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segunda-feira, janeiro 31, 2005

breve gramática das raízes # 37 

deixo que o vento me atropele com rodas dentadas de locomotiva
que me cubra com a sua gelada mordedura
que o coração pare/eis a ruptura que espero
e aqueça
espero a paralisação dos tendões masculinos do rochedo cerebral
e a impossibilidade mecânica dos pés

sou um girasol-alto
uma fuchsia-escarlate – sem movimento
sem motor
se tentasse subir uma escada de pinheiros estancaria pétreo
como estátuas da antiguidade
entre as pinhas das ramagens mais baixas
aguardando a derrocada ígnea
que tudo regenera

deixo que o vento me preencha a boca
deixo que nela germine a magnólia perene de folhas brancas
depositando nessa floração o que de mim restar de vida intensa
cheguei ao fim das minhas capacidades nucleares
e não posso esperar
tenho um azul transbordante a espalhar-se
tremendamente
debaixo das unhas


domingo, janeiro 30, 2005

breve gramática das raízes # 36 

que esta noite passasse devagar que fosse só madrugada
que as luzes fossem anzóis onde a minha boca se cravasse
e me puxassem para um planeta de olhos abertos
o casulo está novamente a fechar-se
a crisálida a perder a autonomia eléctrica
que lhe daria a liberdade das borboletas nocturnas/como
o pequeno pavão-da-noite que não mede mais que quarenta milímetros
e em adulto nem sequer se alimenta

não me importam as estrelas
nem a via-láctea nem as amendoeiras em flor nem as pirâmides do egipto
queria a paz lenta dos ossos e a fluidez tranquila do plasma
no exímios vasos sanguíneos dos olhos
quero pousar as pálpebras e não ter frio
quero só ter mão esquerda
quero só o lado esquerdo do meu corpo
quero sentir a tua mão picar-se nos espinhos de uma urtiga
venenosa
quero que sejas livre – percebes?

mas a noite é rápida/implacável/a noite
é um alfinete
e todo o imenso espaço um lago cenográfico
com patos e peixes vermelhos como naves atlânticas
num teatro do sec. XIX


ana piu /dona estrela 

hoje na “abril em maio”, às 22 H, última representação do espectáculo “dona estrela”, encenado por paula só, interpretado por ana piu, com a criação plástíca de hellen ainsworth.

conheci a actriz ana piu em 1997 – não posso garantir a data –
altura em que co-organizava um festival de teatro – “cenas novas”
na vila de alvito
no alentejo

já nem me lembro do nome do espectáculo nem isso tem a menor importância
sei que foi apresentado no insólito cenário das grutas artificiais de alvito
mundo subterrâneo/mesmo por baixo da igreja do rossio
um lugar estranhíssimo
que serviu desde a pré história
para retirar pedra mármore para a “construção” de mós
um lugar de pedra e esconderijos que durante séculos esteve ligado ao pão
sem uma única janela de luz natural

sei que na altura não gostei muiiiiiito do espectáculo
o que me ficou na memória foi a extraordinária coragem
cénica da ana,
absolutamente sozinha (apesar de haver pelo meio umas intervenções musicais)
tão sozinha em cena como está agora neste “dona estrela”

o espectáculo
então totalmente concebido por ela – com umas ajudas daqui e dali –
funcionava em permanentes golpes de inteligência performativa/cada segundo
vivido (apresentado em condições que poucos aceitariam) era inventado e reinventado
ao ritmo da respiração
a ana voava a no improviso/na generosidade absoluta/arriscando [se] tudo
sem
por um momento
questionar os riscos do risco

tenho dúvidas se aquele espectáculo foi teatro ou desenho
se para mim é um facto que a única regra que distingue o desenho
é riscar-parar-recomeçar
o facto é que naqueles 45 ou 50 minutos foi essa a única regra
identificável – talvez fosse um teatro-desenho ou um desenho-teatro

das actrizes da sua geração que conheço – e tendo em conta
a sua passagem pelo campo de concentração teatral da escola de
formação de actores do cendrev em évora (há um caso comparável
o paulo claro que também frequentou o auschwitz do cendrev
que como todos sabemos morreu num estúpido [como se pudesse não ser estúpido] acidente de viação) – pois, das actrizes da sua geração
que conheço
em poucas/talvez em mais nenhuma
consegui vislumbrar esta coragem amorosa
mantida como uma bandeira que se teima em não deixar cair
em pleno campo de batalha

desconheço a consciência que a ana piu tem do risco
provavelmente terá toda/ou só alguma
é um ser humano como qualquer um de nós – portanto tem medo
mas jamais a impediu de os enfrentar/medo e risco

bem sei que o “dona estrela” contou com a experiência – não menos corajosa –
da paula só/mas na exigência dos extremos
o risco
uma vez mais é da ana só
piu

ter oportunidade de ir ao encontro deste espectáculo
hoje
na
“abril em maio”
é
no mínimo
ter o privilégio de dar de caras com alguém
que no teatro (ainda) pensa/age/sofre
arrisca/arca com as consequências do pensamento/da acção
do risco e do sofrimento e sabe arcar com essas
tantas vezes
dolorosas responsabilidades

alguém que para além de ser só actriz
é poema – quer dizer – é viva
com os outros
para os outros


breve gramática das raízes # 35 

como uma noite em tal afar – hoje
há duzentos e cinquenta milhões de anos
um meteorito
propagou pelo planeta um elemento químico
inexistente na terra depois de um seco impacto
a propagação de irídio – sem antes nem depois – preservou-se
na argila

como uma noite em tal afar – hoje
há duzentos e cinquenta milhões de anos
até as poeiras assentarem – toda a terra
mergulhou no escuro e no frio
sufocando milhares de espécies
vivas e as suas remotas felicidades/na
incontrolável libertação de carbono
sucumbiram as energias dos corações pré-históricos
– hoje
no iraque – depois de um seco impacto meteórico
e da propagação de outros elementos químicos que se fixarão na argila da pele
a luz solar extinguiu-se e o chão gelou
as poeiras não assentam e nesta chuva ácida que não vem do céu
sucumbem outras espécies vivas e as suas felicidades

tal afar – hoje – há duzentos e cinquenta milhões de anos – uma noite


breve gramática das raízes # 34 

via-te naquele lugar trepando muros onde
colavas cartazes e desenhavas letras
via-te sentada escrevendo textos

pelo prazer
de ver os caracteres traduzirem ideias
e as ideias terem as formas dos caracteres
aquele lugar tinha um sopro de vontade
um ouro
um pó
que se espalhava em conversas silenciosas
ou em estridentes gritos que reconhecia
como vulcânicas explosões de justiça

não estás lá – que terra é a que hoje se pisa naquela casa?

