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sexta-feira, dezembro 31, 2004

de te reler - o espelho # 32 

daqui vê-se o horizonte na sua verticalidade suburbana
daqui vê-se o tejo cobardemente contido pelo bom-senso das gaivotas –
tu dormes
daqui vê-se a lua em eclipse/vê-se o acordar diabólico dos falcões
vê-se tudo o que se move no interior da terra
daqui vejo-te dormir e pressinto-te em espasmos de fúria muscular/presa
à cama presa a ti presa a esse orgulho que te tranquiliza as veias
daqui não se vêm barcos nem pescadores nem fábricas de suor operário
aqui/nem em lado nenhum/se ouvem as pancadas decidas dos martelos triunfantes
malhando sobre o ferro em brasa que nos levaria à invasão violenta da cidade
ao som organizado dos tambores voadores/dos pássaros em revolta
os dias continuam na sua horizontal verticalidade suburbana – o resto
são delírios de um amor insone – dorme
dorme


de te reler - o espelho # 31 

31 de dezembro de 2004

possuo um coração capturado/afogado num líquido uterino/cativo
entre as finas grades de estanho de uma magnificente gaiola para seres pasmados –
antiga e sumptuosa habitação de um castanheiro


de te reler - o espelho # 30 

não posso negar o prazer deste meu cansaço/da dor no joelho/do batimento explosivo
do coração/da cabeça em ferida que trago no olhar já desfeito destas manhãs sem voo
tudo isto é
também
um prazer profundo/não negarei que gosto de ver mal – gosto de óculos – não direi que
as tonturas permanentes e os desequilíbrios me desesperam completamente
é um facto que a tortura física se pode tornar num pretexto para existir –
uma máquina que funciona mal/dolorosamente/é uma máquina que funciona
pretextos para existir – nada mais que pretextos para existir – no entanto
irremediavelmente – os pretextos esgotar-se-ão/a existência extinguir-se-á – tu não virás
(meu pretexto de dor – meu mel)
agarrado a uns óculos de leitura aqui continuarei sentado na ilusão de mais um dia


quinta-feira, dezembro 30, 2004

site IF fez dois anos 



Pouco para dizer, muito para escutar, tudo para sentir.



de te reler - o espelho # 29 

dois milhares de velas acesas depostas aos pés da estátua de fernando de bulhões
derreteram o bronze formando uma prodigiosa amálgama de retorcidas
personagens ardentes – é por um amor assim que espero/um amor que faça toda a sólida
armação óssea do corpo retorcer-se numa fornalha de velas em oferenda –
laboriosamente o escultor burucrata refez a estátua – não percebem
aquela amalgama de bronze era o verdadeiro antónio de lisboa
o amor não é da competência dos artífices de imagens beatas
o amor começa onde ao ícone acaba – por isso te rejeito/gentil ourives
do nosso afecto filigranico


de te reler - o espelho # 28 

se aprendêssemos a plantar na raiz de um ulmeiro sementes de girassol
e a vida nos chegasse até ao desentorpecer dessas ilusionistas flores
da claridade –
nas nossas mãos nasceria uma caixa preciosa – a urna onde habitam as pérolas azuis com que os operários fabricam olhos


de te reler - o espelho # 27 

o levante do rio abraçará as margens salinas das colunas de lisboa
procura-me na leveza de um casulo – despido de tudo/espero-te/nu de mim
choverão rosas-de-alexandria e este mar de rio mostrará o seu vulto de fogo
as árvores abrirão as suas secretas portas para nos acolher – chegou o momento
de nos fazermos marinheiros – livremente acorrentados pela cordoalha que tudo liga
passadas as colunas de lisboa – meu adorado mártir – verás o grande grande sol
deste último dia


quarta-feira, dezembro 29, 2004

cadernos de fotografia # 4 


de te reler - o espelho # 26 

há quantos anos – walt whitman – vimos a esta casa de banho fazer amor
– encobertos – como estranhos – como vulgaríssimos vermes
na sujidade pública deste café? há quantos anos tu e eu nos amamos sem rosto?
só te conheço com minhas pequenas mãos (e por esse ridículo odor acre
a after-shave de aloé preso ao colarinho das camisas) – não quero
que nada disto mude/nem o café nem esta fétida caixa de
dejectos: nossa cama de docel/nosso palácio – é aqui/só aqui/que o meu corpo anão
cede e só por ti cede – foi neste pardieiro que aprendi a ser uma lâmpada acesa
coisas que nem os livros supõem e que eu senti/aqui/em mim/nesta caixa ao fundo do
corredor do café
foste muitas vezes – quase sempre – alegre dentro de mim neste nosso palácio
não quero que nada mude...mas há quantos anos meu querido whitman – há quantos
anos nós duramos? nós ainda duramos?


