nuit comme une déchirure,
Pleine d’or et de sang, de feu et d’épluchures.
Ceux que vous aviez chassés du temple avec votre fouet,
Flagellent les passants d’une poignée de méfaits.
L’Étoile qui disparut alors du tabernacle,
Brûle sur les murs dans la lumiére crue des spectacles.
Seigneur, la Banque illuminée est comme un coffre-fort,
Où s’es couagulé le sang de votre mort.
Blasise Cendrars [Fréderic-Louis Sauser]
in «LES PÂQUES À NEW YORK»
Seigneur, quand vous mourûtes, le rideau se fendit,
Ce que l’on vit derrière, personne ne l’a dit
La rue est dans la nuit comme une déchirure,
Pleine d’or et de sang, de feu et d’épluchures.
Ceux que vous aviez chassés du temple avec votre fouet,
Flagellent les passants d’une poignée de méfaits.
L’Étoile qui disparut alors du tabernacle,
Brûle sur les murs dans la lumiére crue des spectacles.
Seigneur, la Banque illuminée est comme un coffre-fort,
Où s’es couagulé le sang de votre mort.
Blasise Cendrars [Fréderic-Louis Sauser]
in «LES PÂQUES À NEW YORK»
sexta-feira, fevereiro 17, 2006
tratado secreto do teatro # 7
# 7 – cena sétima
a – as máquinas já não vêm.
b – não me vou levantar daqui. não me quero levantar daqui. quero ficar agarrado aos meus joelhos. quero ficar dormente e ter dores. suar muito ou gelar. quero que os dedos das mãos de desarticulem com o esforço de agarrar as pernas. se essa entidade que tu dizes que existe, existe, e tem poder suficiente, que me venha tirar daqui. não bebo mais água desse garrafão imundo dos nossos lábios. não volto à casa de banho. é aqui que farei tudo. nesta posição. até perder o olhar, até perder o sangue. até perder toda a seiva que me corre nas veias, no cérebro… vou desfazer-me em líquidos, aqui, percebes. os ossos hão-de se quebrar. os dentes hão-de estalar. há-de chegar o limite. o espasmo final. usa tu a casa de banho, bebe a água que ainda resta no garrafão minha querida, bebe e inspira o cheiro a rato de que tanto gostas. quero ver as minhas vísceras espalhadas neste colchão. quero saber como são os meus rins. os meus pulmões. quero estar frente a frente com a merda do meu cérebro. quero isso tudo. e queria que comesses o meu coração. que lhe sentisses o amargo. há bocado menti-te. eu odeio. eu sei o que é odiar. e quanto olho para ti, aí meio escondida a espreitar à janela, é ódio que sinto. se comesses o meu coração agora saberias, saberias de saber e de sabor, o que é o ódio. vou ficar aqui agarrado às pernas. aqui agarrado às pernas. aqui agarrado às pernas… às pernas que tu tiveste. aqui agarrado a tudo o que tu tiveste: cabeça, boca, tronco, sexo, cu, mãos, pés, olhos, pensamento, palavras, pele. tiveste-me. e a merda é que ainda me tens mas o que te faz gozar é o suave odor a rato e o que te faz vibrar é a transcendente presença de um ser que se terá dado ao trabalho de vir habitar neste quarto, num prédio em demolição, só para te acompanhar…
a – …para nos acompanhar…
b – ó pá não me lixes. não és nada. ou és tudo. és sórdida. eu sou sórdido. isto que estamos a viver é sórdido. estes lençóis são sórdidos. até a merda que cagamos é sórdida e eu quero gritar e não consigo e quero estoirar o corpo de cansaço e não consigo. quero partir as costelas uma a uma para tu ouvires e saberes que o corpo que tiveste se está a rachar a acabar e nem sequer sei fazer isso por mais que me esmague contra esta parede.
és tudo. é evidente que «tu és tudo». pôr a hipótese de não seres nada é ainda mais ridículo do que pensar que posso rebentar de alegria neste poço de raiva e ódio e amor e desejo. coisas que tu já não sentes. olha bem para ti. desesperada à beira dessa janela a suplicar mentalmente para que as máquinas venham e o prédio comece a ser demolido: «por favor senhor, faz com que tudo corra como eu planeei, faz com que as máquinas venham a tempo e o prédio se reduza a entulho, por favor senhor.» vá, diz-me se não é isto que estás a pensar, se não é nisto que concentras o teu super-poder-do-pensamento? eu não saio daqui. desta posição. desta cama. deste choro que não consigo. desta vida emparedada que me deste. o meu coração há-de reluzir nestes lençóis. hei-de vomitá-lo e tu terás tanto medo dele que o virás comer só para que ele desapareça da tua vista e então estarei implacavelmente dentro de ti. irrigando o choro e o grito que agora não consigo.
a – será pior se as máquinas não vierem.
a – as máquinas já não vêm.
b – não me vou levantar daqui. não me quero levantar daqui. quero ficar agarrado aos meus joelhos. quero ficar dormente e ter dores. suar muito ou gelar. quero que os dedos das mãos de desarticulem com o esforço de agarrar as pernas. se essa entidade que tu dizes que existe, existe, e tem poder suficiente, que me venha tirar daqui. não bebo mais água desse garrafão imundo dos nossos lábios. não volto à casa de banho. é aqui que farei tudo. nesta posição. até perder o olhar, até perder o sangue. até perder toda a seiva que me corre nas veias, no cérebro… vou desfazer-me em líquidos, aqui, percebes. os ossos hão-de se quebrar. os dentes hão-de estalar. há-de chegar o limite. o espasmo final. usa tu a casa de banho, bebe a água que ainda resta no garrafão minha querida, bebe e inspira o cheiro a rato de que tanto gostas. quero ver as minhas vísceras espalhadas neste colchão. quero saber como são os meus rins. os meus pulmões. quero estar frente a frente com a merda do meu cérebro. quero isso tudo. e queria que comesses o meu coração. que lhe sentisses o amargo. há bocado menti-te. eu odeio. eu sei o que é odiar. e quanto olho para ti, aí meio escondida a espreitar à janela, é ódio que sinto. se comesses o meu coração agora saberias, saberias de saber e de sabor, o que é o ódio. vou ficar aqui agarrado às pernas. aqui agarrado às pernas. aqui agarrado às pernas… às pernas que tu tiveste. aqui agarrado a tudo o que tu tiveste: cabeça, boca, tronco, sexo, cu, mãos, pés, olhos, pensamento, palavras, pele. tiveste-me. e a merda é que ainda me tens mas o que te faz gozar é o suave odor a rato e o que te faz vibrar é a transcendente presença de um ser que se terá dado ao trabalho de vir habitar neste quarto, num prédio em demolição, só para te acompanhar…
a – …para nos acompanhar…
b – ó pá não me lixes. não és nada. ou és tudo. és sórdida. eu sou sórdido. isto que estamos a viver é sórdido. estes lençóis são sórdidos. até a merda que cagamos é sórdida e eu quero gritar e não consigo e quero estoirar o corpo de cansaço e não consigo. quero partir as costelas uma a uma para tu ouvires e saberes que o corpo que tiveste se está a rachar a acabar e nem sequer sei fazer isso por mais que me esmague contra esta parede.
és tudo. é evidente que «tu és tudo». pôr a hipótese de não seres nada é ainda mais ridículo do que pensar que posso rebentar de alegria neste poço de raiva e ódio e amor e desejo. coisas que tu já não sentes. olha bem para ti. desesperada à beira dessa janela a suplicar mentalmente para que as máquinas venham e o prédio comece a ser demolido: «por favor senhor, faz com que tudo corra como eu planeei, faz com que as máquinas venham a tempo e o prédio se reduza a entulho, por favor senhor.» vá, diz-me se não é isto que estás a pensar, se não é nisto que concentras o teu super-poder-do-pensamento? eu não saio daqui. desta posição. desta cama. deste choro que não consigo. desta vida emparedada que me deste. o meu coração há-de reluzir nestes lençóis. hei-de vomitá-lo e tu terás tanto medo dele que o virás comer só para que ele desapareça da tua vista e então estarei implacavelmente dentro de ti. irrigando o choro e o grito que agora não consigo.
a – será pior se as máquinas não vierem.
tratado secreto do teatro # 6
# 6 – cena sexta
b – é a tua vez de gravar a minha pele.
a – a minha vez?!
b – sim, também quero que fiquem pirogravadas, com o calor da tua língua e da tua saliva, as últimas palavras do nosso… do nosso quê? encontro? amor?
a – …«do que teve princípio». do resto não sabemos nada. não há nomes. não quero mais nomes. acabaram os nomes. morreram como as memórias.
b – seja. quero a invisível caligrafia da tua boca marcando-me na pele as tuas últimas palavras daquilo que entre nós… «teve princípio».
a – se não descodificares o que escrevo, queres que no fim te diga o que gravei?
b – sim. enquanto estiveres a escrever, apenas me concentrarei no toque da tua língua e no escorrer da tua saliva. quero estar livre e vulnerável enquanto usas o fogo. quero sentir sem pensamentos. só depois as palavras.
a – está bem. assim farei. e as mãos queres tas agarre?
b – não. estarei imóvel e terei os olhos abertos mas não verei. só estarei desperto para o teu toque. de resto, tudo em mim estará inerte, insensível. desligado.
a – vira-te de costas…
b – pronto, já estou. agora não quero falar mais. não me perguntes mais nada até chegares ao fim. começa.
(a limpou o suor do corpo na manta. prendeu os cabelos com uma mola da roupa. a sentou-se sobre as nádegas de b. só escreverias nas costas de b. tudo o que tinha para caligrafar seria circunscrito àquele espaço. quando a se sentou sobre b e sentiu o contacto entre a pele dos dois foi percorrida por um arrepio, uma luz laranja que lhe velou os olhos. a sabia o que iria escrever, mas naquele momento a «entidade» que ela pressentia no quarto, parecia estar a ditar-lhe letra a letra o texto que havia de escrever. a fechou os olhos para se esconder, ainda assim continuava inundada dessa inesperada cor laranja. com os olhos fechados, pela primeira vez, a viu a figura de alguém. um ser masculino. violeta. com o rosto tapado. o violeta era tão intenso que o contraste com o laranja provocava um espécie de alucinação ácida no cérebro. a quis fugir dali mas sabia que devia ficar e honrar a sua promessa. b não se movia, não falava, não pedia nada. estava completamente disponível para ela. a não se atreveu a abrir os olhos. a figura violeta ainda se matinha dentro de si. sentiu um calor quase insuportável nos pontos do corpo que estavam em contacto com a pele de b. tinha de começar. sentiu a língua ficar redonda, era impossível torná-la pontiaguda como b tinha feito. a sua língua não seria rigorosa como um aparo. seriam pinceladas, gestos molhados. ideogramas envés de letras. a esperou que a saliva se acumulasse na boca e escorresse para a língua. começou. b, sempre imóvel, como tinha dito que estaria. iniciou o trabalho pelo ombro esquerdo. à medida que o pincelava ganhava confiança, à medida que ganhava confiança a luz laranja e a figura violeta iam-se desvanecendo até que desapareceram por completo. a foi escorregando pelas costas de b. os gestos da língua ganharam um movimento quase autónomo. quando terminou tinha o corpo completamente contorcido, naturalmente e sem esforço. como se algo lhe tivesse preparado o esqueleto para aquele momento. contorções que a nem acreditava ter conseguido fazer. endireitou-se e desceu até aos pés de b para lhe fazer o sinal de que tinha terminado. b ergueu-se rapidamente, sentando-se junto à parede a abraçar as pernas com os joelhos juntos à cara.)
b – é a tua vez de gravar a minha pele.
a – a minha vez?!
b – sim, também quero que fiquem pirogravadas, com o calor da tua língua e da tua saliva, as últimas palavras do nosso… do nosso quê? encontro? amor?
a – …«do que teve princípio». do resto não sabemos nada. não há nomes. não quero mais nomes. acabaram os nomes. morreram como as memórias.
b – seja. quero a invisível caligrafia da tua boca marcando-me na pele as tuas últimas palavras daquilo que entre nós… «teve princípio».
a – se não descodificares o que escrevo, queres que no fim te diga o que gravei?
b – sim. enquanto estiveres a escrever, apenas me concentrarei no toque da tua língua e no escorrer da tua saliva. quero estar livre e vulnerável enquanto usas o fogo. quero sentir sem pensamentos. só depois as palavras.
a – está bem. assim farei. e as mãos queres tas agarre?
b – não. estarei imóvel e terei os olhos abertos mas não verei. só estarei desperto para o teu toque. de resto, tudo em mim estará inerte, insensível. desligado.
a – vira-te de costas…
b – pronto, já estou. agora não quero falar mais. não me perguntes mais nada até chegares ao fim. começa.