os muros calaram a vida que os comemorava
e cada palavra dita é com o esforço de uma dor muscular
há um veneno – uma matéria gasosa que se respira
um delírio tóxico

quando me sento naquela cadeira procurando-me em
redesenhados caracteres
sinto-me a engolir um tubo que sufoca as mais
ínfimas partes dos dedos/dos olhos/do amplexo cardíaco

fora do tempo certo de lá estar
estou
no pleno estrangulamento de um engano
como um cravo a nascer entre os espigões de uma roseira moribunda


sábado, janeiro 29, 2005

breve gramática das raízes # 33 

no poema – base concreta da matéria solar/enraízam-se
profundamente
as veias de inteiras famílias salvadoras de
moscas-escorpião (soldados protectores dos objectos encontrados)

passam comboios no poema
a terra remexe-se em voltaicos espasmos de sementes/o
poema
é a fonte do fim d
a última passagem dos cometas
o fim de todos os princípios/assim será até
que por dentro da pele se revoltem as bandeiras e a prata
que o amor e só o amor da pele por dentro
pode desfraldar

advento dos dias límpidos
das cerejas
dos planetas inaugurais de um novo sistema giratório


sexta-feira, janeiro 28, 2005

breve gramática das raízes # 32 

existem buganvílias e as suas hélices
existem pássaros e as suas máquinas piscatórias
existem lagos de águas opacas onde coabitam anões anarquistas
existem luas de todos os sexos
existe uma lua de todos os sexos
existem patos/gansos
os pavões
existem girafas celestes cavalgando enquanto se dorme no hemisfério norte
existem perfumes-faca como os do sémen da água-de-rosas e o da manteiga dos açores
existem pedreiras colossais e canteiros livres sob a terra de catedrais góticas do sec.XXIII

existe o amor e no amor o sangue do coração revolvido
e
cientificamente
o nascimento diário do sol abandonará o oriente
para no ocidente vir a explodir com a violência roxa do espanto


breve gramática das raízes # 31 

inventei dias perfeitos/perfeitas sílabas químicas
secretos cânticos fluorescentes
que escondi
num receptáculo de prata lutuosa

inventei um gerânio triste
desabrochando em mínimas bagas de azevinho nupcial
e pupilas de olhos verdes com sons de piano
em planícies fotosféricas

quero que saibas que existe esse estojo e que pode ser teu -
se o quiseres abrir – a chave – a única
estará esperando no cume do ébano mais alto
terás que dar o salto certo
simples questão de voo


quarta-feira, janeiro 26, 2005

breve gramática das raízes # 30 

«agora sou eu o judeu»
dois homens/habitantes talmúdicos de uma sinagoga sem
calor/durante anos tentaram matar-se um ao outro –
denunciaram-se mutuamente
para que cada um visse o seu outro/único/irmão
preso e torturado nos calabouços das mais terríveis prisões afegãs

sob as estrelas de cabul como duas ferozes leoas
isahaq levin e zebulon simentov apunhalaram-se
habitando debaixo do mesmo tecto
a oriente da pequena sinagoga que em frente
tem levantada uma acácia-mimosa/semeadora de amarelos perfeitos
- dizem que o principal tesouro da catedral da matança fratricida
era uma torah/roubada por maomé e levada por cristo para as prisões americanas
de guantánamo em cuba/isahaq levin
morreu na segunda semana de janeiro desta era de leveza ceifada
«não choro por ele/agora sou eu o judeu/o chefe» - agora o homem
um homem
do outro lado da rua a acácia-mimosa contempla-o
chorando folhas geladas


terça-feira, janeiro 25, 2005

breve gramática das raízes # 29 

escondes o rosto entre as mãos e tentas respirar
na desconfortável posição cervical do teu olhar enrolado
há maçãs em cima da mesa
há cascas de maçã em cima da mesa
pela clarabóia vêem-se os intensos pontos luminosos
do frio a levantar-se/passam animais no quintal –
leves pétalas de cravo subindo no espaço
a noite é comum/há uma vela acesa
fumam-se cigarros e é bom escutar o som quase
inaudível do fumo a separar-se da brasa
como se na ponta dos dedos estivesse
um cipreste de folhas vermelhas ou um cometa
espiralando o seu fulgurante trajecto
escondes o rosto entre as mãos e tentas respirar
na desconfortável mudez da tua boca saturada/repleta
de acumuladas rochas de sangue


segunda-feira, janeiro 24, 2005

breve gramática das raízes # 28 

antes da partida/devolverei todos os vocábulos
e os intencionais batimentos descontínuos
deste coração vulcânico/antes d
a partida
devolverei tudo/sem limite/sem retorno/com excesso
não quero na minha posse nem
a mínima parte do vosso tão fraterno abraço

os homens dividem-se em três categorias
digo mal
em três espécies – geneticamente diferenciadas –
os que residem na raiz da árvore
os que residem na copa da árvore
e vós/como exemplo/seres trepadores que
andam para baixo e para cima –
admito apenas a dignidade d
os radicais
e d
os superficiais
dos outros/os trepadores/destrepadores
que por constituição física/mais não são
que conveniência e falta de ossos/não quero reter um átomo
nem como memória
antes da partida devolver-vos-ei todos os fraternos apertos de mão
e os sinceros beijos tríplices


domingo, janeiro 23, 2005

breve gramática das raízes # 27 

uma estrada assim/todos os cheiros
e pássaros giratórios/talvez o paraíso exista
e estivesse a morar ali à medida que o carro avançava
deixando para a padreação
aparições/olhos
árvores/plantas e
belos montes para vacas
se um dia morreres
herberto helder
será num sítio assim que
a assombração
continuará intacta/nu
a/disponível/redonda/vocabular:
todos os dias da tua morte
mesmo atrás de ti
estará o mesmo monte
a mesma árvore
e a mesma vaca

se um dia morreres
herberto helder
tudo ficará na mesma
(excepto o nome das coisas)


breve gramática das raízes # 26 

há um espaço vácuo entre o cérebro
e a caixa craniana/nessa outra caixa entre o centro
e a crosta
flutuam as mais profundas incertezas e a tristeza
dos dias abalados
flutuam andorinhas e pacotes de farinha
amores/ratos/laços/intermitências
não é no cérebro que nidifica o desespero
nem no osso que estala o traumatismo
é nesse vago lago

todos os espinhos grandes campos de relva

e o amor inexplicável dos burros pelas carroças

breve gramática das raízes # 25 

vocês aí dentro quantos são?
quanta gente há dentro da liberdade?