de te reler - o espelho # 25 

corajoso – pisaste a última pedra da escada/o maligno degrau dos julgamentos
eles vão exigir que te sintas culpado de um crime que
não cometeste e até desconheces – se provasses a tua inocência/o que
seria impossível – dar-te-iam uma taça de barro com essência de acácia
e chamar-te-iam mestre para sempre – mas acredita
serás dado como culpado e empurrado vivo para um esquife de ébano/sem te ser
concedida uma palavra – não estranhes o som macabro de um choro mudo à tua volta
– são as viúvas – os juizes – os profetas – os donos das espadas
não penses em nada/ignora a tua sorte/goza o cheiro da terra/aproveita o conforto da cova
que cavaram ao teu tamanho com tanto escrúpulo/extasia-te com a solidão dos príncipes
encantados – és um príncipe/eles não se esquecem disso – invejam-te
alguém/secretamente/tomará a tua pele em cuidados serás beijado eternamente
aproveita a doçura dos beijos eternos


terça-feira, dezembro 28, 2004

de te reler - o espelho # 24 

eu podia ter sido uma nota numa partitura de bach/um pequeno traço
na ordenação misteriosa de um deus musical – um ponto ou uma pausa –
até o borrão de um momento venenoso de uma inevitável fraqueza
eu podia ter sido o desenho do mais pequeno país do planisfério
e nem ter espaço no corpo para que se imprimisse o nome da capital nacional do meu ser
eu podia ter sido teu amante se tu me tivesses amado com um só átomo da tua alma
eu podia ter-te na boca/nas mãos/no olhar vermelho da minha brancura
e não pude ser nada/não existo/não posso querer existir porque me faltas no sangue
a claridade visita-me nesta cela onde sou recluso deste amor fabular
e até talvez seja feliz se felicidade pode ser a solidão com que os ciprestes se enraízam


de te reler - o espelho # 23 

pode ser num cinema ou numa casa de banho de hotel –
num cinema – sim – basta escolher um filme ao acaso numa dessas
salas sem lugares marcados/talvez haja algum com um jardim por perto
com ramalhetes de amaranto e bocas-de-lobo e árvores japonesas e bancos à inglesa
onde nos pudéssemos recostar/há jardins assim com lagos e
peixes maiores que os lagos/negros/devorando-se uns aos outros por pedaços de pão
...não interessa/que seja numa lisboa qualquer/com árvores japonesas
sem árvores/com ramalhetes amaranto/sem ramalhetes amaranto
estarei no escuro de um cinema qualquer esperando a tua mão – não –
sem esperar nada – como um insecto pousado na tua respiração
serei o insecto sentado perto de ti
– a partir daí é contigo


segunda-feira, dezembro 27, 2004

de te reler - o espelho # 22 

houve um grande terramoto na índia na china na tailândia
no bangladesh no ceilão/o mar galgou a vida de milhares de pessoas
a água fundiu-se com a terra/o ar é só fogo lambendo gigantes florestas salva-vidas
e eu aqui neste ponto ocidental
não consigo deixar de me concentrar numa pequena fotografia de jornal: duas
motos quatro homens vivos centenas de afogados numa lama branca com formas de nuvem
alguém que tenta salvar uma galinha num carrinho de mão – tudo tão perfeito
tão sereno – fonte: agência reuters e à frente em insignificantes letras corpo quatro
o teu nome/assim/por extenso


de te reler - o espelho # 21 

debruço-me exausto na escarpa de um sonho
– por favor faz com que não volte a adormecer –
tenho os pés frios e o corpo exangue de um amor que não apareceu
rejeito tudo/abdico do teu toque/lavo-te ajoelhado com água morna
debruço-me exausto na escarpa de um sonho
debruço-me exausto na escarpa de um sonho/meu catre
dormir é a vida sem ti – tenho asas
posso desamparar-me em queda desta escarpa
tenho asas que não saberei usar – mas
que anjo saberá florir as suas asas?
que anjo/ao cair/não trará o coração como uma pedra fechada?