(a limpou o suor do corpo na manta. prendeu os cabelos com uma mola da roupa. a sentou-se sobre as nádegas de b. só escreverias nas costas de b. tudo o que tinha para caligrafar seria circunscrito àquele espaço. quando a se sentou sobre b e sentiu o contacto entre a pele dos dois foi percorrida por um arrepio, uma luz laranja que lhe velou os olhos. a sabia o que iria escrever, mas naquele momento a «entidade» que ela pressentia no quarto, parecia estar a ditar-lhe letra a letra o texto que havia de escrever. a fechou os olhos para se esconder, ainda assim continuava inundada dessa inesperada cor laranja. com os olhos fechados, pela primeira vez, a viu a figura de alguém. um ser masculino. violeta. com o rosto tapado. o violeta era tão intenso que o contraste com o laranja provocava um espécie de alucinação ácida no cérebro. a quis fugir dali mas sabia que devia ficar e honrar a sua promessa. b não se movia, não falava, não pedia nada. estava completamente disponível para ela. a não se atreveu a abrir os olhos. a figura violeta ainda se matinha dentro de si. sentiu um calor quase insuportável nos pontos do corpo que estavam em contacto com a pele de b. tinha de começar. sentiu a língua ficar redonda, era impossível torná-la pontiaguda como b tinha feito. a sua língua não seria rigorosa como um aparo. seriam pinceladas, gestos molhados. ideogramas envés de letras. a esperou que a saliva se acumulasse na boca e escorresse para a língua. começou. b, sempre imóvel, como tinha dito que estaria. iniciou o trabalho pelo ombro esquerdo. à medida que o pincelava ganhava confiança, à medida que ganhava confiança a luz laranja e a figura violeta iam-se desvanecendo até que desapareceram por completo. a foi escorregando pelas costas de b. os gestos da língua ganharam um movimento quase autónomo. quando terminou tinha o corpo completamente contorcido, naturalmente e sem esforço. como se algo lhe tivesse preparado o esqueleto para aquele momento. contorções que a nem acreditava ter conseguido fazer. endireitou-se e desceu até aos pés de b para lhe fazer o sinal de que tinha terminado. b ergueu-se rapidamente, sentando-se junto à parede a abraçar as pernas com os joelhos juntos à cara.)
a – queres agora que te diga o que pintei. sabes, não caligrafei. escrevi. mas não como tu fizeste, as palavras saíram em gestos abstractos que quase nem conseguia controlar. a minha língua e saliva gravaram-te sozinhas, eu só pensava no que queria gravado em ti. foi uma coisa automática.
b – eu sei. sei reconhecer os movimentos da tua boca. sim, diz-me agora o que ficou marcado em mim.
a – ITE, MISSA EST
b – eu sei. sei reconhecer os movimentos da tua boca. sim, diz-me agora o que ficou marcado em mim.
a – ITE, MISSA EST
quinta-feira, fevereiro 16, 2006
tratado secreto do teatro # 5
# 5 – cena quinta
b – quando era pequeno encontrei um escorpião na praia. um escorpião negro. em adulto, soube que era raro e letal. na altura pensei que fosse um caranguejo e peguei-lhe. ele aninhou-se na minha mão. ficou imóvel. qual será a capacidade de visão de um escorpião? será que ele me via? a minha mão era muito pequenina, cinco anos, seis, coisa assim, ele ocupava praticamente toda a palma da mão mais os dedos. pergunto isto da visão dos escorpiões porque enquanto ele se aninhava, pareceu-me que me olhava fixamente nos olhos. pelo menos eu olhava-o fixamente nos olhos. a única coisa que estranhei na altura foi a sua serena imobilidade. ele não queria fugir nem picar-me. devagar, com algum medo, dei pequenas festas no dorso do meu «caranguejo». ele deixou. ele mostrou-me que queria…
a – não sentes a presença de alguém ou de alguma coisa neste quarto?
b – para além de nós, não.
a – eu sinto. como se uma força com olhos aqui estivesse a registar estes nossos últimos momentos…
b – é possível. não acho isso estranho. porque é que não haveríamos de estar acompanhados por entidades que não podemos ver mas que de alguma forma sentimos.
a – pareces-me muito crédulo de repente. dantes não eras assim.
b – dantes nada era assim. já não há «dantes». o «dantes» morreu. e eu não sei se estou vivo se estou morto. agora tudo me parece razoável. digo-te mais. espero que sim. que esteja aqui presente uma entidade verdadeiramente poderosa, cheia de olhos, olhos que vêem tudo. ouvidos que ouvem tudo. mil mãos que tocam em tudo. espero que sim, que um terceiro e oculto ser se tenha juntado a nós. quer tenha boas ou más intenções. é indiferente o bem e o mal. fazem parte um do outro. a diferença está na maldade e na bondade e neste momento nem a bondade nos eleva nem a maldade nos pode destruir mais.
a – …o escorpião?
b – não tem nenhum interesse especial a história. só me estava a lembrar dela…
a – continua, conta-ma a mim e à «tua entidade que tudo vê»
b – foste tu que falaste nisso, queridinha, eu não sinto entidade nenhuma, tu é dizes que sentes…
a – desculpa. continua a história. conta-a para mim.
b – …dei-lhe festas com a ponta dos dedos e senti que ele queria que eu lhas desse. que continuasse a dar-lhe, que não parasse. foi nesse momento que apareceu um rapazinho, muito branco, quase albino, albino mesmo, que gritou que largasse o bicho porque era perigoso. agarrou-me na mão e atirou o escorpião para o chão com um chinelo. fiquei a olhar para ele na areia. mantinha a mesma imobilidade. pareceu-me mais negro que antes. o outro rapaz mexeu-lhe com o chinelo e ele virou-se inerte: «está morto, felizmente!» –, eu era realmente muito pequeno na altura, mas consegui ter a consciência de que ele me tinha escolhido para morrer. foi ele que escolheu a minha mão para morrer e morreu enquanto lhe acariciava o dorso. guardei o escorpião no bolso dos calções. ainda existe o seu cadáver negro, seco. acho que é a minha mãe que o tem. outra coisa que me faz pensar é que foi aquele pequeno animal que me proporcionou encontrar o pedro, aquele rapaz. dez anos depois fomos amantes. foi o meu primeiro amante. o primeiro ser com quem me deitei. o primeiro rapaz que beijei. o primeiro que teve o meu corpo. nunca o amei, mas apaixonava-me aquele ar branco e cândido. sempre que fazíamos amor lembrava-me do escorpião e agradecia-lhe e dedicava-lhe aqueles momentos de prazer. soube há pouco tempo que estava muito doente com uma coisa qualquer na pele. um cancro estranho. estive para o ir ver ao hospital, envés disso acariciei um escorpião de cobre que estava à venda numa dessas lojas de decoração a puxar pró misticismo indiano.
a – devias ter ido vê-lo ao hospital.
b – eu fui vê-lo. com a ponta dos dedos no dorso do escorpião de cobre.
a – não achas estranho que as máquinas ainda não tenham chegado? as máquinas da demolição do prédio.
b – já te disse. já não acho nada estranho. quando se está à espera. quando se está em estado de espera, deixa-se de estranhar o que quer que seja. é o medo e o desespero que se instala na alma. a estranheza não. achar uma coisa estranha, invulgar, é coisa que só os que têm a dom da tranquilidade sentem. estou fora da normalidade. na fronteira entre o abandono máximo e a esperança de um milagre impossível: enfrentar dignamente a tua fuga. o milagre de descobrir nos teus olhos uma ínfima centelha de compaixão.
a – pois eu só espero que a demolição do edifício se inicie o mais rapidamente possível. o meu estado de espera não é menor que o teu. e estou tão farta da tua permanente auto-piedade. não entendes nada. tudo isto…
b – …para usar as tuas palavras, se não entendo nada pára de me tentar explicar. é inútil.
b – quando era pequeno encontrei um escorpião na praia. um escorpião negro. em adulto, soube que era raro e letal. na altura pensei que fosse um caranguejo e peguei-lhe. ele aninhou-se na minha mão. ficou imóvel. qual será a capacidade de visão de um escorpião? será que ele me via? a minha mão era muito pequenina, cinco anos, seis, coisa assim, ele ocupava praticamente toda a palma da mão mais os dedos. pergunto isto da visão dos escorpiões porque enquanto ele se aninhava, pareceu-me que me olhava fixamente nos olhos. pelo menos eu olhava-o fixamente nos olhos. a única coisa que estranhei na altura foi a sua serena imobilidade. ele não queria fugir nem picar-me. devagar, com algum medo, dei pequenas festas no dorso do meu «caranguejo». ele deixou. ele mostrou-me que queria…
a – não sentes a presença de alguém ou de alguma coisa neste quarto?
b – para além de nós, não.
a – eu sinto. como se uma força com olhos aqui estivesse a registar estes nossos últimos momentos…
b – é possível. não acho isso estranho. porque é que não haveríamos de estar acompanhados por entidades que não podemos ver mas que de alguma forma sentimos.
a – pareces-me muito crédulo de repente. dantes não eras assim.
b – dantes nada era assim. já não há «dantes». o «dantes» morreu. e eu não sei se estou vivo se estou morto. agora tudo me parece razoável. digo-te mais. espero que sim. que esteja aqui presente uma entidade verdadeiramente poderosa, cheia de olhos, olhos que vêem tudo. ouvidos que ouvem tudo. mil mãos que tocam em tudo. espero que sim, que um terceiro e oculto ser se tenha juntado a nós. quer tenha boas ou más intenções. é indiferente o bem e o mal. fazem parte um do outro. a diferença está na maldade e na bondade e neste momento nem a bondade nos eleva nem a maldade nos pode destruir mais.
a – …o escorpião?
b – não tem nenhum interesse especial a história. só me estava a lembrar dela…
a – continua, conta-ma a mim e à «tua entidade que tudo vê»
b – foste tu que falaste nisso, queridinha, eu não sinto entidade nenhuma, tu é dizes que sentes…
a – desculpa. continua a história. conta-a para mim.
b – …dei-lhe festas com a ponta dos dedos e senti que ele queria que eu lhas desse. que continuasse a dar-lhe, que não parasse. foi nesse momento que apareceu um rapazinho, muito branco, quase albino, albino mesmo, que gritou que largasse o bicho porque era perigoso. agarrou-me na mão e atirou o escorpião para o chão com um chinelo. fiquei a olhar para ele na areia. mantinha a mesma imobilidade. pareceu-me mais negro que antes. o outro rapaz mexeu-lhe com o chinelo e ele virou-se inerte: «está morto, felizmente!» –, eu era realmente muito pequeno na altura, mas consegui ter a consciência de que ele me tinha escolhido para morrer. foi ele que escolheu a minha mão para morrer e morreu enquanto lhe acariciava o dorso. guardei o escorpião no bolso dos calções. ainda existe o seu cadáver negro, seco. acho que é a minha mãe que o tem. outra coisa que me faz pensar é que foi aquele pequeno animal que me proporcionou encontrar o pedro, aquele rapaz. dez anos depois fomos amantes. foi o meu primeiro amante. o primeiro ser com quem me deitei. o primeiro rapaz que beijei. o primeiro que teve o meu corpo. nunca o amei, mas apaixonava-me aquele ar branco e cândido. sempre que fazíamos amor lembrava-me do escorpião e agradecia-lhe e dedicava-lhe aqueles momentos de prazer. soube há pouco tempo que estava muito doente com uma coisa qualquer na pele. um cancro estranho. estive para o ir ver ao hospital, envés disso acariciei um escorpião de cobre que estava à venda numa dessas lojas de decoração a puxar pró misticismo indiano.
a – devias ter ido vê-lo ao hospital.
b – eu fui vê-lo. com a ponta dos dedos no dorso do escorpião de cobre.
a – não achas estranho que as máquinas ainda não tenham chegado? as máquinas da demolição do prédio.
b – já te disse. já não acho nada estranho. quando se está à espera. quando se está em estado de espera, deixa-se de estranhar o que quer que seja. é o medo e o desespero que se instala na alma. a estranheza não. achar uma coisa estranha, invulgar, é coisa que só os que têm a dom da tranquilidade sentem. estou fora da normalidade. na fronteira entre o abandono máximo e a esperança de um milagre impossível: enfrentar dignamente a tua fuga. o milagre de descobrir nos teus olhos uma ínfima centelha de compaixão.
a – pois eu só espero que a demolição do edifício se inicie o mais rapidamente possível. o meu estado de espera não é menor que o teu. e estou tão farta da tua permanente auto-piedade. não entendes nada. tudo isto…
b – …para usar as tuas palavras, se não entendo nada pára de me tentar explicar. é inútil.
quarta-feira, fevereiro 15, 2006
tratado secreto do teatro # 4
# 4 – cena quarta
b – dentro de seis horas começam a demolir o prédio.
a – devem começar pelos andares de cima. pelo telhado. até chegarem ao nosso piso ainda devem levar algum tempo.
b – oito horas?