breve gramática das raízes # 24 

uma árvore sentada numa parede de pedras –
preciosas folhas de chá a arder de espanto
engomam-se camisas
dão-se nós aos cordéis dos sapatos
assoa-se o nariz quando está frio
s. miguel luta com o anjo a quem chama dragão
cavam-se as estradas que conduzem a todo o lado
formigas enrolam-
se
nas fogueiras à procura de alimento
e gafanhotos adormecem à chuva imitando sapos
guardam-se fotografias em caixotes a contar com o fim da vida
alimentamos a memória de um deus rancoroso que afinal
não passa de um vendedor ambulante
e tudo isto se passa
como uma árvore sentada/um sempre-em-pé/uma
flor/um jacinto-azul/uma laranjeira/um lilás-amarelo
ficam livros que servirão de azeite a lamparinas
no futuro
parágrafos inesquecíveis que a história imortalizará:
«D'entre as numerosas pequenas embarcações, que se aproximavam do Bulgaria, destacava-se, uma bonita lancha que arvorava o pavilhão nacional da Grécia. Estava enfeitada de senhoras, e era governada por um grupo official, brilhantemente posto no seu vistoso uniforme.
Uma das minhas vizinhas de mesa, a noiva, pediu-me o binoculo, e depois de o assestar sobre a lancha, disse-me que o seu noivo era o official que vinha ao leme.»

e que tem de menos esta "chronica planetária"
em segunda edição de 1904 que a bíblia dos jerónimos?
dante pôs em caracteres o próprio inferno
mas este josé augusto ferreira deu mesmo a volta ao mundo
e estendeu-se nas cadeiras de lona do convés do navio Bulgaria
platão escreveu a apologia de sócrates
mas o senhor josé augusto ferreira almoçou ostras
sentado à beira da noiva de um official que decorou uma lancha com
senhoras só para agradar à mulher
– ainda esta noite não terá terminado e milhares de pintores
em todas as partes do mundo estarão a assinar
as suas imprescindíveis obras/antes que o dia nasça
biliões de mosquitos-pólvora – uns insectos
pequenos de comprimento e de cabeça
mas de patas bastante longas – morrerão sem deixar rasto
enquanto outros triliões nascerão – igualmente
acanhados de cabeça e corpo
mas bem dotados de pernas e ninguém
dará por isso/rodas dentadas de centenas de biliões d
e pequenos relógios de pulso
que funcionam a corda (que ainda os há)
estão – agora mesmo – a encaixar-se matematicamente
umas nas outras/sem uma falha/sem uma palha na engrenagem
e a tudo isto mais não podemos chamar que normalidade
olha-se para a árvore sentada como um homem
olha-se para a parede de pedras –
preciosas folhas de chá – e o mundo escorre como gordura
no marfim
nasceremos todos outra vez como os cigarros se acendem
uns atrás dos outros/sem uma falha/sem uma palha na engrenagem
breve gramática das raízes

sábado, janeiro 22, 2005

breve gramática das raízes # 23 

que pare a exclamação permanente/o véu
ruidoso da esperança no perpétuo tecnicamente falar

a roda do ruído pôs-se em movimento
como a hélice de uma cegonha

o monge/o santo/o mágico/o poeta/o cavalo/o mar-de-rosas/as trombetas d
o apocalipse/os operários fabris/as águias reais/os lúpulos/as orquídeas/as
amarras dos navios que os prendem aos portos
tudo é um ruído em roda centrífuga

refulgem em secretos nichos os sobreviventes
de uma calada existência sem culto ou práticas
seres livres que finalmente romperam o
templo


sexta-feira, janeiro 21, 2005

breve gramática das raízes # 22 

são cinco horas da manhã e os animais que
relincham – relincham sobre o basalto da rua do arsenal
em lisboa que ainda não exibiu qualquer movimento
e parece imune àquela passada radial de bestas como astros
no escuro
espaço
dos primeiros minutos apaixonados da cidade dos espelhos
erguidos/dos cometas zarpando dos cais de alcântara e
do sodré

no topo da rua dispersam-se pelas travessas desertas
metodicamente calados procurando
desconheço as razões que trazem as bestas àqueles lugares
mas tenho que reconhecer que não é todos os dias
que se têm o privilégio de assistir a uma cavalgada de unicórnios


breve gramática das raízes # 21 

a existência do centro é uma evidência

o ponto afasta-se d
o centro
ou
aproxima-se d
o centro

a existência d
o ponto é uma evidência

a evidência ou se afasta d
o ponto
ou
se aproxima d
o ponto

o centro e o ponto são evidência no plural
a evidencia no plural afasta-se d
o ponto
o centro afasta-se da evidência n
o plural
o ponto aproxima-se da evidência n
o plural

o essencial é o movimento permanente
entre o centro/o ponto/a evidência e a evidência n
o plural

a essência mostra-se
movimentadamente a
o ponto quando se aproxima d
o centro/nunca
quando se aproxima d
a evidência
a essência afasta-se d
a evidência n
o plural
movimentada
mente


quarta-feira, janeiro 19, 2005

breve gramática das raízes # 20 

eu podia rasgar o corpo e procurar satélites de luas infinitas
pôr as mãos em concha como um caço de sopa só
para suster o sangue que chove das árvores
podia escrever infinitamente versos que finalmente
formassem a crosta de um poema
ler todos os livros do planeta/escutar o canto de todos os pássaros audíveis
mas jamais alcançaria o sol profundo -
a garganta em espasmo doce das três gymnopédies de satie

houve alturas em que o mundo
se retorceu de belezas gigantescas/de flores de todas as claridades
onde os dedos que tocavam as teclas de um piano
as tocavam por dentro
e o piano era mão e a mão corda e a corda um círculo de pó dourado
elevando-se em todas as direcções do alto
um tempo em que os nomes das coisas não eram as coisas
ou correspondiam a coisas a que os nomes não respondiam
um mundo inventadamente permanente


breve gramática das raízes # 19 

as madrugadas são propriedade
do orvalho que os gatos recolhem em ensopados
lençóis brancos estendidos ao luar – gatos-
-magos/operários do líquido da infância/que me visitam
durante a noite entoando cânticos cifrados
numa língua de curtos sons agudos
se o que a minha mãe dizia era verdade
os gatos têm um nome secreto que só eles conhecem

quem hoje tiver presenciado o alvor
junto ao tejo
terá visto uma colossal sombra felina
ascendendo com o sol – o que isso significa
só os peixes-mestres e alguns pescadores de pérolas
saberão explicar


lema de vida 

o meu filho gosta de inventar anedotas.
teima tanto que de vez em quando sai uma extraordinária.
no outro dia inventou uma que é um verdadeiro lema
de vida.