de te reler - o espelho # 20 

queria-te içado numa torre/queria-te escuro como um abeto-branco
da américa do norte num jardim rochoso/queria comer-te a língua e vomitar o
que de beijo dela sobrasse/queria agasalhar-te com pétalas de crisântemo/queria de ti um
assassino piedoso/queria espalhar pelo meu dorso a tua seiva transparente e
deixar-te cortar a fina pele do meu coração – amo-te


de te reler - o espelho # 19 

tens o braço queimado como a raiz inflamada de um poema
apertas com os dentes a chuva ácida que há-de vir – esperas a água o limão
derradeira transfusão – como um esqueleto de águia – uma mãe morta correndo
nas estreitas veias do pássaro-de-sândalo – espectro frívolo de um verso
se o sol se abrisse inteiro/explodisse de raios de todas as cores/se a lua
te abandonasse por uma noite/nada verias para além de dejectos/nenhum perfume
seria mais encantador aos teus sentidos que a tua urina incontinente chovendo
sobre os sapatos nesta noite de dezembro
quero oferecer-te um ramo de acácia ou de laranjeira-da-índia – quero trair-te
odiosamente


domingo, dezembro 26, 2004

de te reler - o espelho # 18 

desiludi-te meu pequenino/coisas tão simples/não sei nada
ou talvez demais – tu olhas-me com o amor que só o amor dá ao olhar
tu desculpas-me/não culpas e é isso que me culpabiliza/quando dormias
afaguei as tuas mãos/fiz tocar os teus dedos adormecidos no meu peito de sangue
és um calor tão poderoso/tão aberto à claridade/para ti não há madrugadas – só
começos – inícios de dia/inícios de noite/beijos dados – como uma árvore/adoras
sem julgamento e é disso que tenho medo/o tempo passará
o tempo deformará esse teu clemente olhar florífero?
um dia – um dia sem data – apenas me verás/sem olhar – já não poderei – quando esse
tempo chegar – afagar as tuas pequenas mãos adormecidas e fazê-las tocar
no meu peito até estancar o sangue que inunda o tempo sem principio
que só agora começou


de te reler - o espelho # 17 

não disfarçarei uma única palavra no que escrevi/não tenho
nada a explicar/nada há para entender – é natal
como ontem foi natal/amanhã só haverá noite e na noite outro natal – não
acrescentarei um caracter/nada/ao que escrevi – só natal só noite
chocolates noites e noites de natal em papel impresso


de te reler - o espelho # 16 

rodeia-me uma cruel neblina/a cidade está cercada por uma cruel neblina púrpura
e os meus olhos sangram de nevoeiro como uma túlipa-tricolor

de te reler - o espelho # 15 

25 de dezembro de 2004

vesti-te com o que tinha/círios-trepadores cizânias coroas-imperiais
lilases-brancos e normais lírios vermelhos lobélias perpétuas petúnias brancas
resendas-pequenas túlipas vermelhas sempre-vivas e cravinas da china
sobre os teus lábios uma tâmara/no coração um largo-ramo-de-tília
quis-te cor e perfume – flor de romã simples – violeta dupla
naquele recanto do jardim/nu/foste príncipe/cavaleiro/operário
tão plenamente vivo sob a coroa de esplendor com que te adornei –
uma alegria imensa/perene/sugou-me para ti
todo o meu corpo treme ao relembrar o teu cheiro a suor de limão
mesmo vivo – és belo como a flor-de-lis ou a malagueta


sábado, dezembro 25, 2004

Feliz Natal 


sexta-feira, dezembro 24, 2004

de te reler - o espelho # 14 

toma este mel/minha seiva casta para que te tornes não-cor
engole esta a ácida poção sagrada e ficarás estátua/trama/teia viva
renuncia à tua vontade e deita-te sobre a cama de pregos
e eu te seduza pelos redondos orifícios que nas tuas costas se abrirão
alastrando [te] de prazer submisso – sacrifício dos que são amantes em vida
e habitam a estranha e subtil gravidade invertida que fará subir
no éter/como balões/cordões de sangue/até que não haja mais amor para sangrar
e o amor mais não seja que algodão volátil – cruz



