domingo, fevereiro 12, 2006
tratado secreto do teatro #1
# 1 – cena primeira
a – o que é que estás a fazer?
b – a beber chá.
a – pensei…
b – ainda cá estou e a beber chá.
a – não tens frio, assim, sem roupa, só com um xaile?
b – se tivesse frio tapava-me, ou vestia-me.
a – já toda a gente começou o dia. toda a gente parece que tem um dia para começar. há milhares de carros na rua. há milhares de cabeças. vistas daqui, desta janela medonha – dantes adorávamos esta janela – parecem todas organizadas. dá ideia que o vazio não cabe em ninguém. será que toda a gente tem mesmo tanto para fazer? tenho vontade de me engolir sabes? se hoje é o último dia, queria engolir-me e digerir-me, defecar-me. transfigurar-me. porque é que viemos para um terceiro andar?
b – foi a casa que encontrámos. tínhamos pressa.
a – dessas coisas lembras-te sempre. tenho frio quando olho pela janela. não quero voltar à rua. a nenhuma rua. queria que os pássaros morressem todos. que as árvores implodissem. queria ter fome. queria lembrar-me do que é ter fome. ao contrário do que pensas eu não odeio as coisas…
b – eu sei que não… eu sei mais de ti do que imaginas, mas hoje podes odiar tudo. hoje eu também odeio tudo. principalmente essa tua imagem junto à janela, «à nossa janela», a essa janela medonha como tu dizes… não quero falar mais.
a – …eu não odeio tudo, mas tenho medo dos pássaros. não odeio nada aliás…
b – claro.
a – a única coisa que gosto no rio é ver os navios a zarpar. os navios são coisas intocáveis. majestosas. gosto de imaginar os marinheiros. os cozinheiros. os mastros. os motores. é tudo inatingível neste rio. sinto uma sombra a tocar-me, a acariciar-me as pernas. já há uns meses que sinto isto. sombras materiais que me tocam e beijam. sombras escarlate que me extasiam. tenho medo das sombras mas preciso delas. sobretudo hoje.
b – não penses.
a – penso. quero pensar. quero pensar porque é que vou ficar sozinho com esta cidade pela frente, cheia de repteis e animais, e palavras de costas voltadas para as bocas que as proferem. quero sobreviver como as flores. e ter fome. ter a memória do que era ter fome. tens a certeza que não tens frio?… queres que vá para ao pé de ti?... e tu pensas em quê?
a – no chá.
a – o que é que estás a fazer?
b – a beber chá.
a – pensei…
b – ainda cá estou e a beber chá.
a – não tens frio, assim, sem roupa, só com um xaile?
b – se tivesse frio tapava-me, ou vestia-me.
a – já toda a gente começou o dia. toda a gente parece que tem um dia para começar. há milhares de carros na rua. há milhares de cabeças. vistas daqui, desta janela medonha – dantes adorávamos esta janela – parecem todas organizadas. dá ideia que o vazio não cabe em ninguém. será que toda a gente tem mesmo tanto para fazer? tenho vontade de me engolir sabes? se hoje é o último dia, queria engolir-me e digerir-me, defecar-me. transfigurar-me. porque é que viemos para um terceiro andar?
b – foi a casa que encontrámos. tínhamos pressa.
a – dessas coisas lembras-te sempre. tenho frio quando olho pela janela. não quero voltar à rua. a nenhuma rua. queria que os pássaros morressem todos. que as árvores implodissem. queria ter fome. queria lembrar-me do que é ter fome. ao contrário do que pensas eu não odeio as coisas…
b – eu sei que não… eu sei mais de ti do que imaginas, mas hoje podes odiar tudo. hoje eu também odeio tudo. principalmente essa tua imagem junto à janela, «à nossa janela», a essa janela medonha como tu dizes… não quero falar mais.
a – …eu não odeio tudo, mas tenho medo dos pássaros. não odeio nada aliás…
b – claro.
a – a única coisa que gosto no rio é ver os navios a zarpar. os navios são coisas intocáveis. majestosas. gosto de imaginar os marinheiros. os cozinheiros. os mastros. os motores. é tudo inatingível neste rio. sinto uma sombra a tocar-me, a acariciar-me as pernas. já há uns meses que sinto isto. sombras materiais que me tocam e beijam. sombras escarlate que me extasiam. tenho medo das sombras mas preciso delas. sobretudo hoje.
b – não penses.
a – penso. quero pensar. quero pensar porque é que vou ficar sozinho com esta cidade pela frente, cheia de repteis e animais, e palavras de costas voltadas para as bocas que as proferem. quero sobreviver como as flores. e ter fome. ter a memória do que era ter fome. tens a certeza que não tens frio?… queres que vá para ao pé de ti?... e tu pensas em quê?
a – no chá.