depois de um dia inteiro a tentar
inventar uma anedota sobre meninos
com medo do escuro, inventou esta:

UM MENINO DISSE À MÃE
- MÃE TENHO MUITO MEDO DO ESCURO!
A MÃE RESPONDEU-LHE:
- MAS Ó FILHO, ENTÃO, TIRA OS ÓCULOS DE SOL E GOZA A PRAIA!


terça-feira, janeiro 18, 2005

breve gramática das raízes # 18 

é preciso pintar
jardins/encontrar rosas nos dedos
esticar os laços dos arbustos-ardentes-do-chile até que ficássemos atados
por um fio
-de-prumo
finalmente verticais como as araucárias
sentir nas pernas um desejo tremendo de cair
vir de dentro da terra e abraçar lençóis de linho
saber ver os números sem os ler
encontrar barcos nas pernas para
esticar os braços até se romperem
os tendões

e se partirem os ossos só para arrancar uma
laranja
assim fossem os dias e os sonos
como círios-trepadores em sinal de horror
finalmente jardins
verticais dentes-de-leão abraçando a obscuridade do ébano
assim os dias como violentas chuvas
corajosamente



segunda-feira, janeiro 17, 2005

breve gramática das raízes # 17 

uma borboleta-do-lúpulo arde dentro de um poema
os olhos torcem-se no tronco dos caracteres
que se revolvem em coração lambidos pelo fogo húmido de janeiro
ninguém a libertará
trata-se apenas de um poema que nada mais contém
que a cabeça em combustão de um insecto
aos gritos como uma assombrosa romã tentando salvar os filhos
dos dentes brancos e afiados de uma criança


CAMPO DE OURIQUE-ÉVORA-LISBOA-NOVEMBROS 

évora, cafetaria 35, 17 de Janeiro de 2005


para os que não sabem:

1.
campo de ourique não é lisboa/é em lisboa mas não é lisboa
2.
évora não é uma cidade/évora é só um município
3.
lisboa é uma cidade


nasci em campo de ourique como
o único ano da minha vida
e
m
que fui completamente
feliz aconteceu
entre o dia 25 de abril de
1974 e o dia 25 de novembro de 1975
o ano mais
completamente feliz da minha vida foi pass
ado em campo d
e ourique
(devo dizer que depois disso/depois d
a minha infância/tive momentos felizes
m
a
s
nunca mais voltei a ter dias
COMPLETAMENTE
felizes)
durante esse ano havia u
ma alegria que entrava pelos meus
pulmões a dentro/e eu
como
todas as pessoas
respirava a cada fracção de segundo
mas respirava ar de alegria
qualquer coisa no olhar das pessoas me fez acreditar que o resto
da minha vida
iria ser assim/durante aquilo a que as pessoas chamam PREC
eu acreditei
mesmo
que iria ser feliz
assim
o resto dos meus dias
nessa altura vivia na rua freitas gazul
e
os dias começavam com longos pequenos almoços nos
cafés
d
o
jardim da parada
onde toda a gente parava
havia uma paragem de táxis por exemplo
íamos ao antigo café “raiano” se queríamos encontrar funcionários do PCP
íamos ao café “o meu café” se queríamos dar com anarquistas a fazer discursos em voz alta em cima das mesas contra as eleições
às vezes
mas só às vezes
íamos ao “estrelas brilhantes” por causa das bolas de berlim
outras vezes mais raras tomava-se uma bica no café “ruacaná” onde se juntavam uns tipos notoriamente anti-stalinistas e foi aí que pela primeira vez ouvi um nome que iria mudar a minha vida muito tempo depois: trotsky compravam-se
lápis canetas cadernos ouvia-se música por uns auscultadores borrachas dossiers coisas de papelaria
na
“compasso”
livros de banda desenhada era no “rei dos livros” e almoçava-se em casa da minha
avó paterna
mulher de um velho maçon que se dava mal com toda a gente – o meu avô
isto ali na rua tenente ferreira durão
a ferreira borges
era a fronteira de campo de ourique
o limite desse lugar de velhos ulmeiros onde se gravavam
a canivete promessas de amor eterno
uma vez gravei com uma goiva de xilogravura do meu pai (que fino)
«morte ao elp e a quem o apoiar» o que deixou a minha mãe muito orgulhosa
sempre que saíamos de campo de ourique
dizia-se
vamos a lisboa
e íamos a lisboa todas as noites
reuniões em centros de trabalho do pc que nem imagino onde ficavam
colagens de cartazes noite dentro durante as quais alguém levava sempre comida
porradarias com tipos do MRPP comigo escondido dentro no renault 16 do meu pai...foi numa dessas noites que tive uma aparição
verdadeira
como aquelas de fátima
à séria
devo ter adormecido no carro e quando acordei estava deitado num outro sítio
mais precisamente
(vim depois a saber)
numa sala do centro de trabalho do pcp na lapa
sala essa que era toda
mas toda
chão
tecto
paredes
cadeiras
toda
pintada de vermelho e
mesmo à minha frente três gigantes caras
de marx engels e lenine
não sei porquê a fronha do engels era sempre mais manhosa
mas na altura aquilo pareceu-me absolutamente perfeito
belo
alegre

feliz

um dia veio novembro

os dias passaram a ter uma sombra
que ainda hoje transporto
chegou o pesadelo da escola/campo de ourique cada
vez menos/lisboa
cada vez mais
para afastar a sombra os meus dias eram agora passados a andar
andar
andar
andar
andar
dias a fio
dessas andanças nasceu um encanto uma espécie de abril
olhava as caras das pessoas na rua e na im
possibilidade de lhes conhecer os destinos e direcções
passei a inventar longuíssimas histórias que me acompanhavam
no andar
altura também em que descobri uns livros estranhos
numas livrarias estranhas que não falavam do costume
uns livros que a maior parte das vezes eram completamente quadrados
três ou quatro vezes rectangulares
pareciam copiados envés de impressos
nas suas capas desenhava-se sempre um enorme
&etc