de te reler - o espelho # 13 

é a tua cândida lunação que exalta o rio
e a cidade é uma rocha levitante/máximo objecto aviador
que a líquida corrente verde atrai – caídos os corpos
submarinos féretros dilatam-se em geometrias sub-terrenas
geometrias-sacrifício num reino de rosas marinhas e
seus inexplicáveis sortilégios/tudo é inexplicável no arquitectural
universo da crueldade rósea – só vento – só vermelho


a todos, feliz com-suada 


de te reler - o espelho # 12 

aqueço a água na bacia de esmalte/tapo-te os olhos para que não me vejas
dispo-te/reencontro a tua pele estriada quebrando-se como escamas de madrepérola
sei que gostas da pequena toalha de linho herança da tua longa infância
com ela te lavo e te esquadrinho/perfumo-te com essência de chá-verde
afago as tuas pernas disformes com a macieza das minhas mãos oleadas
relembrando os dias claros onde nas pedras dos teus anéis luziam
róseas transparências de rubi/sei que me detestas/que te detestas/que as
tuas horas são percursos circulares no planalto de uma almofada de lã
– não te posso prometer nada/nem o fim nem a luz de novas manhãs –
se quiseres comprarei um novo perfume/um óleo de sempre-noiva para as pernas
que ao menos não seja o fétido odor da tua pele putrefacta a guiar-te
neste corredor entre a vida e o espaço rectangular da cama/teu palácio de tortura


de te reler - o espelho # 11 

quis-te oferenda naquela noite/quis-te satie num piano de dedos e purpúreas
notas de uma música capital/satie algoz do meu coração tão pouco
e agora teus esqueletos dedos fogem da minha pele sem um som – pedalam

compassivamente movido pelo desespero destruirei os pianos da terra
corda a corda tecla a tecla pedal a pedal madeira a madeira – sou – serei
indomável veador de pianos/desalmada máquina de lágrimas fuziladoras
apenas um/esse/em que tocaste nessa noite/ficará
intacto num intacta paisagem de dedos


quinta-feira, dezembro 23, 2004

correio 

já está resolvido o problema que impedia o envio de mensagens para o SA.
basta "clicar" em CORREIO e a mensagem seguirá o seu destino, quer dizer, vem cá parar, coisas do destino.

de te reler - o espelho # 10 

conheço-vos bem/demasiado bem/crianças de constantinopla/sei
com que prazer se ajoelham frente ao grande ícone da pata-roxa
não consigo deixar de me excitar com as vossas extasiadas expressões
enquanto a deusa vos possui sorvendo-vos os olhos e a voz com que
entoais as vossas castas orações/a deusa é a vossa mãe devoradora e como vós
se deliciam nesse banquete onde sois pasto/é vosso dever continuar
entoando os cânticos da submissão dos corpos – também eu já fui uma criança
de constantinopla/talvez ainda seja e este torpor floral que me invade os sonhos
e me abrasa seja ela a sacerdotisa brincando com o seu punhal invertido
na minha pele já tão frágil – não há fuga/nem cruz/nem luz
é nos sonhos que a besta cruel vem roubar as memórias felizes
um dia furtará cada pedaço da vossa fraca resistência – até lá
ajoelhem-se pequenas crianças de constantinopla/deixem-se seduzir/sucumbir
ao prazer imenso de pertencer a um lugar – ao sublime prazer de pertencer


de te reler - o espelho # 9 

não está desidratado nem mumificado o corpo de um sacerdote
budista que faleceu há setenta e sete anos na russia/continua
intacto no templo de um mosteiro siberiano – um santo!

...quando o teu corpo caiu em dormência/era janeiro/mil novecentos e vinte
sete/perto do lago baïkal – coloquei à volta do teu magro pescoço uma
fita branca com a cuidadosa impressão de uma palavra tibetana: porco
– porco foi o que escrevi naquele colar
quem assistiu à transladação jura que o teu suposto cadáver tem o aspecto
de quem morreu há apenas trinta e seis horas setenta e sete anos depois de teres morrido
...trinta e seis horas...ainda deves ter sangue nas veias...sémen a escorrer
irão visitar o teu sepulcro cientistas de todas as nações
ajoujados como burros com computadores e aparelhos sofisticados de todo o género
querem determinar se estás vivo ou morto/milagres das tomografias
talvez reparem na fina fita de seda e lendo-a compreendam que não é o sublime
nirvana o lugar que habitas e que o teu corpo incorrupto denuncia
a tua verdadeira condição é a condenação sufocante de seres um venerável porco
acorrentado ao altar de um mosteiro – nada mais