a – sei lá. é indiferente. acabarão por chegar. seis ou oito, é irrelevante. o tempo vai passar mais depressa do que imaginamos.
b – até agora o tempo tem passado muito devagar.
a – vai deixar de ser assim.
b – achas que antes de começarem vêm fazer outra inspecção de segurança para se certificarem de que não está cá ninguém?
a – acho que não. já fizeram quatro. ninguém nos descobriu. a casa está completamente vazia. só cá temos esta cama e o frigorifico velho. nem roupas temos.
b – …a manta, os lençóis… e aquelas roupas quentes que guardámos caso estivesse demasiado frio para estarmos sem roupa.
a – tudo isso já eles viram. é obvio que pensaram que tínhamos deixado essas coisas de propósito. ninguém sabe que ainda aqui estamos.
b – sabemos nós. é isso que é difícil de suportar.
a – podes fugir. eu não te impeço, ninguém te impede. deixou de haver impedimentos condições. deixámos de haver. nós. os outros. nós e os outros. foge.
b – já não há fuga. posso sair daqui pela porta da cave como tenho feito quando é preciso, mas tudo isto que aqui estamos a viver viria dentro de mim.
a – …preciso?… quando vais ter com o rapaz do barreiro?
b – não, quando vou ter contigo através do corpo do rapaz.
a – escreve qualquer coisa em mim.
b – não temos tintas…
a – tens a tua língua, tens a tua saliva, é uma tinta mais poderosa do que qualquer outra, apesar de ser invisível. mas se eu não perceber o desenho das letras enquanto a tua língua me caligrafa, promete-me que não me dirás o que escreveste. prometes?
b – prometo. mas tu reconhecerás todos os caracteres.
a – então escreve. eu fico quieta a olhar o tecto. não farei um movimento. quero sentir tudo. estarei completamente concentrada na ponta da tua língua e no lastro da tua saliva. agarra-me as mãos enquanto escreves. agarra-me para que me lembre sempre da possibilidade da imobilidade. será uma sessão de caligrafia zen. a tua língua, um largo pincel de bambu, o meu pescoço e peito e barriga e sexo e pernas e pés, uma imensa folha de papel de arroz.
b – assim farei.
a – já sabes o que vais escrever?
b – já.
a – …então?
b – fecha os olhos. deixa que me sinta livre.
a – eu fecho. mas não me toques com o resto do teu corpo. só as mãos. não quero sentir mais nada para além da tua língua-caligrafadora.
(b ajoelha-se na cama sobre o corpo de a de forma a que nenhuma parte de si lhe toque. b tem a língua húmida e pontiaguda. começa a sua escrita pelo pescoço e vai descendo, escrevendo como uma criança que aprende a desenhar as primeiras letras. detêm-se no peito e depois na barriga. frases mais longas letras de maior dimensão. no sexo, só um pequeno sinal, talvez um ponto. a faz pequenos movimentos que logo reprime. b sem lhe largar as mãos, continua. nas pernas a caligrafia torna-se mais difícil. b está extenuado. a não diz uma palavra. está realmente concentrada. b não diz uma palavra. está demasiado nervoso. sabe a responsabilidade que assumiu. nada poderá apagar aquelas palavras. inesperadamente, não tem medo. sabe exactamente o que quer deixar gravado no corpo de a. tem perfeita noção de que a está a reconhecer a escrita da sua língua. termina beijando-lhe os pés. podia ter-lhe dito mas seria desnecessário. a conhece aquele sinal desde sempre, o sinal do final, o beijo nos pés. b solta-lhe as mãos com ternura. a solta os olhos e sem uma pequena pausa começa a recitar as palavras pirogravadas. o texto de michaux que há tantos anos b lhe escrevera no verso de um bilhete de cinema. chora. chora devagar. a descobre que ainda tem lágrimas, ainda que suaves e controladas por uma estranha força exterior. a sente a presença de algo fora dela que a conduz.)
a – «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
b – dentro de seis horas começam a demolir o prédio.
a – devem começar pelos andares de cima. pelo telhado. até chegarem ao nosso piso ainda devem levar algum tempo.
b – oito horas?
a – sei lá. é indiferente. acabarão por chegar. seis ou oito, é irrelevante. o tempo vai passar mais depressa do que imaginamos.
b – até agora o tempo tem passado muito devagar.
a – vai deixar de ser assim.
b – achas que antes de começarem vêm fazer outra inspecção de segurança para se certificarem de que não está cá ninguém?
a – acho que não. já fizeram quatro. ninguém nos descobriu. a casa está completamente vazia. só cá temos esta cama e o frigorifico velho. nem roupas temos.
b – …a manta, os lençóis… e aquelas roupas quentes que guardámos caso estivesse demasiado frio para estarmos sem roupa.
a – tudo isso já eles viram. é obvio que pensaram que tínhamos deixado essas coisas de propósito. ninguém sabe que ainda aqui estamos.
b – sabemos nós. é isso que é difícil de suportar.
a – podes fugir. eu não te impeço, ninguém te impede. deixou de haver impedimentos condições. deixámos de haver. nós. os outros. nós e os outros. foge.
b – já não há fuga. posso sair daqui pela porta da cave como tenho feito quando é preciso, mas tudo isto que aqui estamos a viver viria dentro de mim.
a – …preciso?… quando vais ter com o rapaz do barreiro?
b – não, quando vou ter contigo através do corpo do rapaz.
a – escreve qualquer coisa em mim.
b – não temos tintas…
a – tens a tua língua, tens a tua saliva, é uma tinta mais poderosa do que qualquer outra, apesar de ser invisível. mas se eu não perceber o desenho das letras enquanto a tua língua me caligrafa, promete-me que não me dirás o que escreveste. prometes?
b – prometo. mas tu reconhecerás todos os caracteres.
a – então escreve. eu fico quieta a olhar o tecto. não farei um movimento. quero sentir tudo. estarei completamente concentrada na ponta da tua língua e no lastro da tua saliva. agarra-me as mãos enquanto escreves. agarra-me para que me lembre sempre da possibilidade da imobilidade. será uma sessão de caligrafia zen. a tua língua, um largo pincel de bambu, o meu pescoço e peito e barriga e sexo e pernas e pés, uma imensa folha de papel de arroz.
b – assim farei.
a – já sabes o que vais escrever?
b – já.
a – …então?
b – fecha os olhos. deixa que me sinta livre.
a – eu fecho. mas não me toques com o resto do teu corpo. só as mãos. não quero sentir mais nada para além da tua língua-caligrafadora.
(b ajoelha-se na cama sobre o corpo de a de forma a que nenhuma parte de si lhe toque. b tem a língua húmida e pontiaguda. começa a sua escrita pelo pescoço e vai descendo, escrevendo como uma criança que aprende a desenhar as primeiras letras. detêm-se no peito e depois na barriga. frases mais longas letras de maior dimensão. no sexo, só um pequeno sinal, talvez um ponto. a faz pequenos movimentos que logo reprime. b sem lhe largar as mãos, continua. nas pernas a caligrafia torna-se mais difícil. b está extenuado. a não diz uma palavra. está realmente concentrada. b não diz uma palavra. está demasiado nervoso. sabe a responsabilidade que assumiu. nada poderá apagar aquelas palavras. inesperadamente, não tem medo. sabe exactamente o que quer deixar gravado no corpo de a. tem perfeita noção de que a está a reconhecer a escrita da sua língua. termina beijando-lhe os pés. podia ter-lhe dito mas seria desnecessário. a conhece aquele sinal desde sempre, o sinal do final, o beijo nos pés. b solta-lhe as mãos com ternura. a solta os olhos e sem uma pequena pausa começa a recitar as palavras pirogravadas. o texto de michaux que há tantos anos b lhe escrevera no verso de um bilhete de cinema. chora. chora devagar. a descobre que ainda tem lágrimas, ainda que suaves e controladas por uma estranha força exterior. a sente a presença de algo fora dela que a conduz.)
a – «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
terça-feira, fevereiro 14, 2006
tratado secreto do teatro # 3
# 3 – cena terceira
a – ainda temos água?
b – não sei se a companhia já a cortou.
a – queria lavar-me. cheira a rato.
b – experimenta. pode ser que ainda haja.
a – todo o quarto cheira a rato.
b – é a peste. abro a janela?
a – não. deixa ficar o cheiro. quero lavar-me para me sentir limpa, mas não é o cheiro a rato que quero limpar. até me agrada este cheiro. é humano. e já nem tu nem eu temos cheiro.
b – …tenta no bidé, como a água corre com menos pressão pode ser que a que ficou nos canos dê.
a – não, queria lavar-me a sério, sentir o sabão no cabelo e nas pernas.
b – experimenta. não sei quanto tempo é que eles levam a cortar a água depois do aviso. a mim o cheiro a rato também não me incomoda. será que há algum aqui escondido.
a – não penses nisso. não temos essa sorte. cheira a rato mas não é um rato.
b – é a peste.
a – somos nós. é esta cama. são estes lençóis, com suores que já não querem dizer nada. é a falta de calor, é a falta de frio. é a falta de saber o que fazer…
b – é a peste.
a – é a peste.
b – …experimenta o bidé.
a – não me quero aproximar do bidé. não consigo deixar de rever o sangue que ali escorri. sempre que entro na casa de banho desvio o olhar dali. vai levar muito tempo. isso sim é a peste. as imagens que guardamos. o sangue que escorreu de nós, a dor, o medo, o medo da dor. a dor do medo.
b – nunca percebi porque não me quiseste presente nesse dia. foste tão rude ao afastar-me.
a – o sangue era meu. a dor era minha.
b – o sangue também era meu. era o nosso sangue. e a dor também eu a senti.
a – ao bidé não vou. já nem me quero lavar.
b – sou eu quem agora sangra.
a – então vai lá para dentro. senta-te no bidé. aproveita a água que está estagnada nos canos.
b – o meu sangue não se lava.
a – o sangue nunca se lava. não se apaga. quando se sangra é para sempre. e eu não fui rude contigo. afastei-te, sim, mas não fui rude.
b – não sei que ideia tens tu de rudeza. naquela altura não estar ali a sangrar contigo foi uma rudeza imensa. tu nunca irás perceber isto.
a – então se nunca vou perceber isso não continues a tentar explicar-me.
b – não continuo. deixa-me só ficar aí, deitado sobre ti. deixa-me fingir um abraço.
a – deita-te como quiseres. pára de estar sempre a perguntar se podes fazer isto ou aquilo. faz e pronto. queres deitar-te em cima de mim, deita-te.
b – deito-me.
a – pronto. estás deitado. vês? não muda nada. é por isso que cheira a rato. a peste. sim. a peste. a penetrar nas nossas memórias porque os corpos já estavam impregnados desta merda. deste cheiro. desta falta de água.
b – ouves?
a – o quê? não.
b – água a correr nos canos. há água nos canos…
a – deixa-te estar. lava-me tu. com a peste, com o cheiro a rato. com o teu sangue indelével. agarra-me. lava-me com a tua seiva. espalha-te no meu corpo. na minha peste, no meu sangue indelével. mistura-te na minha seiva e suor. faz.
a – ainda temos água?
b – não sei se a companhia já a cortou.
a – queria lavar-me. cheira a rato.
b – experimenta. pode ser que ainda haja.
a – todo o quarto cheira a rato.
b – é a peste. abro a janela?
a – não. deixa ficar o cheiro. quero lavar-me para me sentir limpa, mas não é o cheiro a rato que quero limpar. até me agrada este cheiro. é humano. e já nem tu nem eu temos cheiro.
b – …tenta no bidé, como a água corre com menos pressão pode ser que a que ficou nos canos dê.
a – não, queria lavar-me a sério, sentir o sabão no cabelo e nas pernas.
b – experimenta. não sei quanto tempo é que eles levam a cortar a água depois do aviso. a mim o cheiro a rato também não me incomoda. será que há algum aqui escondido.
a – não penses nisso. não temos essa sorte. cheira a rato mas não é um rato.
b – é a peste.
a – somos nós. é esta cama. são estes lençóis, com suores que já não querem dizer nada. é a falta de calor, é a falta de frio. é a falta de saber o que fazer…
b – é a peste.
a – é a peste.
b – …experimenta o bidé.
a – não me quero aproximar do bidé. não consigo deixar de rever o sangue que ali escorri. sempre que entro na casa de banho desvio o olhar dali. vai levar muito tempo. isso sim é a peste. as imagens que guardamos. o sangue que escorreu de nós, a dor, o medo, o medo da dor. a dor do medo.
b – nunca percebi porque não me quiseste presente nesse dia. foste tão rude ao afastar-me.
a – o sangue era meu. a dor era minha.
b – o sangue também era meu. era o nosso sangue. e a dor também eu a senti.
a – ao bidé não vou. já nem me quero lavar.
b – sou eu quem agora sangra.
a – então vai lá para dentro. senta-te no bidé. aproveita a água que está estagnada nos canos.
b – o meu sangue não se lava.
a – o sangue nunca se lava. não se apaga. quando se sangra é para sempre. e eu não fui rude contigo. afastei-te, sim, mas não fui rude.
b – não sei que ideia tens tu de rudeza. naquela altura não estar ali a sangrar contigo foi uma rudeza imensa. tu nunca irás perceber isto.
a – então se nunca vou perceber isso não continues a tentar explicar-me.
b – não continuo. deixa-me só ficar aí, deitado sobre ti. deixa-me fingir um abraço.
a – deita-te como quiseres. pára de estar sempre a perguntar se podes fazer isto ou aquilo. faz e pronto. queres deitar-te em cima de mim, deita-te.
b – deito-me.
a – pronto. estás deitado. vês? não muda nada. é por isso que cheira a rato. a peste. sim. a peste. a penetrar nas nossas memórias porque os corpos já estavam impregnados desta merda. deste cheiro. desta falta de água.
b – ouves?
a – o quê? não.
b – água a correr nos canos. há água nos canos…
a – deixa-te estar. lava-me tu. com a peste, com o cheiro a rato. com o teu sangue indelével. agarra-me. lava-me com a tua seiva. espalha-te no meu corpo. na minha peste, no meu sangue indelével. mistura-te na minha seiva e suor. faz.
tratado secreto do teatro # 02
# 02 – voz-off
Pourtant, jétais fort mauvais poète.