um dia veio outro novembro diferente do primeiro mas um novembro

passaram-se muitas coisas estive noutros lugares
vim parar a évora
évora é uma espécie de pompeia habitada por napolitanos católicos e/ou comunistas do PCP ou ex-comunistas do PCP
e em évora tentei encontrar mais um pequenino abril
um abrilzinho
e encontrei-o primeiro na alegria do trabalho político de um partido ao qual aderira o PSR
com eles voltaram as reuniões onde se pensava pela nossa cabeça
os cartazes que se colavam não porque tinha de ser
mas porque era bom colar os cartazes que até éramos nós que os fazíamos
com a clandestina ajuda de um tipógrafo
da igreja católica – madrugadas de convicção
manhãs doces de acção no meio disso
formou-se um grupo de teatro
com amigos
lutando contra tudo e
contra todos (grupo esse que já não luta e teatro... mas conta à séria os tostões do ministério da cultura)
e o PSR foi-se em bloco para s.bento
em lisboa
lugar que nunca frequentei

um dia veio outro novembro diferente do primeiro diferente do segundo mas um novembro

mais uma vez as caminhadas sem fim
mais uma vez o olhar deitado aos rostos das pessoas que passavam
mas em évora caminhar é primeiro uma ilusão depois uma desilusão
olhamos os rostos e sabemos sempre quem são
para onde vão
o que estão ali a fazer
até o que estão a pensar
em évora até sabemos o que não queremos saber

um dia veio outro novembro diferente do primeiro diferente do segundo diferente do terceiro – o pior de todos os novembros

voltei a lisboa
em lisboa – mais perdido que nunca procurei um sítio
um lugar chamado “abril em maio”
sabia que lá estava uma pessoa com quem sempre senti uma estranha e infi
nita identificação
a eduarda dionísio
lembro-me de uma a vez a estar a ouvir
numa sessão qualquer de uma campanha eleitoral para umas eleições europeias – acho até que foram as primeiras – nessa altura no PSR ainda se pensava livremente
não era preciso pensar em bloco
e
ter sentido que da boca dela estavam a sair as palavras
que eu gostaria de dizer
é uma sensação horrível
é uma espécie de roubo sem delito
e por ela lá estar e pelo que lá se fazia
nesse abril em maio na “abril em maio”
fui ficando à procura de mim
a inventar rotas
a ver coisas
fazer outras
a reparar que havia coisas para reparar
mesmo em frente do olhos
bastava olhar

um dia veio um novembro que nem chega a ser um verdadeiro novembro

o novembro em que vivo agora
voltei às antigas caminhadas de lisboa
às histórias inventadas vindas dos rostos das pessoas com que me cruzo
e que agora escrevo sei lá porquê
sempre a tentar reinventar algum prazer nas horas
tentando ganhar resistência uma e outra vez


mas o que realmente gostava
o que queria mesmo para os meus dias
era poder voltar às manhãs
e às
noites de campo de ourique
nem que fosse só pelas bolas de berlim do “estrelas brilhantes”


breve gramática das raízes # 16 

numa bicicleta é possível alcançar a medida polegar
do voo suave dos pombos/a bicicleta
conhece o passo certo do voo humano
– há quem julgue que uma bicicleta é um mero meio de transporte
não é
são asas de um espírito circular
deslocando-se no invisível espaço das bandeiras


domingo, janeiro 16, 2005

breve gramática das raízes # 15 

quando a lama se movimenta sob os nossos pés
e o céu se ensanguenta
em cores de frida khalo
que resta à nossa acção que se quer directa
inequívoca
ectoplásmica
?
pergunto-te estas coisas porque és tu o grande mestre
aquele que sabemos sábio discreto e bom/o homem mais novo
que traz nos olhos e nas mãos uma violenta
força centípeda – força que contém
os princípios de tudo
e jamais
aquece a abominável esperança no futuro

habitas-me os sonhos como
um estrela
habita o espaço sideral: naturalmente
não sei porque é só em sonhos que me respondes – quando respondes

pergunto-te estas coisas porque não és triste
porque aprendeste a descansar –
só com tuas vestes vermelhas
aqueces o sol que dá luz às pedras e às raízes da passiflórea

esta terra sanguínea e as inconfundíveis cores no céu
tomaram conta de tudo
estamos a ser engolidos por um dragão sem portas
sobre as nuvens sentam-se todo os tipos de besta
trazem foices
que atiram sobre nós como se fossemos um campo para ceifar
(na realidade somos um campo para ceifar...)
trazem livros sem um único espaço em branco onde
pudéssemos semear
nem que fosse
uma pequena centelha de presente

é o futuro que nos engole
a lama é o futuro e a sua nefasta esperança


sábado, janeiro 15, 2005

breve gramática das raízes # 14 

é como se trepasse um relógio por dentro sob
o vidro que separa a máquina do homem
como se tivesse tomado um veneno de rodas dentadas um
veneno de pequenos parafusos
e molas

tudo estala como uma bomba freneticamente ansiosa por explodir
as mãos tentam agarrar-se aos números/os olhos
são já só obscuras cavidades alucinadas
entrei num movimento perpétuo de ponteiros circulares e calendários
que repetem badaladas de anúncio aos dias da semana
aos dias do mês
aos dias do futuro
como se tudo isso existisse
e fosse real
como a manteiga ou o leite

se ao menos me pudessem
extrair planetas da cabeça...
deixando-a oca como um espelho/lisa como
lençóis postos de lavado na cama...

se me pudesse entregar às mãos de um relojoeiro...


breve gramática das raízes # 13 

dois rapazes sobem a terra/têm dois cornos
cada rapaz apenas um corno – mas
os dois cornos são semelhantes
cornos de anho
para eles o cume da terra não tem fim – nem isso lhes importa
escalam escalam escalam
senhores de grandes prodígios
à sua passagem animam-se imagens de catedrais
construídas sem as mãos e as ferramentas dos canteiros/grandes bandeiras
multicores são içadas durante a infindável caminhada
maravilhosamente
os rapazes amam-se
acariciam os seus cornos infantis com as línguas quentes
e caminham e caminham
subindo a terra como se subindo a terra
os dias/as horas/as pequenas fracções de segundo/as centésimas fracções
de fracções de segundo criassem um todo material
científico
palpável às suas mãos adolescentes
mãos de absíntio/acácia-rosada/suaves mãos de álamo
tocando-se


sexta-feira, janeiro 14, 2005

breve gramática das raízes # 12 (alterado) 

desejo escutar as vozes cristalinas
das grandes baleias atlânticas/sentir-me aberto a todo
o amplexo solar do hemisfério sul/voltar a pisar a terra vermelha
das gargantas do grande atlas