quarta-feira, dezembro 22, 2004

de te reler - o espelho # 8 

querido – quero que saibas...posso não voltar...peço-te
tem orgulho em mim/resisti às violações mais horrendas à
repugnância inimaginável dos beijos/resisti à lama às febres aos punhais
resisti à delicadeza com que me arrancaram coração e à dor do meu peito aberto
– mas querido...não é por nada disto que suplico pelo teu orgulho –
acredita nas letras impressas nesta ridícula espécie de papel – minha pele:
em nenhum momento – nunca – nunca – nunca percebes?
nunca me separei da nossa bandeira e apesar de ma ter sido
arrancada das garras dos meus dedos foi com ela que me amortalharam – por isso ainda
a tenho/agora/sobre mim/em mim/como dantes – a nossa bandeira querido
– por favor não tenhas medo do caixão são apenas tábuas – não percas tempo
procurando o meu pequeno coração – deixa a minha cabeça entregue à terra –
concentra-te/faz-te lúcido e procura apenas a esse pedaço de pano tão nosso
nele estará impresso a forma ruidosa do menino que conheceste





de te reler - o espelho # 7 

confiei em ti loucamente/bebi de olhos vendados a taça com que me tocaste os lábios
devagar/amando-te/bebi daquela água insípida cego de mim
as tuas mãos enluvadas agarravam-me como se te quisesses proteger
da contaminação funesta do meu amor – só mais tarde – tão mais tarde –
percebi do que realmente te protegias tocando-me assim
não era o meu amor que receavas – mas o teu amor – cego continuei quando sem
um tremor aceitei das tuas mãos a segunda taça/cálice da amargura/sabor a ossos
de cão rasgados em dores infindas/confiava tanto em ti que ingeriria tudo o que n
os meus lábios depositasses/engoliria sem hesitar gente putrefacta cães negros apunhalados
ferros em brasa – tudo tudo tudo – não percebes? confio desmesuradamente em ti
– é assim tão incompreensível?
com a mesma serenidade levei à boca a terceira taça a que me obrigaste/deixei que
todo o líquido se entranhasse em mim/cada gota – cada limalha desse ferro líquido
me penetrou e eras tu quem me penetrava – meu amante oculto como uma faca engolida
e o líquido foi doce e quente enquanto abria a minha garganta/penetrador líquido teu
escorrendo até ao que de mim é mais dentro
meu óvulo masculino


terça-feira, dezembro 21, 2004

de te reler - o espelho # 6 

sonhei com uma floresta cheia de animais/alguns de rosto dócil
outros prontos a atacar – talvez tenham sentido o cheiro
a linho lavado da camisa de dormir – talvez me tenham pressentido apesar d
o cuidado com que controlava os movimentos
um dos animais/de rosto dócil/era a criada da minha mãe
trazia comida e cartas para me entregar
um dos animais voou sobre mim e fez-
me ter medo/chamei-te/chamei-te tanto/consegui fugir levando as cartas
e alguns pedaços da criada/antes de acordar reconheci o selo do teu olhar
da mais feroz das bestas e beijei-te beijei-te até amanhecer cego
como um espelho


de te reler - o espelho # 5 

tenho os lábios colados ao vidro desta janela oval – não é um beijo
já não tenho medo das tempestades nem da tua ausência
é a mim que toco colando a boca a este óculo
a água escorre-me pelas costas/são dedos de infinita doçura/chicotes
tomo banho pelo puro prazer de mim/virgem/menino como dantes
nu/quente/vapor/desejo-me como se deseja o crescimento
de uma árvore plantada no inverno/estou aqui e tu nunca o saberás
morto? sim – como fumo – mas no prazer de me beber nu
libertei-me da tua sublime feitiçaria


de te reler - o espelho # 4 

quando a luz era lua e o meu corpo uma pequena pérola negra/deixava-me submergir
naquelas águas negras de fumo carregando pedras nos bolsos
do gigantesco sobretudo do meu pai – xistos roubados aos muros do palácio –
deixava-me levar pela corrente suplicando a graça de um pé
casualmente preso nas algas ou a bênção de um braço algemado numa raiz aquática
nas águas daquele lago real repetia mentalmente/como um mantra
virginia woolf/virginia woolf/virginia woolf/virginia woolf