Je ne savais pas aller jusqu’au bout.
J’avais faim
Et tous les jours et toutes les femmes dans les cafés et tous les verres
J’aurais voulu les boire et les casser
Et toutes les vitrines et toutes les rues
Et toutes les maisons et tout les viés
Et toutes les roues des fiacres qui tournaient em tourbillons sur les mauvais pavés
J’aurais voulu les plonger dans une fournaise de glaives
Et j’aurais voulu broyer tous les os
Et arracher toutes les langues
Et liquéfier touts cês grands corps étranges et nus les vêtements qui m’affolent…
Blasise Cendrars [Fréderic-Louis Sauser]
in «PROSE DU TRANSSIBÉRIEN ET DE LA PETIT JEANNE DE FRANCE»
Pourtant, jétais fort mauvais poète.
Je ne savais pas aller jusqu’au bout.
J’avais faim
Et tous les jours et toutes les femmes dans les cafés et tous les verres
J’aurais voulu les boire et les casser
Et toutes les vitrines et toutes les rues
Et toutes les maisons et tout les viés
Et toutes les roues des fiacres qui tournaient em tourbillons sur les mauvais pavés
J’aurais voulu les plonger dans une fournaise de glaives
Et j’aurais voulu broyer tous les os
Et arracher toutes les langues
Et liquéfier touts cês grands corps étranges et nus les vêtements qui m’affolent…
Blasise Cendrars [Fréderic-Louis Sauser]
in «PROSE DU TRANSSIBÉRIEN ET DE LA PETIT JEANNE DE FRANCE»
segunda-feira, fevereiro 13, 2006
tratado secreto do teatro #2
# 2 – cena segunda
b – ainda preciso tanto de te beijar e cheirar o corpo…
a – um dia comi um cão. num restaurante chinês, clandestino. fomos ao canil nas traseiras e escolhemos um. não tinha um olho mas era encorpado. o olho não fazia falta… iam cozinhá-lo. soube-me bem. depois tive medo de ficar envenenada. mas não fiquei o cão era sudável.
b – …preciso ainda de te tocar os braços, as pernas. entrar nelas. porque é que não me não me deixas cheirar-te? entrar, em ti, no teu cheiro. sorri-me.
a – …sabia a frango. hoje em dia sabe tudo a frango. então nos restaurantes chineses sabe ainda mais. até o arroz sabe a frango.
b – não tens vontade de mim?
a – não te sei responder. não interessa responder-te. mas podes tocar-me, nunca disse que não podias tocar-me. podes cheirar-me. nunca disse que não me podias cheirar. podes até beijar-me. nunca te disse que não me podias beijar.
b – porque é que me estás a contar a história do cão, agora que estamos os dois aqui deitados, tão perto, tão próximos?
a – porque estou a tentar lembrar-me de coisas que senti. de outras coisas que senti. de coisas que não senti contigo. especialmente de coisas que não senti contigo. não me quero lembrar de ti dentro de mim. sei que me hei-de lembrar para sempre. é impossível esquecer não é? mas agora… e a história do cão foi uma história importante para mim. nesse dia senti um poder máximo sobre outro ser. um poder malévolo. escolhi-o e mandei-o matar e cozinhar e comi-o e soube-me bem. nunca mais vivi uma brutalidade assim. esse cão está mais dentro de mim que qualquer outro ser na minha vida.
b – assustas-me tanto. vou buscar leite. os lençóis estão encharcados em suor. eu estou encharcado em suor. não sei se meu se teu. é insuportável de qualquer das maneiras. queres leite?
a – não. traz bolachas, se ainda houver.
b – ESTUPIDEZ! NÃO HÁ LEITE, NEM BOLACHAS, NEM NADA. DEIXÁMOS ACABAR TUDO, NÃO TE LEMBRAS? PARA NÃO TERMOS DE…
a – não grites, vem para aqui…
b – queres que vá à rua caçar um cão? podias metê-lo na cama. fazer amor com ele e depois comê-lo cru ou cozinhado. ou eu. eu também podia fazer amor com ele e comê-lo contigo ou sozinho.
a – não, não quero que vás caçar um cão. pelo menos para mim. tu lá saberás o queres para ti. faz amor com o que quiseres, come o que quiseres.
b – ontem quando ia apanhar o barco para o barreiro dei com umas trinta pessoas de luto. a maioria crianças. não choravam. será que iam para um enterro ou vinham de um enterro? já não há diferença entre ir e vir. talvez nunca tenha havido. especialmente quando se está de luto. é impressionante ver trinta pessoas de assim de negro carregado. a maioria crianças, a entrar para um barco. no barreiro seguiram em fila. não sei que horas eram. há muitos anos que ninguém acerta o relógio «reguladora» da estação. no barreiro são sempre três e vinte cinco. da tarde ou da manhã. depois fui até ao esqueleto da fábrica. gosto de olhar para um rapaz que está sempre sentado com o olhar parado, virado para o esgoto do rio. gosto de ficar a vê-lo e imaginar que és tu. vejo nele os teus cabelos. têm o mesmo cruzar de pernas sabes? tem sempre um garfo na mão. um garfo de plástico. castanho de porcaria. não fala. não sei se ouve. não sei vê. imagino-o despido, como tu estás agora aqui na cama. imagino que o acaricio e ele responde às minhas carícias espetando-me o garfo. estão sempre cães vadios por lá. podia ter-te trazido um. um especial.
a – podias ter trazido o rapaz. tiveste medo? quiseste-o só para ti?
b – não, se o quisesse só para mim não te estava a contar que vou ao barreiro para ver aquele rapaz.
a – não encontras um rapaz parecido mais perto. poupavas a viagem.
b – faz-me bem atravessar o rio. além disso, já te disse, és tu que vejo nele e nunca encontrei ninguém tão tu ao meu olhar como aquele rapaz.
a – agora estás aqui. podes olhar para mim, já despida, e quem sabe imaginar o rapaz. podes fazer tudo ao contrário. imagina que eu sou o rapaz do barreiro e que tenho um garfo sujo de plástico para espetar na tua pele.
b – talvez faça isso, sim. porque não.
a – então olha-me bem. procura em cada pedacinho de mim o rapaz do barreiro.
b – sabes que não consigo só olhar-te. ou se te olho a minha cabeça enche-se de um vazio de lágrimas e eu não quero chorar porque sei que tu já não sentes as minhas lágrimas.
a – fala-me do rapaz.
b – já falei. procuro nele a pele que agora em ti é intocável. imagino nele o amor e os beijos. as conversas longas no sofá…
a – mas como é ele?
b – fisicamente?
a – sim, fisicamente.
b – nunca o fixei. só o imagino, à distância. fixei o garfo porque é insólito. mas de resto o que me interessa é que quando o olho te vejo a ti e nesses momentos tudo volta a ser como dantes. percebo que não errei em nada. que tu não erraste em nada. que é o inevitável que nos engole até desaparecermos um do outro. não fixo nada nele. vejo-o mas não o quero conhecer. quero tê-lo. dormir com ele para dormir contigo. imagino-me a adormecer abraçado a ele como se estivesse abraçado a ti, a adormecer.
a – percebo. deixa-me abraçar-te. e enquanto te abraço pensa nele. imagina que me estás a ter através dele apesar de ser o meu corpo que te abraça. o meu corpo que já não tens. talvez assim possas voltar a tê-lo, a ter-me. à minha pele, mas através da invocação desse rapaz do barreiro.
b – sim abraça-me, meu rapaz, meu tu. nesta cama. junto à velha fábrica.
b – ainda preciso tanto de te beijar e cheirar o corpo…
a – um dia comi um cão. num restaurante chinês, clandestino. fomos ao canil nas traseiras e escolhemos um. não tinha um olho mas era encorpado. o olho não fazia falta… iam cozinhá-lo. soube-me bem. depois tive medo de ficar envenenada. mas não fiquei o cão era sudável.
b – …preciso ainda de te tocar os braços, as pernas. entrar nelas. porque é que não me não me deixas cheirar-te? entrar, em ti, no teu cheiro. sorri-me.
a – …sabia a frango. hoje em dia sabe tudo a frango. então nos restaurantes chineses sabe ainda mais. até o arroz sabe a frango.
b – não tens vontade de mim?
a – não te sei responder. não interessa responder-te. mas podes tocar-me, nunca disse que não podias tocar-me. podes cheirar-me. nunca disse que não me podias cheirar. podes até beijar-me. nunca te disse que não me podias beijar.
b – porque é que me estás a contar a história do cão, agora que estamos os dois aqui deitados, tão perto, tão próximos?
a – porque estou a tentar lembrar-me de coisas que senti. de outras coisas que senti. de coisas que não senti contigo. especialmente de coisas que não senti contigo. não me quero lembrar de ti dentro de mim. sei que me hei-de lembrar para sempre. é impossível esquecer não é? mas agora… e a história do cão foi uma história importante para mim. nesse dia senti um poder máximo sobre outro ser. um poder malévolo. escolhi-o e mandei-o matar e cozinhar e comi-o e soube-me bem. nunca mais vivi uma brutalidade assim. esse cão está mais dentro de mim que qualquer outro ser na minha vida.
b – assustas-me tanto. vou buscar leite. os lençóis estão encharcados em suor. eu estou encharcado em suor. não sei se meu se teu. é insuportável de qualquer das maneiras. queres leite?
a – não. traz bolachas, se ainda houver.
b – ESTUPIDEZ! NÃO HÁ LEITE, NEM BOLACHAS, NEM NADA. DEIXÁMOS ACABAR TUDO, NÃO TE LEMBRAS? PARA NÃO TERMOS DE…
a – não grites, vem para aqui…
b – queres que vá à rua caçar um cão? podias metê-lo na cama. fazer amor com ele e depois comê-lo cru ou cozinhado. ou eu. eu também podia fazer amor com ele e comê-lo contigo ou sozinho.
a – não, não quero que vás caçar um cão. pelo menos para mim. tu lá saberás o queres para ti. faz amor com o que quiseres, come o que quiseres.
b – ontem quando ia apanhar o barco para o barreiro dei com umas trinta pessoas de luto. a maioria crianças. não choravam. será que iam para um enterro ou vinham de um enterro? já não há diferença entre ir e vir. talvez nunca tenha havido. especialmente quando se está de luto. é impressionante ver trinta pessoas de assim de negro carregado. a maioria crianças, a entrar para um barco. no barreiro seguiram em fila. não sei que horas eram. há muitos anos que ninguém acerta o relógio «reguladora» da estação. no barreiro são sempre três e vinte cinco. da tarde ou da manhã. depois fui até ao esqueleto da fábrica. gosto de olhar para um rapaz que está sempre sentado com o olhar parado, virado para o esgoto do rio. gosto de ficar a vê-lo e imaginar que és tu. vejo nele os teus cabelos. têm o mesmo cruzar de pernas sabes? tem sempre um garfo na mão. um garfo de plástico. castanho de porcaria. não fala. não sei se ouve. não sei vê. imagino-o despido, como tu estás agora aqui na cama. imagino que o acaricio e ele responde às minhas carícias espetando-me o garfo. estão sempre cães vadios por lá. podia ter-te trazido um. um especial.
a – podias ter trazido o rapaz. tiveste medo? quiseste-o só para ti?
b – não, se o quisesse só para mim não te estava a contar que vou ao barreiro para ver aquele rapaz.
a – não encontras um rapaz parecido mais perto. poupavas a viagem.