quero viver dias límpidos e verticais
e a doçura dos contactos como forma
normal
de cada encontro

mas ontem naquela mesa no café
vi levantar-se uma besta que tinha dez
chifres e sete cabeças
a besta que eu vi
tinha as cabeças
feridas
de
morte
e ainda assim
vertia o vómito da agressão

a besta suicidava-se e sobrevivia ao mesmo tempo
foi-lhe dado esse poder e com esse poder
a fórmula da pura assolação e querendo demolir
outros era a si que destroçava

breve história da criação do mundo
à mesa de um café


quarta-feira, janeiro 12, 2005

fim de noite - a reunião 


terça-feira, janeiro 11, 2005

"CONVERSAS COM GLICÍNIA" 



um filme de Jorge Silva Melo

(ontem na Abril em Maio)

breve gramática das raízes # 11 

como um lenço/uma parede pintada/sulcada
pelas unhas répteis da criatura entre tijolos – inclino
o pescoço material das lunações que
tivemos
e é como se te visse lenço/reptil/parede sulcada

quero fugir como um lenço -
atacar com a força de uma parede pintada todas
as agressões que pesam na frágil cúpula
do edifício das horas em que deixo a terra em voos centrífugos
numa truculenta decomposição arterial

como um lenço/uma pedra pintada/um seixo na boca
um feixe de desespero
supremamente asfixiado tenho que me encovar
dos pássaros que aí vêm - experimentar
extrair das omoplatas esta entranhada raiz de formiga-leão
esconder-me como um lenço escondido na mão/um seixo/uma cruz dependurada


segunda-feira, janeiro 10, 2005

breve gramática das raízes # 10 

caiu a última vociferante ramada de acácia
sobre o contentor nuclear do nosso
amado corpo de álamo-negro e não
chorei
a solidão é o meu hábito/a urna que roda
em atacantes movimentos centrípetos
na floresta dos geometras-do-vidoeiro

onde plantarei esta ramada de acácia-mimosa?
na cama onde passámos tanto frio?
na memória de tantas agressões?

talvez a devolva ao tronco da árvore mãe
enterrado-a na terra revolvida –
no preciso local onde os soldados encontraram
o nosso cadáver
será como um sinal/uma marcação de território/dirigida aos
batalhões de implacáveis geometras-do-vidoeiro
o farol das mais tristes ilusões


breve gramática das raízes # 9 

a arma do gramático está na boca e na cauda –
semelhante a um basilisco com as mãos animadas de punhais
flamejantes
da sua boca exala enxofre
cavalga com duas patas na terra e duas no mar
conhece as cidades e os homens que nelas levitam
é compositor de todas as partituras – as da morte
as do nascimento as do desejo
cada movimento nosso é comandado pela musica dos seus
relâmpagos de esterco e sésias
há quem tenha o dom de o fitar e lhe conhecer os olhos
e a resina
das suas lágrimas – esses
que se banharam nos lagos cheios da seiva quente
dos espasmos construtores – jamais usarão da palavra
pois as gargantas foram-lhes seladas para sempre

fecham-se cortinas
sobre os meus olhos uma luz negra impede-me de entrever
a tua face e mover os meus lábios em direcção à tua pele
nada tenho que me defenda – nem crença/nem força/nem dinheiro/nenhum dom
nada posso contra a grande gramática

fecham-se cortinas resta-me esperar a tua piedosa saudação fúnebre


domingo, janeiro 09, 2005

breve gramática das raízes # 8 

eis o lugar do advento da grande praga dos gafanhotos
foi nesta praça que queimaram aqueles que apontavam a estrela da manhã
e
as
mulheres menstruadas pelo poder da lua nova
onde hoje está uma fonte/antes
ardiam as fogueiras incineradoras das almas
refractárias
e évora é a mesma – activo tribunal de santos-ofícios
hoje afogam-se cabeças de anjo
na água marmórea da fonte – ontem
partiam-lhes os ossos rasgando-lhes as asas com chicotes

estranho pedaço de terra este onde só há julgamento
e a força bruta dos comandantes

sentado a uma mesa deste arcaico templo de bufos e ratazanas
assisto através da grande montra do café arcada
passivo/ao cortejo dos penitentes
é domingo
e não sou melhor que o arcebispo presidente


breve gramática das raízes # 7 

fez-se silêncio no céu e o fumo dos perfumes
ergueu-se como um tronco de mármore em direcção
à grande estrela absinto
e houve granizo e fogo de mistura com sangue
e a terça parte dos mares converteu-se em absinto
e a terça parte da terra converteu-se num barro violentamente
algemado
então uma roseta caiu do que está acima do horizonte
e foi-lhe dada a chave do abismo para
abrisse o poço do abismo
insectos fotosféricos – geometrídeos/esfinges/traças/moscas-serra/calcidídeos/abelhas-minadoras/mosquitos não picadores/moscas-soldado/tavões/cincidelas/coveiros/cantarídeos/relógios-da-morte/capricórnios/percevejos até 35mm/alfaiates/gafanhotos de antenas curtas/esperanças/grilos até 25mm/cavalinhos-do-diabo/moscas-da pedra/efémeras/pulgas/piolhos e peixinhos-de-prata
subiram ao éter como fumo saindo de uma fornalha
e a cada um deles
foi-lhes dado o poder que têm os escor
piões da terra
naqueles dias os homens buscaram a morte e não a encontraram
desejaram morrer e a morte fugiu deles
naqueles dias só asas como o ferro que aparelha os cavalos para o combate

sábado, janeiro 08, 2005

breve gramática das raízes # 6 

é uma estória de barcos e dos seus amantes:
marinheiros cativos do amor aos reflexos -
é a estória de um implacável espelho marinho
onde mareantes acorrentados ou heras trepadeiras
escalam
rochedos de pequenas luzes vermelhas em alto mar

estória de um gato e de uma figueira-das-índias
lambidos pelo sol do espinho-branco de um espaço vertical

num navio os marinheiros tornam-se seres arrebatadores
fora de-
-si como dálias na rebentação das ondas

é uma estória de barcos atracados ao porto
florestal dos rododendros – de
navios-marinheiros possuídos pela brutalidade de uma azul
e verde imensa íris contra as árvores e os frutos
hipnotizadores de línguas