de te reler - o espelho # 3 

chegou o dia da tua pele secar – raiz de diamante
rasga-te meu amor ultrajado/que nada em ti volte a enverdecer
que tudo no teu corpo mirre e os cabelos com que me excitavas
se tornem arames e que desses arames nasçam anéis
de fogo/eu digo: não choverá/nada servirá de hidrato a esta terra
nenhum poema relembrará o quanto fomos permeáveis/entreabertos
ao húmus do lugar que traíste de forma tão bela/tão pura


segunda-feira, dezembro 20, 2004

de te reler - o espelho # 2 

mando-te esta carta meu querido confidente/meu escritor
meu rosto amado de estrelas tão ferido
quero que a leias deitado e depois te toques
faz da tua mão um espelho
as minhas palavras não te levarão qualquer perdão/nem
a força de um cântico revolucionário/nada te salvará porque
nada te condena/o que te escrevo é o anúncio do fim das cores
das luzes/de tudo o que na terra brilha – o fim do ouro


de te reler - o espelho # 1 

sou eu aqui deitado é a minha mão que segura este punhal
é o meu corpo que gela deposto sobre o mármore deste cenário
o meu cadáver ainda está quente e já alguém esculpe o meu retrato
são tão belas as glicínias e os gerânios e as flores de cheiro com
que me perfumaram a carne já morta/sinto os ossos como flechas
como pontas de cipreste arrombando
esta preciosa mortalha de rosas/é o punhal que me segura a mão


domingo, dezembro 19, 2004

o princípio # 40 

naquele cubículo de paredes negras
onde alguém traçara a giz diabólicas
palavras maternais/avisos/profecias
anúncios do princípio de todas as coisas
e da morte dos planetas
pressenti na garganta uma espada à beira do corte
reconheci o gelo da lâmina –
um movimento em branco/um olhar vago
e do meu corpo sairiam golfadas de romãs
quebrei o selo
coroei-me com uma juba de marfim
fitei a cabeça de um galo pintado sobre uma mesa
nesse dia/nessa câmara/redigi o meu testamento
e sem uma hesitação deixei que me
conduzissem às entranhas da terra

sábado, dezembro 18, 2004

o princípio # 39 

esta manhã esperei de ti a espuma
de um amor que se espalhasse sobre mim
da janela vi o rio enquanto te desejava
quantos beijos perdi espreitando o
movimento cinzento da água? absorvo a minha solidão
como se engolisse um navio

sei que não virás embarcação/meu amor
e mesmo assim espero-te endoidecido pelas sirenes
dos petroleiros árabes no porto de lisboa

sexta-feira, dezembro 17, 2004

o princípio # 38 

tenho que escrever baixinho há muitos olhos nas paredes:

queria fugir – hoje – queria fugir já
queria que o mar se entornasse todo pelo hemisfério sul
e eu pudesse correr até não ter pés
nu em pleno chão atlântico
queria que todas as coisas voadoras deixassem de voar
e que caíssem os olhos a todas as coisas com olhos à face da terra
não quero sentir as estrelas não quero saber se o sol nasce/se
há mais homens e mulheres no mundo – ou qualquer outro animal
queria fugir
só isso
caminhar descalço pelo fundo do mar sem o mar por cima
nem um céu a afogar-me

quero ter dores/dores até que os ossos se retorçam sem forma
quero sentir uma culpa nova sem salvação
quero recusar a graça do arrependimento

se isto se cumprisse até oferecia um braço
oferecia-me a deus dava-me à terra
chupava a língua da besta casava-me com buda e os seus discípulos
um a um
faria tudo para fugir esta madrugada
mas que não viessem anjos aflitos atrás de mim
com as suas caixas de primeiros socorros e aquelas
ridículas asas feitas com penas de ganso

mas sabem...
é impossível
a roseta celeste que tudo comanda vigia-me
insuportável
sempre a organizar constelações
montada em nuvens falsas - coisas do teatro

mais meia hora e vestem-me o pijama com
sinos a tocar/tu vens dar-me beijos e assim
nem faltará o cheiro da vizinha/cheiro quente
a carne assada expandindo-se no éter da rádio