b – faz-me bem atravessar o rio. além disso, já te disse, és tu que vejo nele e nunca encontrei ninguém tão tu ao meu olhar como aquele rapaz.
a – agora estás aqui. podes olhar para mim, já despida, e quem sabe imaginar o rapaz. podes fazer tudo ao contrário. imagina que eu sou o rapaz do barreiro e que tenho um garfo sujo de plástico para espetar na tua pele.
b – talvez faça isso, sim. porque não.
a – então olha-me bem. procura em cada pedacinho de mim o rapaz do barreiro.
b – sabes que não consigo só olhar-te. ou se te olho a minha cabeça enche-se de um vazio de lágrimas e eu não quero chorar porque sei que tu já não sentes as minhas lágrimas.
a – fala-me do rapaz.
b – já falei. procuro nele a pele que agora em ti é intocável. imagino nele o amor e os beijos. as conversas longas no sofá…
a – mas como é ele?
b – fisicamente?
a – sim, fisicamente.
b – nunca o fixei. só o imagino, à distância. fixei o garfo porque é insólito. mas de resto o que me interessa é que quando o olho te vejo a ti e nesses momentos tudo volta a ser como dantes. percebo que não errei em nada. que tu não erraste em nada. que é o inevitável que nos engole até desaparecermos um do outro. não fixo nada nele. vejo-o mas não o quero conhecer. quero tê-lo. dormir com ele para dormir contigo. imagino-me a adormecer abraçado a ele como se estivesse abraçado a ti, a adormecer.
a – percebo. deixa-me abraçar-te. e enquanto te abraço pensa nele. imagina que me estás a ter através dele apesar de ser o meu corpo que te abraça. o meu corpo que já não tens. talvez assim possas voltar a tê-lo, a ter-me. à minha pele, mas através da invocação desse rapaz do barreiro.
b – sim abraça-me, meu rapaz, meu tu. nesta cama. junto à velha fábrica.
domingo, fevereiro 12, 2006
tratado secreto do teatro #1
# 1 – cena primeira
a – o que é que estás a fazer?
b – a beber chá.
a – pensei…
b – ainda cá estou e a beber chá.
a – não tens frio, assim, sem roupa, só com um xaile?
b – se tivesse frio tapava-me, ou vestia-me.
a – já toda a gente começou o dia. toda a gente parece que tem um dia para começar. há milhares de carros na rua. há milhares de cabeças. vistas daqui, desta janela medonha – dantes adorávamos esta janela – parecem todas organizadas. dá ideia que o vazio não cabe em ninguém. será que toda a gente tem mesmo tanto para fazer? tenho vontade de me engolir sabes? se hoje é o último dia, queria engolir-me e digerir-me, defecar-me. transfigurar-me. porque é que viemos para um terceiro andar?
b – foi a casa que encontrámos. tínhamos pressa.
a – dessas coisas lembras-te sempre. tenho frio quando olho pela janela. não quero voltar à rua. a nenhuma rua. queria que os pássaros morressem todos. que as árvores implodissem. queria ter fome. queria lembrar-me do que é ter fome. ao contrário do que pensas eu não odeio as coisas…
b – eu sei que não… eu sei mais de ti do que imaginas, mas hoje podes odiar tudo. hoje eu também odeio tudo. principalmente essa tua imagem junto à janela, «à nossa janela», a essa janela medonha como tu dizes… não quero falar mais.
a – …eu não odeio tudo, mas tenho medo dos pássaros. não odeio nada aliás…
b – claro.
a – a única coisa que gosto no rio é ver os navios a zarpar. os navios são coisas intocáveis. majestosas. gosto de imaginar os marinheiros. os cozinheiros. os mastros. os motores. é tudo inatingível neste rio. sinto uma sombra a tocar-me, a acariciar-me as pernas. já há uns meses que sinto isto. sombras materiais que me tocam e beijam. sombras escarlate que me extasiam. tenho medo das sombras mas preciso delas. sobretudo hoje.
b – não penses.
a – penso. quero pensar. quero pensar porque é que vou ficar sozinho com esta cidade pela frente, cheia de repteis e animais, e palavras de costas voltadas para as bocas que as proferem. quero sobreviver como as flores. e ter fome. ter a memória do que era ter fome. tens a certeza que não tens frio?… queres que vá para ao pé de ti?... e tu pensas em quê?
a – no chá.
a – o que é que estás a fazer?
b – a beber chá.
a – pensei…
b – ainda cá estou e a beber chá.
a – não tens frio, assim, sem roupa, só com um xaile?
b – se tivesse frio tapava-me, ou vestia-me.
a – já toda a gente começou o dia. toda a gente parece que tem um dia para começar. há milhares de carros na rua. há milhares de cabeças. vistas daqui, desta janela medonha – dantes adorávamos esta janela – parecem todas organizadas. dá ideia que o vazio não cabe em ninguém. será que toda a gente tem mesmo tanto para fazer? tenho vontade de me engolir sabes? se hoje é o último dia, queria engolir-me e digerir-me, defecar-me. transfigurar-me. porque é que viemos para um terceiro andar?
b – foi a casa que encontrámos. tínhamos pressa.
a – dessas coisas lembras-te sempre. tenho frio quando olho pela janela. não quero voltar à rua. a nenhuma rua. queria que os pássaros morressem todos. que as árvores implodissem. queria ter fome. queria lembrar-me do que é ter fome. ao contrário do que pensas eu não odeio as coisas…
b – eu sei que não… eu sei mais de ti do que imaginas, mas hoje podes odiar tudo. hoje eu também odeio tudo. principalmente essa tua imagem junto à janela, «à nossa janela», a essa janela medonha como tu dizes… não quero falar mais.
a – …eu não odeio tudo, mas tenho medo dos pássaros. não odeio nada aliás…
b – claro.
a – a única coisa que gosto no rio é ver os navios a zarpar. os navios são coisas intocáveis. majestosas. gosto de imaginar os marinheiros. os cozinheiros. os mastros. os motores. é tudo inatingível neste rio. sinto uma sombra a tocar-me, a acariciar-me as pernas. já há uns meses que sinto isto. sombras materiais que me tocam e beijam. sombras escarlate que me extasiam. tenho medo das sombras mas preciso delas. sobretudo hoje.
b – não penses.
a – penso. quero pensar. quero pensar porque é que vou ficar sozinho com esta cidade pela frente, cheia de repteis e animais, e palavras de costas voltadas para as bocas que as proferem. quero sobreviver como as flores. e ter fome. ter a memória do que era ter fome. tens a certeza que não tens frio?… queres que vá para ao pé de ti?... e tu pensas em quê?
a – no chá.
tratado secreto do teatro # 01
frederico mira george
tratado secreto do teatro
40 textos dramáticos para dois actores
# 01 - voz-off
As ruas ficam desertas e tornam-se mais escuras.
Cambaleio como um bêbedo pelos passeios.
Tenho medo das sombras enormes que as casas projectam.
Tenho medo. Alguém me segue. Não ouso voltar a cabeça.
Um andar claudicante salta cada vez mais perto.
Tenho medo. Sinto vertigens. E de propósito paro.
Um tipo medonho lançou-me um olhar
Cortante como um punhal, depois, pérfido, passou.
Senhor, nada mudou desde que já não sois Rei.
O Mal fez uma muleta da vossa Cruz.
Blasise Cendrars (Fréderic-Louis Sauser)
in «PÁSCOA EM NOVA IORQUE»
# 0 - voz-off
este texto é dedicado à estrutura de criação artística KARNART C. P. O. A. A. e, em especial, ao seu director, luís castro.
fmg, fevereiro de 2006
tratado secreto do teatro
40 textos dramáticos para dois actores
# 01 - voz-off
As ruas ficam desertas e tornam-se mais escuras.
Cambaleio como um bêbedo pelos passeios.
Tenho medo das sombras enormes que as casas projectam.
Tenho medo. Alguém me segue. Não ouso voltar a cabeça.
Um andar claudicante salta cada vez mais perto.
Tenho medo. Sinto vertigens. E de propósito paro.
Um tipo medonho lançou-me um olhar
Cortante como um punhal, depois, pérfido, passou.
Senhor, nada mudou desde que já não sois Rei.
O Mal fez uma muleta da vossa Cruz.
Blasise Cendrars (Fréderic-Louis Sauser)
in «PÁSCOA EM NOVA IORQUE»
# 0 - voz-off
este texto é dedicado à estrutura de criação artística KARNART C. P. O. A. A. e, em especial, ao seu director, luís castro.
fmg, fevereiro de 2006
álvaro lapa (évora 1939 - porto 2006)
com a morte de álvaro lapa, poucos dias depois de antónio gancho, desaparece o último dos quatro anjos da mudança que évora ofereceu à arte em portugal. évora que os afastou com a ignorância, a pequenez, a beatice, a tacanhez que ainda hoje a governa.
joaquim bravo.antónio palolo.antónio gancho.álvaro lapa.
consumiram os seus corpos em tanta oferenda dada.
sábado, fevereiro 11, 2006
tratado secreto da cidade # 40
40 – décima noite – 40 de dezembro – évora
2h00
regresso ao quarto de hotel onde um crucifixo fixa o centro da cama. a um lado – esquerdo –jesus e o seu sagrado coração em prantos de ouro. a outro – direito – maria despida de véus mostra um semelhante relógio como uma rosa. (na cómoda. um cartão. de visita. florescentes letras verdes: bem vindo à muralha de elsinore.) há velas acesas. almofadas no chão para o sexo ou a oração. há gemidos na rua, punhais em acção. espadas abrindo braços flamejantes, uma lua ausente. e em mim está buda e a sua pequena semente a fecundar. renascer indiferente à matéria onde oxidados os meus olhos cegam. estou na cidade – há sirenes de ambulância, portanto estou na cidade –, o metropolitano faz tremer o quarto. todos os meus mortos aparecem oferendando-me hóstias e cálices cheios de terra. hamlet, orpheu, medeia. minha pobre mãe sem pé. tenho um ovo a tremer nas mãos e as veias a entupir. quero fugir para a rua, quero encontrar esses milhões de pessoas que apregoam existir. alguém há-de me amar. quero entrar em urinóis ou em restaurantes. reconhecer no peito a humanidade cordial que beijará o sangue do cristo que sou, se me deixarem. não quero aprender mais nada. quero ficar só no meio da rua à espera de encontrar. não quero voltar a ler. quero detestar a beleza e toda a sabedoria do universo. quero cair para o lado como os cães ou ladrar de vento em poupa. abusar do meu corpo e do corpo dos outros. engolir árvores. pernoitar em camas desconhecidas com gentes desconhecidas. quero abrir o tesouro dos meus dentes e distribuir dentadas a todos os amantes que ainda existem
.....ou não,
.....ou ser feliz, abrir os poros, cair em pequenas partículas num mar de imensas e depuradas romãs. sangrá-las, reduzir a pó toda a dor. ter alguém dentro de mim para sempre. quebrar as rédeas da saliva que me falta como me falta o teu beijo. os campos não perdoam não julgam. são pura seiva relembrando juventude. tudo foi um peixe dentro de um sonho de facas e chicotes. quero arder como um livro em alexandria
.....mas onde estou?
.....num quarto de hotel junto a um cesto de maçãs sob um crucifixo marcando o centro da cama. estarei sozinho na eternidade nocturna. sou um vaso a quem não foi dada a água e o êxtase de ser tocado. deixo-vos o clamor da minha despedida num poema ou numa flor-mesa onde escrevo as primeiras palavras de um novo evangelho: buda em mim abrindo-se na cruz sacerdotal que me foi imposta. hei-de consumir todo o líquido que os corpos possuem, esta noite, neste quarto, sou uma pérola inteligente que há-de rolar como uma cabeça cortada sobre o colo virgem do amor
.....que
.....contenho
.....no útero deste último fôlego.
2h00
regresso ao quarto de hotel onde um crucifixo fixa o centro da cama. a um lado – esquerdo –jesus e o seu sagrado coração em prantos de ouro. a outro – direito – maria despida de véus mostra um semelhante relógio como uma rosa. (na cómoda. um cartão. de visita. florescentes letras verdes: bem vindo à muralha de elsinore.) há velas acesas. almofadas no chão para o sexo ou a oração. há gemidos na rua, punhais em acção. espadas abrindo braços flamejantes, uma lua ausente. e em mim está buda e a sua pequena semente a fecundar. renascer indiferente à matéria onde oxidados os meus olhos cegam. estou na cidade – há sirenes de ambulância, portanto estou na cidade –, o metropolitano faz tremer o quarto. todos os meus mortos aparecem oferendando-me hóstias e cálices cheios de terra. hamlet, orpheu, medeia. minha pobre mãe sem pé. tenho um ovo a tremer nas mãos e as veias a entupir. quero fugir para a rua, quero encontrar esses milhões de pessoas que apregoam existir. alguém há-de me amar. quero entrar em urinóis ou em restaurantes. reconhecer no peito a humanidade cordial que beijará o sangue do cristo que sou, se me deixarem. não quero aprender mais nada. quero ficar só no meio da rua à espera de encontrar. não quero voltar a ler. quero detestar a beleza e toda a sabedoria do universo. quero cair para o lado como os cães ou ladrar de vento em poupa. abusar do meu corpo e do corpo dos outros. engolir árvores. pernoitar em camas desconhecidas com gentes desconhecidas. quero abrir o tesouro dos meus dentes e distribuir dentadas a todos os amantes que ainda existem
.....ou não,
.....ou ser feliz, abrir os poros, cair em pequenas partículas num mar de imensas e depuradas romãs. sangrá-las, reduzir a pó toda a dor. ter alguém dentro de mim para sempre. quebrar as rédeas da saliva que me falta como me falta o teu beijo. os campos não perdoam não julgam. são pura seiva relembrando juventude. tudo foi um peixe dentro de um sonho de facas e chicotes. quero arder como um livro em alexandria
.....mas onde estou?