é a estória de uma furibunda brutalidade
aquática
que valeria o esforço de a contar


sexta-feira, janeiro 07, 2005

breve gramática das raízes # 5 

como uma pena dura e opaca da natureza da ágata
tens veios e manchas coloridas
como o jaspe [lat. iaspe / gr. iaspis / hebr. jasepe] –
julguei-te um deus transparente de onde saíssem
lágrimas e outros seres vivos cheios de olhos
vi-te como um cordeiro em pé preparado para a emulação
vi-te como uma cítara – um cálice de perfume
vi-te como um cálice de perfume com o som de uma cítara
emulada

até que soube quem eras sob o teu véu de veias e manchas coloridas
como uma pena dura e opaca da natureza da ágata [lat. achates / gr. achát] –
vi a carne sob a tua pele – a tua mão em arco
carregando um livro escrito por dentro e por fora
que a tudo condena – que a todos culpa – vi
as tuas armas – flecha/coroa/espada/balança/peste/túnica branca/roseira – vi
os teus cavalos cegos – branco/vermelho/negro/verde –
vi-te e deixei que me visses
permiti que o teu exército de limalhas me tocasse
como a uma pena dura e opaca como a sardónica [lat. sardonycha / gr. sardónyx]
até que os meus ossos se desfizessem em poeira de lótus

como uma indefinida asa brilhante/dura e opaca como o ónix [lat. onyx / gr. ónyx]
vi-me um deus transparente de onde saem lágrimas e outros
seres vivos cheios de olhos – vi-me como estou:
um cordeiro em pé preparado para a emulação
uma cítara – um cálice de perfume
um cálice de perfume com o som de uma cítara
emulada



quinta-feira, janeiro 06, 2005

breve gramática das raízes # 4 

que ninguém tome a tua coroa
és a árvore que me protege

mesmo que se abra uma porta no céu
e no céu alguém estiver sentado
num trono
e esse for o primogénito dos mortos
tu – minha árvore – que tens olhos como chamas
e raízes como bronze –
não me desabrigues

mesmo que à tua frente se abra uma fenda até ao centro
da terra
e lá esteja sentado
num trono
o príncipe do mundo
continua a laçar-me com teus ramos/a enverdecer-me
tenho a pele ligada a ti como um filho acabado de nascer

sei
que os que tomam o assento dos tronos
são cruéis e sabem dos teus poderes – querem a tua coroa
conhecem a força cerúlea das tuas folhas gigantes

eles vão querer que me repudies
meu amante das tardes sem princípio
preciso do olhar protector da tua copa em forma de águia-de-sete-
-cabeças

tenho vestido o hábito dos operários – possuo as ferramentas
com que os mineiros encontram o carvão que contêm o diamante
mas só em ti reside a luz que tudo indica – guia-me

mesmo que o rei do mundo te ordene a minha expulsão – não
desertes
de mim...ou
...se assim tiver de ser – não esqueças que te amo
meu castanheiro


quarta-feira, janeiro 05, 2005

breve gramática das raízes # 3 

tenho sede de vós – virgens prudentes preparai as vossas lâmpadas
ensinar-vos-ei o temor e o medo – preparai-vos para o fim do sol
quero tocar-vos – ter nas mãos os vossos corações marinhos
a vossa viagem terminou
abrir-se-ão poços para que neles se derrame o orvalho
negro do fim da aurora
que ressoe continuamente das vossas bocas
o som dos vossos nomes perdidos
deixareis de ser homens
nenhuma memória vos consolará
eu vos conduzirei ao momento final da desaparição
que seja eu o sacerdote da vossa irreversível castração

cobrirei as vossas cabeças com um véu que vos cegará
e que seja plantada uma árvore sobre o local onde
enterrarei os vossos sacrificados falos
no carmim das folhas que hão-de nascer dessa árvore sagrada –
de que sois semente e adubo – residirá a vossa última esperança – o beijo
quente dos seres voadores
que na carne dessas folhas
procurem o alimento e o prazer humano
que só os pássaros e os insectos sabem reconhecer


terça-feira, janeiro 04, 2005

breve gramática das raízes # 2 

silêncio

eu vi-os –
sobre a secretária onde escrevi o meu testamento –
sete candelabros de ouro
assim como vi
àquele que era semelhante a um filho do homem
e de cuja boca saía uma faca afiada de três gumes
não era dia nem era noite e
havia navios suspensos sobre a casa

silêncio

uma águia pousou sobre o meu braço esquerdo
e abrindo a sua boca em garra extirpou-me
a mão que escreve para que o sangue me saísse
e tudo lavasse – papeis/corpo/desejo/testamento

silêncio

aquele que era semelhante a um filho do homem
chamou os navios à navegação
soaram apitos agudos – sonoras sirenes voadoras
e com a faca – o ser esdrúxulo que me visitava -
apunhalou a águia que caiu morta sobre
um inexistente chão quadriculado

silêncio

os navios partiram e
nos candelabros acenderam-se chamas azuis - estáticas
invibráveis...

ruído

sem que tivesse adormecido nem acordado

tudo desapareceu – nem uma gota de sangue
manchara o papel do testamento – apenas uma fina dor no peito perdurou
como se sentisse cravada no coração uma afiada faca de três gumes


breve gramática das raízes # 1 

é uma casa de espelhos convexos –
firmados a dois e dois em maiores
espelhos côncavos por sua vez encastrados a dois e dois
num colossal muro espelhado aparentemente raso

cada palavra dita reflecte-se n
os espelhos ecoando em infinitas multiplicações canoras
por essa razão é uma casa de silêncios ecoando
em infinitas multiplicações silenciosas

na casa dos espelhos
cada gesto exibido reflecte-se n
os espelhos ecoando em infinitas multiplicações gestuais
por essa razão é uma casa de não-gesto ecoando
em infinitas multiplicações não-gestuais

na casa há um espelho vermelho – um único espelho vermelho
que nada reflecte – um espelho não-espelho
ecoando em infinitas multiplicações de não-reflexos

chamam-lhe o espelho arquitecto


domingo, janeiro 02, 2005

de te reler - o espelho - uma nota 

alguns dos poemas de "de te reler - o espelho" foram entretanto modificados e corrigidas gralhas que ainda aparecem nos posts deste blogue. pelo facto peço desculpa. seja como for, o essencial dos poemas foi mantido na versão revista do conjunto do texto.
FMG

de te reler - o espelho - para que conste 

para que conste
à margarida guia


cada um destes poemas foi escrito para a actriz margarida guia – para a sua voz/para o seu movimento – para a musicalidade ímpar que imprime ao seu trabalho – enquanto os escrevia parecia-me ouvir a sua voz em fundo – estou de facto convencido que a ouvia/sussurrada – escrevi-os embuído da sensibilidade rara com que a margarida se relaciona com a vida
estes poemas – não só por isso – são-lhe dedicados