estou pregado a um chão de almofadas sob um céu imenso
vigilante/galáxias e galáxias concentradas em mim/prontas a atacar

deitado numa moderna cama japonesa
envés de mesa de cabeceira
tenho de um lado josé
do outro maria
e seis ou sete reis magos/bruxos/coisas negras/cabeludas
a barricarem a minha única saída

eu digo-vos – eu juro
a bondade humana não tem limite


o princípio # 37 

nos 80 anos de glicínia quartin

olho para a tua fotografia – o jornal é de hoje
a fotografia têm quê...40 anos...mais...menos
datas/tantas datas: gargantas engolidoras de vida
não consigo/nem saberia
ordenar
a tua
generosidade por datas mas
lembro-me dos teus olhos/da maneira irritante como
inclinas o pescoço para o lado quando queres ser doce
lembro
quase a medo
como cheiras a flores no palco

se soubesse soletrar – não é o caso
vocalizaria glicínia em suaves prestações silábicas
apesar de te saber indivisível como um odor a mãos lavadas

o teu nome parte-se em tantos e
tu em tantos nomes glicini-
a é só uma maneira de te dizer/cheirar/respirar/chamar

bem sei que não me ouves
nem isso seria possível
tantos palcos destruídos
tantas roupas rasgadas –
tantas glicínias desfeitas em palcos rasgados

penso em ti como se pensasse em letras:
pequenas manchas que justapostas formam pernas
braços uma boca gritante
uma cintura
o pescoço – de
que cor são as glicínias?
de quantos verdes és feita?
em quantos vermelhos os teus olhos arderam?

não vai nevar este inverno...sabes?
o sol será frio...isso sim é certo
mas nada de esperanças
dezembro é só dezembro
mais transito nas ruas
mais tristeza nos olhares
mais lágrimas que em janeiro
mais gente nas passadeiras
e o rossio parece maior
mas em lisboa dezembro é só dezembro

haverá mais um palco?
mais um texto?
mais um dia?

sobrevoam naves brancas
muitas
sobre a cidade
são aviões/julgo
vêem do céu este lugar onde chove passado
só passado
aqui como em toda a parte
o presente escoou-se em promessas
de sangue e rosas de crochet
agrafadas a vestidos negros
voltaram as fadistas as deusas-corvo
que rondam tudo
que farejam as horas esperando que cada minuto morra
para diligentes avisarem os abutres

morreram os dias

há mulheres muito gordas nos cafés
e o amor é só uma palavra com quatro letras redondas
uma cornucópia de chantily
um bolo de aniversário

é só dezembro
é só lisboa
e no jornal de hoje a tua fotografia
os teus cabelos os olhos o corpo desenhado de um desejo
impossível
como a escultura que há tantos anos
o fernando conduto fez a tua cabeça
premonição em bronze de um derradeiro palco
de um último guarda roupa
depois de hoje – finalmente – começará a vida?
será o início do sonhado e fulgurante dia
que como o sol nascerá sem projectos
sem marcações
só teatro – só espelhos?

quinta-feira, dezembro 16, 2004

R-X 


o princípio # 36 

a cura é o choro de uma vaca no abate
a vaca é a chuva abatida pelo choro

da vaca/abatida/pura renúncia
do choro nascerá – por fim – o começo
de um tempo sem horas
o tempo em que abandonaremos
a
prisão
da esperança no futuro
o tempo da vida o tempo da vaca
o tempo que não há-de vir

e tu vaca porque choras?

quarta-feira, dezembro 15, 2004

o princípio # 35 

ainda sinto o espanto a maravilha o encantamento
daquele jardim
onde a minha avó foi depositada depois de cremada

antes da cerimónia sentei-me alguns instantes dentro da igreja
senti aquelas velhas madeiras anglicanas
vergarem-se sobre mim como rosas
em cada cadeira jazia um pequeno livro de cânticos
todos em inglês e meticulosamente desenhados
cada página um desenho
cada desenho um momento da eucaristia
letras a negro gravuras a sépia e muitas notas musicais
também desenhos afinal
estava feliz – tão inesperadamente feliz
antes de sair roubei um desses missais e durante alguns anos até
o
guardei
agora não sei dele nem sei se realmente o guardei durante alguns anos
ou se o deitei fora logo após a cerimónia do semear das cinzas