.....num quarto de hotel junto a um cesto de maçãs sob um crucifixo marcando o centro da cama. estarei sozinho na eternidade nocturna. sou um vaso a quem não foi dada a água e o êxtase de ser tocado. deixo-vos o clamor da minha despedida num poema ou numa flor-mesa onde escrevo as primeiras palavras de um novo evangelho: buda em mim abrindo-se na cruz sacerdotal que me foi imposta. hei-de consumir todo o líquido que os corpos possuem, esta noite, neste quarto, sou uma pérola inteligente que há-de rolar como uma cabeça cortada sobre o colo virgem do amor
.....que
.....contenho
.....no útero deste último fôlego.
tratado secreto da cidade # 39
39 – trigésimo dia – 30 de dezembro – évora
15h45
o que importa é não ter boca. coser as palavras e sem sorriso cortar todos os membros. dormir de esquecimento o pouco que foi sentido.
15h45
o que importa é não ter boca. coser as palavras e sem sorriso cortar todos os membros. dormir de esquecimento o pouco que foi sentido.
Luís Castro responde a João César das Neves
RESPOSTA ABERTA a ARTIGO OFENSIVO de JOÃO CÉSAR DAS NEVES, publicado no DN do dia 06 de Janeiro de 2006
Senhor César das Neves,
Tenho quarenta e cinco anos de idade, chamo-me Luís Castro, sou produtor, encenador e actor, sou licenciado em Estudos Italianos e em Medicina Veterinária, e dirijo uma Associação Artística que em Lisboa cria espectáculos que cruzam o Teatro e as Artes Plásticas com a principal motivação de uma intervenção social que contrarie opiniões castrantes e retrógradas como as que o senhor expressa no seu artigo escrito no Diário de Notícias do passado dia 06 de Janeiro.
O senhor lembra-me um inquisidor extraterrestre trancado num corredor, iluminadíssimo artificialmente por todos os lados, fechado nos seus valores de cristal, aterrorizado pelo furacão que aí vem e que vai, com certeza, quebrar-lhe as loiças e porcelanas, partir-lhe as portas, violar-lhe as janelas.
Senhor César Das Neves, deixe viver quem tem posições diferentes das suas, quem tem opções diferentes das suas, quem quer ser feliz na sua genuinidade. Não seja chato, não seja imbecil, não seja antipático, não seja casmurro. Afinal até se diz que é professor universitário, tem imensas pós-graduações e mestrados, é quase culto portanto… Reconsidere. Deixe de nos (sim, porque eu faço parte do grupo pelos seus a abater) bombardear com as suas opiniões ultra conservadoras, deixe de nos querer matar, minimizar, enquistar, prender, torturar, abafar, babar em cima.
Repare que os grandes valores que defende, a Igreja presumo e a família paimãefilho una e imaculada, continuam a ser os grandes responsáveis pelo facto de o mundo, a espécie humana sobretudo, não evoluírem como naturalmente fariam. E de soçobrarem, morrerem em condições absolutamente indignas. Se cada indivíduo tivesse, por crescimento e por nunca lha tolherem, liberdade genuína, consciência dos outros e da sua diferença, se se respeitasse igualmente a mulher e o homem biológicos ou opcionais, se nos afirmássemos de acordo com a natureza e respondêssemos ao chamamento da arte, se adoptássemos todas as crianças abandonadas e olhássemos para o mundo com verdade, então senhor Das Neves garanto-lhe que ele seria completamente diferente, seria um lugar pacífico, maturo e prolífico.
Um lugar em que pessoas ?!!! frias, brancas, pálidas, torturadas e torturantes como o senhor, só caberiam depois de vestir roupas coloridas e usar flores no cabelo, depois de acariciarem e serem acariciadas, depois de ficarem uma noite inteira acordadas a ver as estrelas empalidecerem no céu e o sol a nascer grande e vermelho numa savana africana; dessa mesma África que hoje definha e morre indignamente por causa do vosso irresponsável e egoísta preconceito… seu, do senhor Ratzinger, e de outras moscas de gado, zumbideiras e estonteadas, que tentam a toda a força impedir que o planeta evolua! E que evolua naturalmente, percebe, naturalmente, como defendia Darwin já então perseguido pelos seus – seus senhor Das Neves! – antecessores…
Não consigo entender como, em pleno século XXI e depois de tudo o que o Homem devia ter aprendido com os seus erros, há pessoas que ainda pensam como o senhor! Desde que me descobri enquanto homem e cidadão passaram-se vinte e cinco anos… Vinte e cinco anos, em que homens e mulheres, cidadãos e cidadãs, lutam pela justiça social e pela liberdade de todos… mas sempre, sempre contra outros, contra aqueles que existem sempre, viscosos, palados…!
E nós é que fazemos parte das hostes inimigas!… Os inimigos são vocês, de vocês mesmos e dos vossos pobres suicidados filhos! Mais ninguém! E não percebo como há instituições que lhe permitem exercer o ensino.
Fixe bem o meu nome, porque eu fixei o seu. Estamos para o mundo e a sociedade como a noite para o dia ou o céu para o inferno.
E com que imenso prazer serei o seu inferno. O menino dança?
Luís Castro
Homem, encenador, actor, homossexual, criador, animal, artista, lutador, cineasta, instalador, bissexual, agricultor, cão e, especialmente para si, com um orgulho desmedido, veterinário, excremento, sedimento, borra, escória, matéria fecal!
Senhor César das Neves,
Tenho quarenta e cinco anos de idade, chamo-me Luís Castro, sou produtor, encenador e actor, sou licenciado em Estudos Italianos e em Medicina Veterinária, e dirijo uma Associação Artística que em Lisboa cria espectáculos que cruzam o Teatro e as Artes Plásticas com a principal motivação de uma intervenção social que contrarie opiniões castrantes e retrógradas como as que o senhor expressa no seu artigo escrito no Diário de Notícias do passado dia 06 de Janeiro.
O senhor lembra-me um inquisidor extraterrestre trancado num corredor, iluminadíssimo artificialmente por todos os lados, fechado nos seus valores de cristal, aterrorizado pelo furacão que aí vem e que vai, com certeza, quebrar-lhe as loiças e porcelanas, partir-lhe as portas, violar-lhe as janelas.
Senhor César Das Neves, deixe viver quem tem posições diferentes das suas, quem tem opções diferentes das suas, quem quer ser feliz na sua genuinidade. Não seja chato, não seja imbecil, não seja antipático, não seja casmurro. Afinal até se diz que é professor universitário, tem imensas pós-graduações e mestrados, é quase culto portanto… Reconsidere. Deixe de nos (sim, porque eu faço parte do grupo pelos seus a abater) bombardear com as suas opiniões ultra conservadoras, deixe de nos querer matar, minimizar, enquistar, prender, torturar, abafar, babar em cima.
Repare que os grandes valores que defende, a Igreja presumo e a família paimãefilho una e imaculada, continuam a ser os grandes responsáveis pelo facto de o mundo, a espécie humana sobretudo, não evoluírem como naturalmente fariam. E de soçobrarem, morrerem em condições absolutamente indignas. Se cada indivíduo tivesse, por crescimento e por nunca lha tolherem, liberdade genuína, consciência dos outros e da sua diferença, se se respeitasse igualmente a mulher e o homem biológicos ou opcionais, se nos afirmássemos de acordo com a natureza e respondêssemos ao chamamento da arte, se adoptássemos todas as crianças abandonadas e olhássemos para o mundo com verdade, então senhor Das Neves garanto-lhe que ele seria completamente diferente, seria um lugar pacífico, maturo e prolífico.
Um lugar em que pessoas ?!!! frias, brancas, pálidas, torturadas e torturantes como o senhor, só caberiam depois de vestir roupas coloridas e usar flores no cabelo, depois de acariciarem e serem acariciadas, depois de ficarem uma noite inteira acordadas a ver as estrelas empalidecerem no céu e o sol a nascer grande e vermelho numa savana africana; dessa mesma África que hoje definha e morre indignamente por causa do vosso irresponsável e egoísta preconceito… seu, do senhor Ratzinger, e de outras moscas de gado, zumbideiras e estonteadas, que tentam a toda a força impedir que o planeta evolua! E que evolua naturalmente, percebe, naturalmente, como defendia Darwin já então perseguido pelos seus – seus senhor Das Neves! – antecessores…
Não consigo entender como, em pleno século XXI e depois de tudo o que o Homem devia ter aprendido com os seus erros, há pessoas que ainda pensam como o senhor! Desde que me descobri enquanto homem e cidadão passaram-se vinte e cinco anos… Vinte e cinco anos, em que homens e mulheres, cidadãos e cidadãs, lutam pela justiça social e pela liberdade de todos… mas sempre, sempre contra outros, contra aqueles que existem sempre, viscosos, palados…!
E nós é que fazemos parte das hostes inimigas!… Os inimigos são vocês, de vocês mesmos e dos vossos pobres suicidados filhos! Mais ninguém! E não percebo como há instituições que lhe permitem exercer o ensino.
Fixe bem o meu nome, porque eu fixei o seu. Estamos para o mundo e a sociedade como a noite para o dia ou o céu para o inferno.
E com que imenso prazer serei o seu inferno. O menino dança?
Luís Castro
Homem, encenador, actor, homossexual, criador, animal, artista, lutador, cineasta, instalador, bissexual, agricultor, cão e, especialmente para si, com um orgulho desmedido, veterinário, excremento, sedimento, borra, escória, matéria fecal!
