<$BlogRSDUrl$>

terça-feira, fevereiro 14, 2006

tratado secreto do teatro # 3 

# 3 – cena terceira

a – ainda temos água?
b – não sei se a companhia já a cortou.
a – queria lavar-me. cheira a rato.
b – experimenta. pode ser que ainda haja.
a – todo o quarto cheira a rato.
b – é a peste. abro a janela?
a – não. deixa ficar o cheiro. quero lavar-me para me sentir limpa, mas não é o cheiro a rato que quero limpar. até me agrada este cheiro. é humano. e já nem tu nem eu temos cheiro.
b – …tenta no bidé, como a água corre com menos pressão pode ser que a que ficou nos canos dê.
a – não, queria lavar-me a sério, sentir o sabão no cabelo e nas pernas.
b – experimenta. não sei quanto tempo é que eles levam a cortar a água depois do aviso. a mim o cheiro a rato também não me incomoda. será que há algum aqui escondido.
a – não penses nisso. não temos essa sorte. cheira a rato mas não é um rato.
b – é a peste.
a – somos nós. é esta cama. são estes lençóis, com suores que já não querem dizer nada. é a falta de calor, é a falta de frio. é a falta de saber o que fazer…
b – é a peste.
a – é a peste.
b – …experimenta o bidé.
a – não me quero aproximar do bidé. não consigo deixar de rever o sangue que ali escorri. sempre que entro na casa de banho desvio o olhar dali. vai levar muito tempo. isso sim é a peste. as imagens que guardamos. o sangue que escorreu de nós, a dor, o medo, o medo da dor. a dor do medo.
b – nunca percebi porque não me quiseste presente nesse dia. foste tão rude ao afastar-me.
a – o sangue era meu. a dor era minha.
b – o sangue também era meu. era o nosso sangue. e a dor também eu a senti.
a – ao bidé não vou. já nem me quero lavar.
b – sou eu quem agora sangra.
a – então vai lá para dentro. senta-te no bidé. aproveita a água que está estagnada nos canos.
b – o meu sangue não se lava.
a – o sangue nunca se lava. não se apaga. quando se sangra é para sempre. e eu não fui rude contigo. afastei-te, sim, mas não fui rude.
b – não sei que ideia tens tu de rudeza. naquela altura não estar ali a sangrar contigo foi uma rudeza imensa. tu nunca irás perceber isto.
a – então se nunca vou perceber isso não continues a tentar explicar-me.
b – não continuo. deixa-me só ficar aí, deitado sobre ti. deixa-me fingir um abraço.
a – deita-te como quiseres. pára de estar sempre a perguntar se podes fazer isto ou aquilo. faz e pronto. queres deitar-te em cima de mim, deita-te.
b – deito-me.
a – pronto. estás deitado. vês? não muda nada. é por isso que cheira a rato. a peste. sim. a peste. a penetrar nas nossas memórias porque os corpos já estavam impregnados desta merda. deste cheiro. desta falta de água.
b – ouves?
a – o quê? não.
b – água a correr nos canos. há água nos canos…
a – deixa-te estar. lava-me tu. com a peste, com o cheiro a rato. com o teu sangue indelével. agarra-me. lava-me com a tua seiva. espalha-te no meu corpo. na minha peste, no meu sangue indelével. mistura-te na minha seiva e suor. faz.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?