para que conste
à eduarda dionísio



"ANTES QUE A NOITE VENHA"
de eduarda dionísio
é um dos mais belos textos da literatura portuguesa
li-o pela primeira vez em 1993
sobre os textos/monólogos que o compõem realizei em 2000 uma exposição de pintura na sociedade nacional de belas artes em lisboa
há pouco tempo voltei a encontrar-me com o livro e a sentir-me de novo interpelado pela sua força
fui escrevendo poemas que não tendo nenhuma correspondência directa com os da eduarda alguma ligação têm
ligação essa impossível de explicar porque eu próprio não a entendo – nem me interessa explicar
mas talvez...
talvez exista um efeito de espelho entre os dois livros – dois lados de um invisível vidro reflector
de um lado os monólogos/que se movimentam num poético cosmos feminino e do outro os poemas que tentam considerar uma visão/por vezes estranha e paradoxal/de um lugar masculino da existência ou até – melhor dizendo – uma androginia masculina – verdadeira condição do homem/raramente assumida
e
por isso
raramente expressa
quem sabe se a ligação entre "DE TE RELER – O ESPELHO" e "ANTES QUE ANOITE VENHA" resida precisamente no confronto destes dois [um] peculiares universos expressos pela irremediável dor que o amor transporta.
estes poemas – não só por isso – são-lhe dedicados




frederico mira george, 25 de Dezembro de 2004


de te reler - o espelho # 40 

de te reler – o espelho

de te reler - o espelho # 39 

escrevo o meu nome num papel – sei-o de cór – ao nome/sei o meu nome de cór
escrevo letra por letra esta pedra que arrasto desde o berço e é
o teu nome que aparece impresso na página que julguei em branco
escrever é perigoso/como as orações ditas inconsequentemente – podem realizar-se
escrevo o meu nome outra vez – sei-o de cór – ao papel/sei o papel de cór
agora é a pedra que aparece cravada na folha
nem a caneta nem o papel nem a pedra nem tu pertencem a estas palavras
que me distinguem dos outros viventes – é no entanto a vossa marca a
minha assinatura possível – a pequena luz sobre os indecifráveis caracteres que me compõem


de te reler - o espelho # 38 

relato de um sonho
com o livro da revelação/apocalipse
de joão apóstolo

uma mulher vestida do sol tendo a lua em baixo dos pés e
na cabeça uma coroa de estrelas – estava grávida
nos céus miguel e os anjos menores batalhavam/aos pés da mulher
um dragão das estepes – um lindworm - lambia-a
nos céus os anjos continuavam a sua batalha ignorando a mulher e o dragão
estavam muito feridos/não sangravam – o dragão parou a língua e ficou parado
ela teve o filho – à mulher deram-lhe as duas asas de uma grande águia enquanto
o lindworm cuspia um rio de placenta sobre a criança – nunca se quebrou o cordão umbilical
parado na areia do mar eu vi ascender do sal
uma fera/senti-me semelhante à fera e capaz de batalhar com ela – um anjo
verde ou violeta muito ferido voava sobre uma espécie de montanhas
vinha trazer a boa nova: «a todos os moram na terra/eu digo:
T-E-M-E-I»


Mário Cesariny 


de te reler - o espelho # 37 

esta é a última carta que te escrevo –
todos os planetas que existiram existem e existirão todos os
maravilhosos insectos terrestres a cor do açafrão da índia lençóis de cetim
as pirâmides do egipto as estátuas da ilha da páscoa/o sol – nada
nenhuma das maravilhas do cosmos se me fosse oferecida compensaria
a tua ausência no meu coração
sem sofrimento o corpo destrói-se/aquilo a que chamámos nosso amor
foi tudo o que quiseres mas não trouxe o sofrimento necessário à sua floração
por isso destruiu-se/acabou/ou não começou/vou-me embora querido
encontrar-nos-emos nos campos celestes de ítaca onde nos voltaremos a beijar


de te reler - o espelho # 36 

soubesse eu desprender-me destes anzóis e não voltaria a mergulhar-me
em ti – a cama/onde esta água me afoga/só para ti é um prazer
quero voltar à secura das searas onde a solidão nunca me encurralou
quero voltar ao princípio/ao lugar das intocáveis rosas amantes


de te reler - o espelho # 35 

o único país onde realmente vivi não existe – não é nação
não tem bandeira nem hino nem religião organizada/é só sol
terra vermelha com cactos que fazem música quando o vento os arranca
amo aquele lugar como amaria a pele do meu amor se tivesse um meu amor
e talvez nem lá tenha estado dois dias –
quem pisa o solo do sahara livre amará para sempre
a liberdade de um lugar sem pontos cardeais
o que dói é saber-me para sempre perdido dessa mãe onde gostaria de arrefecer
deixando ao céu as ossadas do que fui ao som de monteverdi num pequeno gravador a pilhas



sábado, janeiro 01, 2005

de te reler - o espelho # 34 

conheci mozart em pessoa em alfama perto de santa apolónia
num cafézito que está sempre aberto aos feriados
é um tipo azulado com cara de corvo assustado
e desde esse dia tenho uma melodia inscrita no cérebro que me enlouquece
hoje ao início da manhã ouvi a boca de um pássaro roxo reproduzir
um cantar organizado em tudo semelhante a esta melodia que me atormenta
juraria que aqueles olhos assustados...


de te reler - o espelho # 33 

quando morreste eu era pintor/quis fazer uma lápide para a tua sepultura
e cheguei a desenhá-la/rigorosos traços/perigosos riscos/três cores/papel vegetal
[perdi-o entre tantas mudanças de paradeiro]
nunca tive dinheiro para pagar a um canteiro que gravasse numa pedra a teu gosto
esse desenho tricolor que quis para teu lençol e aconchego
já se passaram anos? as tuas ossadas já foram levantadas – isso eu sei/carregadas
numa pá de coveiro por um diligente funcionário camarário no cumprimento do dever
para parte incerta? a verdade é que perdi o rasto do teu cadáver –
neste primeiro dia do ano – sabes que já é janeiro - sabes? – gostava que me dissesses:
terias gostado de uma campa cuidada? terias querido uma lápide feral feita por mim sobre
o teu corpo em decomposição?


2005 - "Um dia, sonhei que acordava" - M.Cesariny 

"DEMON EST DEUS INVERSE"



gravura frederico mira george sobre fotografia de suzana paiva

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