sexta-feira, fevereiro 10, 2006
tratado secreto da cidade # 38
# 38 – vigésimo oitavo dia – 38 de dezembro – évora
9h31
. estranhei nessa altura a falta que senti no peito só por saber que irias estar fora durante uns míseros quinze dias. quando voltaste da viagem trazias o brilho e o encanto das fadas e no meu peito plantaram-se sementes de cidreira e tília. odores que durante muito tempo o meu corpo misturava no sangue e no sopro, no verbo, no sémen. meu amado. quero-te tanto bem. tanta paz: meu gato invisível. não há nada de mais material que um gato etéreo. já passou muito tempo? demasiado tempo? ainda esta madrugada senti o teu corpo aninhar-se em mim na cama onde num plano outro, imenso e cerrado aos olhares profanos, posso comunicar com seres misteriosos, detentores de sabedoria, força, beleza, transparência. seres que também encontro na rua, a caminho dos seus esforços, das suas penas, sisífos arrastando as suas pedras na escalada da montanha. mas no sono de vigília que aprendi a ter, todos esses seres – o senhor do banco, a senhora da tabacaria, o motorista do táxi, o médico, aquele que anda de porta em porta de jornal na mão à procura de emprego – me aparecem em todo a sua grande glória e alvez. também tu gato, nascido não gerado, vivo não mortal, me apareces e revelas baixinho os segredos que te são permitidos revelar e que eu não decoro para te proteger do meu pensamento impuro
quando regressaste dessa viagem soube que te amaria para toda a vida. vida que acaba amanhã
o nosso amor cessa hoje,
estas palavras são a despedida. não as te
ria escrito se esta noite não me tivesses visitado e doado um silêncio tão fecundo para que tenha uma partida leve e dourada. diz-me, onde estarei amanhã depois da cessação do alento? em que cipreste? em que cidreira? em que tília? levo o brilho e o teu encanto de fada. se um dia nos reencontrarmos na raiz de uma outra árvore, gostaria que me dissesses porque me escolheste, porque…
9h31
. estranhei nessa altura a falta que senti no peito só por saber que irias estar fora durante uns míseros quinze dias. quando voltaste da viagem trazias o brilho e o encanto das fadas e no meu peito plantaram-se sementes de cidreira e tília. odores que durante muito tempo o meu corpo misturava no sangue e no sopro, no verbo, no sémen. meu amado. quero-te tanto bem. tanta paz: meu gato invisível. não há nada de mais material que um gato etéreo. já passou muito tempo? demasiado tempo? ainda esta madrugada senti o teu corpo aninhar-se em mim na cama onde num plano outro, imenso e cerrado aos olhares profanos, posso comunicar com seres misteriosos, detentores de sabedoria, força, beleza, transparência. seres que também encontro na rua, a caminho dos seus esforços, das suas penas, sisífos arrastando as suas pedras na escalada da montanha. mas no sono de vigília que aprendi a ter, todos esses seres – o senhor do banco, a senhora da tabacaria, o motorista do táxi, o médico, aquele que anda de porta em porta de jornal na mão à procura de emprego – me aparecem em todo a sua grande glória e alvez. também tu gato, nascido não gerado, vivo não mortal, me apareces e revelas baixinho os segredos que te são permitidos revelar e que eu não decoro para te proteger do meu pensamento impuro
quando regressaste dessa viagem soube que te amaria para toda a vida. vida que acaba amanhã
o nosso amor cessa hoje,
estas palavras são a despedida. não as te
ria escrito se esta noite não me tivesses visitado e doado um silêncio tão fecundo para que tenha uma partida leve e dourada. diz-me, onde estarei amanhã depois da cessação do alento? em que cipreste? em que cidreira? em que tília? levo o brilho e o teu encanto de fada. se um dia nos reencontrarmos na raiz de uma outra árvore, gostaria que me dissesses porque me escolheste, porque…
quinta-feira, fevereiro 09, 2006
tratado secreto da cidade # 37
# 37 – vigésimo sétimo dia – 37 de dezembro – évora
17h07
não é a cabeça que me repugna no animal. sei que é costume as pessoas se sentirem-se repugnadas pela cabeça dos abutres. por isso e por saberem que eles descarnam os mortos. mas a mim nada neles me repugna. sei o que ele espera, porque está aqui e respeito-o por isso. é o cansaço que me desespera. é extenuante tê-lo por perto há vinte e quatro horas, talvez mais. sem uma palavra, sem um olhar de compreensível mensagem. nada, só os dois. pele e penas lado a lado numa espera que se está a revelar interminável. sei que ele vencerá, mas o saramago não aceita a vitória assim de mão beijada. ele sabe que só é verdadeiramente vencedor quando eu cair aos seus pés. irreversivelmente. genuinamente. por desistência seria até uma humilhação para ele. saber isto ainda me faz respeitar mais o pássaro. a questão é que a resistência do corpo humano é brutal. e ele sabe que é assim. é por isso que está preparado para uma espera tão longa, a que for necessária. eu é que não estou preparado. quando o invoquei pensei que só viesse quando a morte estivesse consumada. queria ver o meu corpo ainda quente a ser limpo pelo bico em sabre do abutre. queria assistir com deleite à desocultação lenta dos meus ossos, olhá-los já limpos e prontos a reutilizar. mas enganei-me. mal foi invocada a presença do bicho logo ele se materializou num voo vindo sabe-se lá donde… quando o olho sei que ele me respeita. não é um cadáver que ele quer, é um dador de vida em forma de morte… nunca pensei que isto levasse tanto tempo… nunca pensei que o abutre comparecesse tão depressa… nunca pensei que o meu corpo estivesse ainda tão longe da desagregação que aparenta. nunca pensei. ou pensei sem saber o que pensava. fiz tudo mal. planeei tudo sem saber o que fazia e agora é irreversível, ele continuará aqui, até que me consuma com a verdade que ele exige. e o pior é que até a um abutre tenho medo de desapontar. sei que se desse um tiro na cabeça ele nem me tocaria por desprezo e nojo. da mesma forma, não tenho por mim suficiente amor para lhe dar um tiro e acabar com isto. será uma longa e insuportável noite.
17h07
não é a cabeça que me repugna no animal. sei que é costume as pessoas se sentirem-se repugnadas pela cabeça dos abutres. por isso e por saberem que eles descarnam os mortos. mas a mim nada neles me repugna. sei o que ele espera, porque está aqui e respeito-o por isso. é o cansaço que me desespera. é extenuante tê-lo por perto há vinte e quatro horas, talvez mais. sem uma palavra, sem um olhar de compreensível mensagem. nada, só os dois. pele e penas lado a lado numa espera que se está a revelar interminável. sei que ele vencerá, mas o saramago não aceita a vitória assim de mão beijada. ele sabe que só é verdadeiramente vencedor quando eu cair aos seus pés. irreversivelmente. genuinamente. por desistência seria até uma humilhação para ele. saber isto ainda me faz respeitar mais o pássaro. a questão é que a resistência do corpo humano é brutal. e ele sabe que é assim. é por isso que está preparado para uma espera tão longa, a que for necessária. eu é que não estou preparado. quando o invoquei pensei que só viesse quando a morte estivesse consumada. queria ver o meu corpo ainda quente a ser limpo pelo bico em sabre do abutre. queria assistir com deleite à desocultação lenta dos meus ossos, olhá-los já limpos e prontos a reutilizar. mas enganei-me. mal foi invocada a presença do bicho logo ele se materializou num voo vindo sabe-se lá donde… quando o olho sei que ele me respeita. não é um cadáver que ele quer, é um dador de vida em forma de morte… nunca pensei que isto levasse tanto tempo… nunca pensei que o abutre comparecesse tão depressa… nunca pensei que o meu corpo estivesse ainda tão longe da desagregação que aparenta. nunca pensei. ou pensei sem saber o que pensava. fiz tudo mal. planeei tudo sem saber o que fazia e agora é irreversível, ele continuará aqui, até que me consuma com a verdade que ele exige. e o pior é que até a um abutre tenho medo de desapontar. sei que se desse um tiro na cabeça ele nem me tocaria por desprezo e nojo. da mesma forma, não tenho por mim suficiente amor para lhe dar um tiro e acabar com isto. será uma longa e insuportável noite.
quarta-feira, fevereiro 08, 2006
tratado secreto da cidade # 36
# 36 – vigésimo sexto dia – 36 de dezembro – évora
18h50
ao que parece vestiu um smoking para se suicidar naquele quarto de hotel em paris. já toda a gente conhece esta história. conhece? bem, deitou-se na cama vestido como se o suicídio fosse uma noite na ópera. envenenou-se. só deram por ele no dia seguinte, não tenho a certeza, enfim bastante tempo depois. na altura o homem que o encontrou descreveu o cadáver como uma verdadeira visão do inferno de dante. o veneno fez-lhe inchar de tal maneira o corpo que o smoking rebentou pelas costuras e do nariz e orelhas e boca saía uma espécie de líquido verde misturado com sangue. apesar disso, manteve a extrema dignidade dos poetas. calculo que a morte tenha sido muito dolorosa. só pode ter sido, para ter um resultado assim. mas a sua compostura manteve-se inalterada. já morto, com o corpo a explodir de veneno e desespero, continuava pronto para uma noite na ópera. em lisboa, o seu único amigo, escreveu num jornal: «morre cedo o que os deuses amam». hoje junto à fonte da praça vi um cão a esfrangalhar com dentes e patas um velho smoking que alguém deve ter deitado ao lixo. um smoking com lapelas de cetim e botões grandes e negros. algibeiras largas. parecia antigo pelo corte. o cão tinha dificuldade em o rasgar, obra de um antigo alfaiate na certa. na boca do cão o casaco parecia um corvo gigante, um pássaro sem dúvida. o cão brincou com o casaco até se cansar e deixou-o, só, junto ao granito das escadas da igreja. apesar de irremediavelmente destruído, mesmo rasgado, espalhado no chão, um smoking dificilmente perde a sua dignidade. já com a temperatura a descer, as pessoas começaram a fugir para os ares condicionados dos automóveis, para os aquecedores nos seus pombais. começaram a fugir. junto à escada da igreja, o smoking continuava dignamente preparado para uma noite de ópera. «morre cedo o que os deuses amam.»
18h50
ao que parece vestiu um smoking para se suicidar naquele quarto de hotel em paris. já toda a gente conhece esta história. conhece? bem, deitou-se na cama vestido como se o suicídio fosse uma noite na ópera. envenenou-se. só deram por ele no dia seguinte, não tenho a certeza, enfim bastante tempo depois. na altura o homem que o encontrou descreveu o cadáver como uma verdadeira visão do inferno de dante. o veneno fez-lhe inchar de tal maneira o corpo que o smoking rebentou pelas costuras e do nariz e orelhas e boca saía uma espécie de líquido verde misturado com sangue. apesar disso, manteve a extrema dignidade dos poetas. calculo que a morte tenha sido muito dolorosa. só pode ter sido, para ter um resultado assim. mas a sua compostura manteve-se inalterada. já morto, com o corpo a explodir de veneno e desespero, continuava pronto para uma noite na ópera. em lisboa, o seu único amigo, escreveu num jornal: «morre cedo o que os deuses amam». hoje junto à fonte da praça vi um cão a esfrangalhar com dentes e patas um velho smoking que alguém deve ter deitado ao lixo. um smoking com lapelas de cetim e botões grandes e negros. algibeiras largas. parecia antigo pelo corte. o cão tinha dificuldade em o rasgar, obra de um antigo alfaiate na certa. na boca do cão o casaco parecia um corvo gigante, um pássaro sem dúvida. o cão brincou com o casaco até se cansar e deixou-o, só, junto ao granito das escadas da igreja. apesar de irremediavelmente destruído, mesmo rasgado, espalhado no chão, um smoking dificilmente perde a sua dignidade. já com a temperatura a descer, as pessoas começaram a fugir para os ares condicionados dos automóveis, para os aquecedores nos seus pombais. começaram a fugir. junto à escada da igreja, o smoking continuava dignamente preparado para uma noite de ópera. «morre cedo o que os deuses amam.»
terça-feira, fevereiro 07, 2006
tratado secreto da cidade # 35
# 35 – vigésimo quinto dia – 35 de dezembro – évora
19h32
em determinados dias [secreto calendário de invocação angélica], três igrejas fazem tocar os seus sinos em diálogo durante quase quinze minutos sem interrupção. tal como na idade média apenas sete sineiros-mestres sabem a melodia integralmente. melodia que invoca os anjos protectores da cidade. évora-ilha onde ainda ardem em terreiro de penitentes almas viventes e defuntas. os sineiros-aprendizes, que os fazem tocar, separam-se em grupos de três. três sineiros vezes três igrejas. seis sineiros-aprendizes como sinal da sua ainda imperfeita condição. cada grupo de três conhece apenas a parte musical que cabe à sua função. a melodia só tem poder quando as três igrejas tocam em sincronia. cada sineiro-aprendiz faz voto de silêncio. da sua boca jamais sairá a revelação de uma nota que seja. o que se sabe é o que se ouve. há ainda um sétimo sineiro-aprendiz. vigilante desse segredo e a responsável pela exacta sincronia dos carrilhões. um dia, se perseverarem, a cada um destes sete sineiros-aprendizes será conferido o grau de sineiro-mestre, através da comunicação integral da oração musical. a partir desse dia será função desse novo grupo de mestres encontrar outros sete aprendizes e garantir a continuidade do segredo. o toque organizado, vibrado que permite chamar à cidade os anjos que pelo sopro do seu abraço trabalharão sem descanso para que o tormento finde nesta ilha onde há séculos sem começo se trava um duelo de morte entre um vento de maldade e um vento de benignidade. não é difícil ver o amplexo que estes anjos gigantes oferendam a quem aqui permanece, às casas, aos animais, às sombras. às vezes as paredes enchem-se do sangue. vomitado de algumas criaturas que de tão exorcizadas perdem até o corpo. outras vezes há janelas que se partem, luzes que se acendem onde não há lâmpadas… nunca é vã a presença de um anjo protector. nem é vão o poder destes sinos. sob este chão está plantada uma árvore que só se erguerá à luz do dia no momento em que o duelo findar. aí terminará o trabalho dos sineiros. aqui. porque onde existir um grão de poeira a ocupar o espaço haverá duelos e anjos invocados. onde quer que exista uma partícula de vida haverá um sineiro fazendo vibrar a sua oculta melodia.
