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sábado, fevereiro 25, 2006

tratado secreto do teatro # 15 

# 15 – décima quinta cena

b – pensei que iria ver este rio… viver este rio, por muitos mais anos. antes daqui vivermos nunca tinha estado perto de navios, navios verdadeiros, navios carregados de suor e trabalho. de sal. sal marinho e sal do corpo: nó cego de sangue e sirenes. marinheiros e estivadores cantando de esforço, músculos destruídos pelo cansaço de anos e anos de combate desigual contra esse gigante de poder, que se renova a cada instante, sem trégua: o mar-vento que lhes fenda os rostos. alguma vez viste as mãos destes homens? parecem rudes e brutais, cruéis até. mas seriam capazes de pegar numa pena como se beijassem o bico de um pássaro em pleno voo. pegariam numa pena com a mesma destreza e a mesma emoção com que uma mãe abraça um filho acabado de renascer. e também podem ser duras, e implacáveis. para eles matar ou beijar tem o mesmo sinal de amor… se beijam é amor, se matam é roma. o gesto é inverso mas a humanidade é a mesma. se lhes pedes que te batam, eles batem-te com a força das mais arrebatadoras tempestades. sem hesitar. sem medo de te magoar. sem pena de te magoar. se lhes pedes para te acariciarem, acariciam-te, sem medo de que te desfaças com tamanha doçura. quer o teu corpo sangre de espancamento ou se liquefaça em seivas, o que sentes é sempre gratidão, uma imensa gratidão, por uma entrega tão total e bela e completa. eles ouvem os teus pedidos e cumprem o que pedes sem qualquer pedido de retorno, eles nunca querem nada de ti. são seres para quem só a solidão conta e basta. a única coisa que precisam é de solidão e só a solidão desfeita pode matar um marinheiro ou um estivador. §

§ muitas vezes, deitados aqui, ouvia as sirenes dos petroleiros e enquanto fazíamos amor imaginava que as tuas mãos eram as deles. via o teu corpo como um marinheiro, imaginava-me sujeito à vontade descontrolada daqueles homens. eu sei que tu percebias porque correspondias sempre, sabiamente, sem dizermos uma palavra. nunca falámos quando fazíamos amor. tudo se passou sempre de pensamento para pensamento, de desejo para desejo. e sentia as sirenes entrarem em mim através das teu olhar. tinha o corpo aberto. disponível. nunca fiz amor só contigo. sempre que nos deitávamos, milhares de seres, visíveis e invisíveis, estavam connosco. presentes no corpo, ou na mente, ou no sangue, no sémen. sempre nos olhos. §

§ nessa altura os teus olhos não estavam nem foscos nem vidrados como me disseste esta manhã que estavam e eu sei que estão. eu vejo-te para lá da tua aparente juventude, do teu aspecto são, rosado e cuidado. eu sei ver a podridão debaixo dessa fina camada protectora. apesar de não saberes, a tua pele é demasiado transparente. até as bactérias e os microscópicos vermes que te estão a consumir navegando nas veias eu vejo. §

§ nessa altura os teus olhos eram límpidos e directos. agiam sobre mim, dentro de mim, como varas que me penetravam. enquanto aqui estivemos fomos o rio, os navios e os marinheiros. fomos as sirenes cantantes e os gritos dos estivadores acartando contentores. bebemos o sal do suor daqueles homens e tivemos a força de arrasto daqueles navios. o poder das amarras. fomos um cais imenso de onde atracámos e partimos até estarmos corroídos por esta metástase diabólica que não nos permite nada, nem atracar nem partir. §§

§§ tens razão. foi uma sorte as máquinas não terem vindo. é uma sorte termos de agir pelas nossas mãos. com a espada de fogo. e o cálice.

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