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terça-feira, fevereiro 21, 2006

tratado secreto do teatro # 12 

12 – cena décima segunda

a – prefiro estar de pé enquanto falo.
b – eu fico aqui.
a – começo eu. §

§ só quando tinha doze anos é que soube que era um ser humano. até aos doze recusava-me a sê-lo. rastejava. sentia a pele verde, escamas, patas com as pontas dos dedos achatadas, dedos de osga. trepava paredes com os movimentos rápidos das osgas. outras vezes sentia-me uma pequena barata caseira ou mesmo uma grande barata voadora. era raro estar na posição vertical. sentia-me absolutamente rastejante. sempre. réptil ou insecto. mas rastejante. era quase impossível convencerem-me de que era humana. de quando em quando encontrava seres que da minha «espécie». baratas, lagartos, cobras, salamandras e a comunicação com eles era tão perfeita, tão fluida. fui muito feliz durante aquele tempo. houve mesmo um dia em que senti nascerem plumas coloridas no meu corpo. plumas longuíssimas, vermelhas e azuis e cuspi fogo. nesse dia para além de rastejar pude voar. saí pela janela do meu quarto como um perfeito e luminoso dragão. sobrevoei o meu bairro. horas seguidas durante a madrugada. fiquei tão deslumbrada com essa possibilidade que me demorei tempo demais. não imaginas o que é o apelo das asas. há uma energia sobrenatural que nos empurra para o voo. quando ganhei coragem para voltar ao meu quarto já os meus pais lá estavam. tinha sete anos e até aos onze estive amarrada à cama com umas correntes e uns cintos de cabedal. eles teriam feito tudo para me «tratarem». só me era permitido sair da cama para ir à casa de banho ou tomar banho. ainda assim, durante esses anos, nunca abandonei a minha condição rastejante. o meu sonho réptil. se tivesse querido ter-me-ia escapado com facilidade às correntes. bastava que tivesse feito escorregar o meu corpo serpenteante. mas nunca o fiz. naquela madrugada em que saí para voar, vi o olhar de pânico e terror imenso dos meus pais. percebi que os estava a matar e eu queria-lhes muito bem. a partir dali tudo se passava exclusivamente na minha cabeça. tentava contrariar ao máximo as modificações do corpo. deixava que a enfermeira tratasse de mim sem nunca a contrariar. até os médicos começaram a achar que eu estava a progredir. e, na perspectiva deles estava. voltei a ver sorrisos na cara do meu pai. a minha mãe voltou a dormir descansada. isso também me fazia bem, apesar do sofrimento de estar ali amarrada e ter praticamente perdido o contacto com insectos e répteis. e o pior de tudo: não ter voltado a voar. ser dragão é expressão máxima da liberdade, da força, da sabedoria, do poder, da vontade de fazer bem a tudo e a todos. tive de prescindir disso, mas ganhei a consciência leve da tranquilidade dos meus pais. não disse: «ter PRATICAMENTE perdido o contacto com insectos e répteis», por acaso. houve sempre baratas pequenas ou lagartixas que me vinham visitar à cama e que eu guardava secretamente debaixo dos lençóis – tinha as mãos livres, tinha dito?, acho que não – e à noite nos meus únicos momentos de solidão podia acariciá-los, beijá-los. senti-los a andar sobre a minha cara e nas palmas das mãos. §

§ aos onze anos os médicos decidiram que as amarras já não eram necessárias, mas que deveria continuar acamada durante, pelo menos, mais um ano e continuar a ter a assistência continuada de uma acompanhante, mas, segundo eles, não havia necessidade de ser uma enfermeira. foi nessa altura que uma rapariga de dezasseis anos veio viver connosco. tinha os cabelos compridos e muito encaracolados, castanho-escuro e pele muito branca. um dia apareceu com o cabelo pintado de ruivo. parecia um anjo, uma fada. aquela rapariga tornou-se um elo entre a consciência que sempre tinha mantido de mim própria, não-humana, rastejante. consciência de ser um réptil ou um insecto. ela tratava e mim de uma maneira diferente de tudo o que tinha sentido. todos os gestos dela eram lentos e delicados. gostava que fosse ela a lavar-me, por isso fingia ser incapaz de o fazer sozinha. eram momentos mágicos, sublimes. ficávamos as duas dentro da banheira durante horas. e ela lavava-me sempre a olhar-me nos olhos. fixamente. não dizíamos uma palavra. não precisávamos de dizer uma palavra. não havia palavras para dizer. só o toque. só o despertar daquele novo e inesperado contacto sensual com um ser de uma espécie que até ali não era a minha. §

§ fui perdendo as minhas capacidades de transformação física e os sonhos foram deixando de ser centrados na minha anterior identidade. durante um tempo deixei mesmo de ter identidade. quando uma barata ou uma lagartixa vinham ter comigo à cama anda lhes sorria mas já não sentia aquela igualdade fraterna de antes. acordava sempre antes do sol nascer numa ânsia desmedida de ver aquela fada entrar pelo meu quarto. comecei a sentir coisas humanas. comecei a reparar nos primeiros cheiros, a ser sensível aos olhares das pessoas, a diferenciá-las. quando ela entrava no quarto, ainda de pijama vestido, comecei a sentir uma vontade que não sabia explicar de lhe tocar na pele. ela costumava beijar-me a testa ao mesmo tempo que me dava os bons-dias e eu comecei a corresponder-lhe. experimentei o primeiro beijo, senti os meus lábios a aquecer pela primeira vez. ela tomou conta de mim e da minha alma. deixava-me beijar-lhe o corpo, beijava-me o corpo. passava os cabelos sobre a minha pele. ao fim de um ano tinha-me tornado, definitivamente humana. §

§ até que no dia do meu aniversário ela apareceu no quarto completamente transformada. eu estava acordada há horas, como sempre, à espera que ela chegasse e me trouxesse o sol a que me tinha habituado desde o princípio. mas desta vez tinha o corpo verde raiado de um azul cerúleo. a pele coberta de umas escamas duras. tinha perdido toda a horizontalidade. rastejava como uma iguana. os olhos vermelhos. garras. saltou para a minha cama e tentou comunicar comigo. dizer-me qualquer coisa. já não era possível comunicar. §

§ no dia do meu décimo segundo aniversário, percebi que aquela fada que me tinha sido enviada, nem era fada, nem humana. era o réptil que eu tinha esperado para a minha vida durante todos aqueles anos em que estive amarrada à cama. mas eu já estava. condenada à humanidade. já não era possível fazer fosse o que fosse para retornar à minha anterior forma de existência. não sei porque não se revelou ela logo no princípio. tudo teria sido diferente. o meu amor tinha-me levado a uma respiração humanóide e tinha-me arrancado ao estado natural em que tinha nascido, para no exacto momento em que perdera toda a minha alma rastejante, ela se mostrar, como era. réptil, insecto, serpente, dragão, como eu havia sido. §

§ tratei-a como a um animal pestilento. depois de ter sentido o primeiro amor, senti a primeira raiva. o primeiro ódio e matei-a. estrangulei-a com um cinto. não sei que razões ela teve para fazer aquilo. nem lhe dei tempo para ela mo revelasse. não lhe consegui perdoar que me tivesse forçado à condição humana sendo ela como eu. sabendo ela o que eu era e o que eu sentia. ela podia ter-me salvo. nem sei se ela tinha alguma intenção escondida, alguma coisa programada. um plano. sei que tinha doze anos e que a raiva não me deixou sequer pensar. aos doze anos soube que era humana e que era capaz de matar.

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