19h32
em determinados dias [secreto calendário de invocação angélica], três igrejas fazem tocar os seus sinos em diálogo durante quase quinze minutos sem interrupção. tal como na idade média apenas sete sineiros-mestres sabem a melodia integralmente. melodia que invoca os anjos protectores da cidade. évora-ilha onde ainda ardem em terreiro de penitentes almas viventes e defuntas. os sineiros-aprendizes, que os fazem tocar, separam-se em grupos de três. três sineiros vezes três igrejas. seis sineiros-aprendizes como sinal da sua ainda imperfeita condição. cada grupo de três conhece apenas a parte musical que cabe à sua função. a melodia só tem poder quando as três igrejas tocam em sincronia. cada sineiro-aprendiz faz voto de silêncio. da sua boca jamais sairá a revelação de uma nota que seja. o que se sabe é o que se ouve. há ainda um sétimo sineiro-aprendiz. vigilante desse segredo e a responsável pela exacta sincronia dos carrilhões. um dia, se perseverarem, a cada um destes sete sineiros-aprendizes será conferido o grau de sineiro-mestre, através da comunicação integral da oração musical. a partir desse dia será função desse novo grupo de mestres encontrar outros sete aprendizes e garantir a continuidade do segredo. o toque organizado, vibrado que permite chamar à cidade os anjos que pelo sopro do seu abraço trabalharão sem descanso para que o tormento finde nesta ilha onde há séculos sem começo se trava um duelo de morte entre um vento de maldade e um vento de benignidade. não é difícil ver o amplexo que estes anjos gigantes oferendam a quem aqui permanece, às casas, aos animais, às sombras. às vezes as paredes enchem-se do sangue. vomitado de algumas criaturas que de tão exorcizadas perdem até o corpo. outras vezes há janelas que se partem, luzes que se acendem onde não há lâmpadas… nunca é vã a presença de um anjo protector. nem é vão o poder destes sinos. sob este chão está plantada uma árvore que só se erguerá à luz do dia no momento em que o duelo findar. aí terminará o trabalho dos sineiros. aqui. porque onde existir um grão de poeira a ocupar o espaço haverá duelos e anjos invocados. onde quer que exista uma partícula de vida haverá um sineiro fazendo vibrar a sua oculta melodia.
segunda-feira, fevereiro 06, 2006
tratado secreto da cidade # 34
# 34 – vigésimo quarto dia – 34 de dezembro – évora
18h58
quebraste o aquário onde tínhamos posto um pequeno barco a vapor, o nosso frágil amor. tão recente, tão débil. num aquário igual a este (que propositadamente fracturaste) uma salamandra, de uma só vez, põe milhares de ovos. também esta minúscula nave podia ter deitado à água tépida uma galáxia de pequenos ovos. tenho por símbolo uma serpente-salamandra em círculo [como o globo do nosso aquário], com a ponta da cauda presa nos dentes. no centro, duas mãos apertam-se com chamas em volta. enquanto as mãos estiverem dadas não se queimarão, enquanto as mãos estiverem dentro do aquário formado pela salamandra nada poderá perturbar essa cadeia. uma vez quebrada a união da serpente e desunidas as mãos o fogo destruirá a união fraterna dos dedos e o aquário quebrado devolverá ao caos aquilo que pelo abraço tinha transformado em ordem
..........estou sentado num sofá de damasco vermelho. um antigo pano de altar. tenho no colo uma espingarda e estou à tua espera. aviso-te que a tenho carregada e as balas são para ti. quero oferecer-tas disparadas. não é uma espingarda qualquer. é uma espingarda de olhos e balas de sangue de romã. quando chegares ouvirás o estrondo do sangue disparado. pela primeira vez saberás o que é estar fora do aquário.
18h58
quebraste o aquário onde tínhamos posto um pequeno barco a vapor, o nosso frágil amor. tão recente, tão débil. num aquário igual a este (que propositadamente fracturaste) uma salamandra, de uma só vez, põe milhares de ovos. também esta minúscula nave podia ter deitado à água tépida uma galáxia de pequenos ovos. tenho por símbolo uma serpente-salamandra em círculo [como o globo do nosso aquário], com a ponta da cauda presa nos dentes. no centro, duas mãos apertam-se com chamas em volta. enquanto as mãos estiverem dadas não se queimarão, enquanto as mãos estiverem dentro do aquário formado pela salamandra nada poderá perturbar essa cadeia. uma vez quebrada a união da serpente e desunidas as mãos o fogo destruirá a união fraterna dos dedos e o aquário quebrado devolverá ao caos aquilo que pelo abraço tinha transformado em ordem
..........estou sentado num sofá de damasco vermelho. um antigo pano de altar. tenho no colo uma espingarda e estou à tua espera. aviso-te que a tenho carregada e as balas são para ti. quero oferecer-tas disparadas. não é uma espingarda qualquer. é uma espingarda de olhos e balas de sangue de romã. quando chegares ouvirás o estrondo do sangue disparado. pela primeira vez saberás o que é estar fora do aquário.
domingo, fevereiro 05, 2006
tratado secreto da cidade # 33
# 33 – vigésimo terceiro dia – 33 de dezembro – évora
18h50
em memória do poeta antónio gancho, (évora 1940-telhal 2005)
que bom teres acordado para me beijar, enorme pássaro. mas deus não quer que apanhes frio. e deus tem razão. deus é bom para ti, deus… enfim as palavras.
vieste beijar-me à cidade que te enlouqueceu.
évora santa. católica. romana.
a que exclui os seus apóstolos a que os torna cativos de pequenas torturas.
.....é tão bom
.....falas e as tuas vozes condizem com a marcha celeste do cristo que trazes entre os olhos. chegaste, com cama e tudo, como uma missa de requiem [a muitas, muitas, vozes] abrindo as asas para elevar ao paraíso a glória de um divino amor. terreno. e. carnal. vou fumar em tua honra todos os cigarros sem filtro que ainda me restam. aqui estou e ofereço-me a ti, falcão doente que, agora, atingiste a suprema satisfação da condição inumana da liberdade.
.....santo. santo. santo. lux perpetua.
em cada pedra deste imenso túmulo romano vamos rir e reinventar uma epistola que dedicaremos ao povo, montados na torre sineira da igreja de santo antão da praça do geraldo. lacrimosa fábula nossa. adeus falcão. estás a salvo. ora por nós, aí perto do sol. mas não te esqueças querido, foi bom, agradeço-te muito, muito, teres vindo para me beijar, mas não te esqueças – querido – deus não quer que apanhes frio. e deus tem razão. está mesmo frio. glória ao sol acima de todas as coisas. glória ao riso.
adeste fideles.
18h50
em memória do poeta antónio gancho, (évora 1940-telhal 2005)
que bom teres acordado para me beijar, enorme pássaro. mas deus não quer que apanhes frio. e deus tem razão. deus é bom para ti, deus… enfim as palavras.
vieste beijar-me à cidade que te enlouqueceu.
évora santa. católica. romana.
a que exclui os seus apóstolos a que os torna cativos de pequenas torturas.
.....é tão bom
.....falas e as tuas vozes condizem com a marcha celeste do cristo que trazes entre os olhos. chegaste, com cama e tudo, como uma missa de requiem [a muitas, muitas, vozes] abrindo as asas para elevar ao paraíso a glória de um divino amor. terreno. e. carnal. vou fumar em tua honra todos os cigarros sem filtro que ainda me restam. aqui estou e ofereço-me a ti, falcão doente que, agora, atingiste a suprema satisfação da condição inumana da liberdade.
.....santo. santo. santo. lux perpetua.
em cada pedra deste imenso túmulo romano vamos rir e reinventar uma epistola que dedicaremos ao povo, montados na torre sineira da igreja de santo antão da praça do geraldo. lacrimosa fábula nossa. adeus falcão. estás a salvo. ora por nós, aí perto do sol. mas não te esqueças querido, foi bom, agradeço-te muito, muito, teres vindo para me beijar, mas não te esqueças – querido – deus não quer que apanhes frio. e deus tem razão. está mesmo frio. glória ao sol acima de todas as coisas. glória ao riso.
adeste fideles.
sexta-feira, fevereiro 03, 2006
tratado secreto da cidade # 32
# 32 – vigésimo segundo dia – 32 de dezembro – lisboa
12h00
é preciso recompor o corpo. este lugar tornou-se num templo negro. mora aqui uma alma maléfica que nos está a corroer o sangue. não podemos deixar. por nós. por todos. pelos que aqui vão ficar. pelos que não admitem que é preciso sair deste lodo. pelos que aceitam a doença como um vicio. podemos fugir hoje. sair daqui já. sem levar nada. nadar para um descanso pleno. basta descer esta escada. temos de nos curar. temos de nos curar. temos de nos curar. temos essa força. é indestrutível porque é puro amor. eles não perceberam isso. eles não sabem o que é o amor. que nasça em nós a saudade das orações que havemos de dizer. as orações que nunca foram ditas. que nunca foram escritas. as que seremos nós a compor. se hoje. se. já. descermos esta escada a gritar num riso incontido de alegria e descoberta. se corrermos com voz de tambor, os nossos passos hão-de fazer a chuva voar. temos de ganhar coragem para elevar os beijos. sentir as carícias e pequenas rosas a desenharem-se na pele. o corpo recompõe-se sempre. temos esse poder, esse dom, essa magnifica luz dourada e há velas e incenso a arder no fundo destas escadas. a arder por nós. um sol imenso em chamas para nos curar.
12h00
é preciso recompor o corpo. este lugar tornou-se num templo negro. mora aqui uma alma maléfica que nos está a corroer o sangue. não podemos deixar. por nós. por todos. pelos que aqui vão ficar. pelos que não admitem que é preciso sair deste lodo. pelos que aceitam a doença como um vicio. podemos fugir hoje. sair daqui já. sem levar nada. nadar para um descanso pleno. basta descer esta escada. temos de nos curar. temos de nos curar. temos de nos curar. temos essa força. é indestrutível porque é puro amor. eles não perceberam isso. eles não sabem o que é o amor. que nasça em nós a saudade das orações que havemos de dizer. as orações que nunca foram ditas. que nunca foram escritas. as que seremos nós a compor. se hoje. se. já. descermos esta escada a gritar num riso incontido de alegria e descoberta. se corrermos com voz de tambor, os nossos passos hão-de fazer a chuva voar. temos de ganhar coragem para elevar os beijos. sentir as carícias e pequenas rosas a desenharem-se na pele. o corpo recompõe-se sempre. temos esse poder, esse dom, essa magnifica luz dourada e há velas e incenso a arder no fundo destas escadas. a arder por nós. um sol imenso em chamas para nos curar.
quarta-feira, fevereiro 01, 2006
tratado secreto da cidade # 31
# 31 – vigésimo primeiro dia – 31 de dezembro – lisboa
19h00
no fim do espectáculo mal se tinham em pé. três. as três. ainda se moviam graças a uma força vinda sabe-se lá de onde. quando se inclinavam para agradecer era como se jamais pudessem voltar a endireitar a espinha. olhavam o público num profundo transe. não tinham estado mais de uma hora a fazer aquele texto passar pelo corpo e no entanto dir-se-ia terem estado dias a fio a navalhar-se com aquelas palavras. cada sílaba um lento e arrastado corte. no público, talvez um ou outro espectador também tenha sido consumido por aquela febre. elas. de pé. três. as três. morriam e respiravam morriam e respiravam. morriam e não respiravam. e é isso. o teatro. suprema eucaristia. graça fecundadora de um espírito santo que atravessa o ventre dos actores: profetas, mestres ascendidos, discípulos de uma lua maior, anunciadores de sol aos escolhidos. seres humanos. seres não humanos. santos e benditos espíritos da natureza. no fim do espectáculo mal se tinham de pé de tão crucificadas, glorificadas e santificadas. abram agora as mãos, queridas actrizes, e espalhem o mistério da encarnação depois uma breve genuflexão. no fim ainda se moviam graças a uma força vinda sabe-se lá de onde. quando se inclinavam para agradecer era como se jamais pudessem voltar endireitar a espinha. mas erguiam-se. eram já corpos redentores. olhos de gato. abram as mãos queridas actrizes e reencarnadas abençoem os poucos escolhidos que à vossa gruta matriz vos vieram adorar.
19h00
no fim do espectáculo mal se tinham em pé. três. as três. ainda se moviam graças a uma força vinda sabe-se lá de onde. quando se inclinavam para agradecer era como se jamais pudessem voltar a endireitar a espinha. olhavam o público num profundo transe. não tinham estado mais de uma hora a fazer aquele texto passar pelo corpo e no entanto dir-se-ia terem estado dias a fio a navalhar-se com aquelas palavras. cada sílaba um lento e arrastado corte. no público, talvez um ou outro espectador também tenha sido consumido por aquela febre. elas. de pé. três. as três. morriam e respiravam morriam e respiravam. morriam e não respiravam. e é isso. o teatro. suprema eucaristia. graça fecundadora de um espírito santo que atravessa o ventre dos actores: profetas, mestres ascendidos, discípulos de uma lua maior, anunciadores de sol aos escolhidos. seres humanos. seres não humanos. santos e benditos espíritos da natureza. no fim do espectáculo mal se tinham de pé de tão crucificadas, glorificadas e santificadas. abram agora as mãos, queridas actrizes, e espalhem o mistério da encarnação depois uma breve genuflexão. no fim ainda se moviam graças a uma força vinda sabe-se lá de onde. quando se inclinavam para agradecer era como se jamais pudessem voltar endireitar a espinha. mas erguiam-se. eram já corpos redentores. olhos de gato. abram as mãos queridas actrizes e reencarnadas abençoem os poucos escolhidos que à vossa gruta matriz vos vieram adorar.