terça-feira, fevereiro 28, 2006
tratado secreto do teatro # 18
# 18 – cena décima oitava
a – deve estar bastante frio lá fora. já quase não há ninguém. os marinheiros recolheram-se aos navios. os estivadores só devem vir lá para as quatro da manhã. o rio enfim deserto. as ruas enfim, quase, desertas. daqui a pouco tudo estará certo e perfeito. só o rio, só as ruas, as gentes recolhidas. a lua emanando a sua luz. um ou outro cão, um ou outro gato. daqui a nada, enfim, um silêncio aparente surgirá como uma bênção nesta espera.
b – se acabarem os cigarros vou à rua.
a – não! agora já não se sai nem entra. se saíres já não voltas. sair daquela porta implica abandonares tudo, sem retorno. estamos demasiado próximos da hora.
b – assumes o comando. muito bem, se acabarem os cigarros ficarei. sabes a história daquele escritor russo que durante a primeira revolução, ainda antes dos bolcheviques, se viu fechado em casa, sitiado, pensava que ia morrer… não me lembro do nome dele… tinha um saco com tabaco e não tinha papel de enrolar. aliás nenhum papel. tinha-o gasto todo no manuscrito de um romance. aguentou assim durante três dias. depois pensou: «se vou morrer, tenho tabaco, não tenho papel, que me interessa o romance». e fez cigarros com o manuscrito. fumou todo o romance durante aquela semana em que ali esteve preso. quando a revolta abrandou e franquearam a porta da sua casa, um amigo apareceu, muito aflito para saber se ele estava vivo. «pois estou. e escrevi um romance. nunca um romance me deu tanto prazer. fumei-o todo.»
a – vou fazer chá, queres?
b – obrigado. não quero. nem água, nem comida, nem chá.
a – então faço para mim. vou pôr água a aquecer na chapa.
b – deixa-me abraçar-te.
a – abraça-me quando quiseres. não precisas de pedir. tu é que tinhas dito que não me querias ao teu lado…
b – quero agora. assim… por trás, sentir as tuas costas no meu peito. as tuas pernas. apertar-te contra mim… continua a ser tão bom. quente…
a – sentes agora?
b – o quê?
a – este cheiro humano, a rato.
b – estou a abraçar-te…
a – pois estás, ainda bem.
b – e é nisso que pensas?
a – não.
b – então pensas em quê?
a – no chá.
a – deve estar bastante frio lá fora. já quase não há ninguém. os marinheiros recolheram-se aos navios. os estivadores só devem vir lá para as quatro da manhã. o rio enfim deserto. as ruas enfim, quase, desertas. daqui a pouco tudo estará certo e perfeito. só o rio, só as ruas, as gentes recolhidas. a lua emanando a sua luz. um ou outro cão, um ou outro gato. daqui a nada, enfim, um silêncio aparente surgirá como uma bênção nesta espera.
b – se acabarem os cigarros vou à rua.
a – não! agora já não se sai nem entra. se saíres já não voltas. sair daquela porta implica abandonares tudo, sem retorno. estamos demasiado próximos da hora.
b – assumes o comando. muito bem, se acabarem os cigarros ficarei. sabes a história daquele escritor russo que durante a primeira revolução, ainda antes dos bolcheviques, se viu fechado em casa, sitiado, pensava que ia morrer… não me lembro do nome dele… tinha um saco com tabaco e não tinha papel de enrolar. aliás nenhum papel. tinha-o gasto todo no manuscrito de um romance. aguentou assim durante três dias. depois pensou: «se vou morrer, tenho tabaco, não tenho papel, que me interessa o romance». e fez cigarros com o manuscrito. fumou todo o romance durante aquela semana em que ali esteve preso. quando a revolta abrandou e franquearam a porta da sua casa, um amigo apareceu, muito aflito para saber se ele estava vivo. «pois estou. e escrevi um romance. nunca um romance me deu tanto prazer. fumei-o todo.»
a – vou fazer chá, queres?
b – obrigado. não quero. nem água, nem comida, nem chá.
a – então faço para mim. vou pôr água a aquecer na chapa.
b – deixa-me abraçar-te.
a – abraça-me quando quiseres. não precisas de pedir. tu é que tinhas dito que não me querias ao teu lado…
b – quero agora. assim… por trás, sentir as tuas costas no meu peito. as tuas pernas. apertar-te contra mim… continua a ser tão bom. quente…
a – sentes agora?
b – o quê?
a – este cheiro humano, a rato.
b – estou a abraçar-te…
a – pois estás, ainda bem.
b – e é nisso que pensas?
a – não.
b – então pensas em quê?
a – no chá.