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domingo, fevereiro 26, 2006

tratado secreto do teatro # 16 

# 16 – décima sexta cena

a – tenho de me sentar. deixa-me ficar aqui ao pé de ti. §

§ é bom voltar a sentir-te perto. §

§ … é verdade que tenho vermes a circular nas veias e ínfimas partículas de um mal irremediável no cérebro. e acredita, eu sei que tu me vês para além da pele. se há pouco disse aquilo foi porque… porque tenho vermes a circular nas veias e ínfimas partículas de um mal irremediável no cérebro. §

§ ouve-me com atenção. não te falei desta – vou chamar-lhe outra vez: «entidade», não te deixes prender pelos termos que uso – não te falei dela por acaso. é algo, alguém, que conheço bem e que me conhece bem. faz parte da minha história e é o fundamento de tudo o que durante este dia se passou e se irá passar. actualmente, ela, a «entidade», consegue assumir muitas formas. pode manifestar-se como luz, como matéria, som… conheço este «algo-alguém» há muito tempo, ainda era um ser comum. tão comum como se um cão comum com forma de gente. como nós. eu não habito nenhum plano de entendimento especial ou diferente do teu. «ela» aparece-me, às vezes fala-me, simplesmente porque a conheço, ou melhor, porque ela sabe que eu sou capaz de a reconhecer.
b – e está viva ou morta?
a – não sei meu querido. e que interessa isso. tu dizes que estás no limbo. são belas palavras, soão bem, mas não são nada, mesmo com as tuas maravilhosas explicações… desculpa, prometemos que não iríamos comentar as confissões um do outro…
b – confis…
a – … por favor não te estejas sempre a agarrar às palavras, deixa-me prosseguir. não te vou, explicar quem é esta «entidade». sei que se o fizesse tu entenderias, mas eu não consigo, não sei. só te quero contar uma coisa. do tempo em que a… bem, dá-lhe tu um nome, era um ser comum e em mim havia uma correspondência exacta entre a minha aparência e o que está para dentro dela. §

§ quando a conheci, tinha a forma de uma rapariga. hoje é raro não assumir uma forma masculina quando se manifesta, mesmo quando só se faz sentir em energia é um sinal masculino que se sente. vi-a num café aqui mesmo ao lado. no café onde durante estes anos que aqui vivemos fomos todos os dias, todas as manhãs, todas as noites. o «nosso café» como tu lhe chamas. foi por isso que quis tanto vir para este bairro… lembras-te quando vimos esta casa, a janela, a emoção que sentimos?… enfim, foi em abril, ou maio, em abril em maio, um dia de muito sol e de muita chuva. o café estava cheio dos «teus» marinheiros e estivadores, não havia mesas livres e tu sabes como eu detesto comer ao balcão – nessa altura o balcão estava do outro lado e ainda não tinham forrado as paredes com aqueles azulejos horríveis… –, o que é que interessam a merda do balcão e dos azulejos… ela estava numa mesa sozinha, apercebeu-se que eu me ia embora por não ter lugar sentado e ofereceu-me a cadeira à sua frente. tinha um rosto de uma banalidade comovente. não havia naquele ser uma coisa, por pequena que fosse, que se destacasse dos triliões de seres com que nos cruzamos todos os dias na rua e não distinguimos uns dos outros. e isso era um encanto. fumava uns cigarros sem filtro que partia ao meio antes de os acender: «estou a tentar deixar de fumar». a voz tremia-lhe um bocadinho. quando chegou o meu galão e o bolo, a empregada, a marília, a mesma marília que ainda lá está, deixou escorregar a faca que ao cair raspou ao de leve a mão dela, não a magoou muito mas foi o suficiente para que uma gota de sangue se tornasse num fino traço escarlate a desenhar-lhe espirais pelos dedos. a marília ficou muito aflita, meia gaga a desculpar-se, foi a correr buscar algodão e mais não quê e eu, e eu, eu senti um impulso descontrolado de lhe lamber a mão e beber o sangue, engolir aquele desenho. quando dei por mim ali estava, com a mão dela na minha e a minha boca a sorver, a sarar aquela pequena ferida. a empregada chegou, viu aquilo e ficou paralisada, deve ter pensado que nos conhecíamos, depois lá se desparalisou com um risinhos nervosos e tentou prosseguir com a sua tarefa de enfermagem. mas ela, a comum, a banal, a igual aos triliões de iguais que se cruzam connosco todos os dias na rua, não deixou: «não é preciso, já estão a tratar de mim» e manteve a mão imóvel na minha. quando acabei, senti uma vergonha imensa. tive tanto medo de levantar a cabeça e enfrentar o olhar dela. medo que me fosse pedida uma explicação. mas tive coragem. muita coragem. a coragem verdadeira é nestas coisas que se prova. essa é que essa, nas grandes tragédias, é só acção, é não termos, alternativa, é brutalidade.
b – também se pode fugir.
a – pois, a fuga, e não é a mesma coisa ?... tive muita coragem…
b – tu tens sempre muita coragem…
a – … ouve por favor… pronto, levantei a cabeça e olhei-a. dentro dos olhos, enquanto lhe largava a mão. ela só agradeceu, pegou num meio cigarro e: «sabe, estou a tentar deixar de fumar». ficámos as duas a brilhar. a brilhar! o sabor daquele sangue na minha boca foi um elixir mágico. já não fui capaz de comer nem de dizer mais uma palavra. sorri, levantei-me, fui a correr pagar. saí. quando dei por mim já estava junto ao rio sem sequer ter notado o caminho. completamente impregnada por aquele sabor que envés de se desvanecer com o tempo se tornava cada vez mais intenso. tão intenso que passou a ser o sabor da minha saliva. ninguém mais sente. mas aquele sangue mantém-se vivo e fresco na minha boca. para mim ficou absolutamente claro que voltaria a encontrar aquela mulher. enganei-me. como mulher, como ser comum, como naquele dia, nunca mais. há pouco tempo, tinha acabado de tomar banho, o sabor do sangue tornou-se de tal maneira forte que nem conseguia contê-lo, escorria-me aquele sabor, novamente como um traço escarlate pelos lábios. depois a luz ficou cor de laranja, e no centro, dentro de um violeta carregado, vi um homem… não sei se um homem, qualquer coisa de masculino, androceu violeta com o rosto tapado. soube que era ela. soube sem uma dúvida. tinha voltado. como um cavaleiro de cor e beleza para me conduzir, até aqui. a este momento. esta «presença», ou como tu lhe queiras chamar, é minha única fonte de força. não tens de acreditar em mim. nem eu tenho essa intenção. só queria que soubesses isto porque independentemente do sentido que tudo isto faça para ti, tens de saber que eu não estou aqui sozinha contigo, nem ajo sozinha perante ti. nem nunca estive sozinha contigo. conta com essa verdade de mim. §

§ querido.

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