tinham aberto uma frincha na terra/sem lápide/sem nome
na frincha o meu pai encaixou a avó
.....naquele estado não mediria mais de 50 cm
como se escondesse um osso de vaca no quintal
não fosse um cão dar com ele/com ela

sob uma araucária anglófona
a minha tia emma forrou o chão com gerânios e viemos embora
já quase de noite
antes que chovesse

na rua tinha acabado de se acender uma magnífica luz amarela
e a basílica da estrela parecia encher lisboa com o excesso da sua redondeza

um bitoque
foi o que jantámos
no café império – em memória da avó elisabeth


o princípio # 34 



soldaram-me àquela máquina de
dedos-ventosa arpoados ao crânio
queriam registar inaudíveis batimentos
celulares
queriam ouvir (talvez mesmo ver)
o rasgar do tecido que forra as partículas
invisíveis de que sou feito

havia um espelho e uma larva de borboleta
presa numa teia entre o espelho
e a mesa de combate – enquanto ali estive
lembrei-me de macbeth/macbeth de wells
das bruxas/do caldeirão/o nevoeiro
havia um espelho...
e uma aranha presa a uma teia
uma outra teia
entre o espelho e a mesa de combate
num intenso nevoeiro de punhais

que chamarei a esta visão
que nome
que palavra escolherei
enquanto –
amplificados num pequeno e humano aparelho de
operáticas medições encefálicas – ouço
o som agudo e inexplicável/vindo de mim/vindo da máquina
o som primordial do que em mim foi secreto/agora
consentidamente revelado

não há grandes diferenças
entre estar ali ou ir cortar o cabelo
de uma maneira ou de outra
o desfecho...o fecho
será...é...foi
o corte laminar exacto do que restava intacto
em tacto
esse milésimo pedaço-traço
desequilíbrio ordenado do meu cérebro
contententor de mim diferente da máquina
da aranha
da larva
da teia

no fim (que fim – quando)
as células a aranha a larva a teia
fundir-se-ão no som agudo e espaçado da máquina
e já tudo será outra coisa
e tudo estará certo e renascido
como se as sonoras partículas que compunham
o osso cerebral
desde sempre tivessem sido um agudo grito automático
um útero neurológico em trabalho de parto

o princípio # 34 

soldaram-me àquela máquina de
dedos-ventosa arpoados ao crânio
queriam registar inaudíveis batimentos
celulares
queriam ouvir (talvez mesmo ver)
o rasgar do tecido que forra as partículas
invisíveis de que sou feito

havia um espelho e uma larva de borboleta
presa numa teia entre o espelho
e a mesa de combate – enquanto ali estive
lembrei-me de macbeth/macbeth de wells
das bruxas/do caldeirão/o nevoeiro
havia um espelho...
e uma aranha presa a uma teia
uma outra teia
entre o espelho e a mesa de combate
num intenso nevoeiro de punhais

que chamarei a esta visão
que nome
que palavra escolherei
enquanto –
amplificados num pequeno e humano aparelho de
operáticas medições encefálicas – ouço
o som agudo e inexplicável/vindo de mim/vindo da máquina
o som primordial do que em mim foi secreto/agora
consentidamente revelado

não há grandes diferenças
entre estar ali ou ir cortar o cabelo
de uma maneira ou de outra
o desfecho...o fecho
será...é...foi
o corte laminar exacto do que restava intacto
em tacto
esse milésimo pedaço-traço
desequilíbrio ordenado do meu cérebro
contententor de mim diferente da máquina
da aranha
da larva
da teia

no fim (que fim – quando)
as células a aranha a larva a teia
fundir-se-ão no som agudo e espaçado da máquina
e já tudo será outra coisa
e tudo estará certo e renascido
como se as sonoras partículas que compunham
o osso cerebral
desde sempre tivessem sido um agudo grito automático
um útero neurológico em trabalho de parto

terça-feira, dezembro 14, 2004

o princípio # 33 

bastava acender uma vela...uma cadeira
bastava sentar-me
bastava que as sombras me
agarrassem e me levantassem
sentir-me içado em
sombra
num navio de mastros decepados
ser sombra decepada na sombra de um cigarro
bastava saber acender uma espada...dizê-lo
fumando
numa cadeira/sentada/uma vela
bastava

não precisaria de casa nem de templo
nem de ser amado
bastava
ser osso ou ter fala
ser um porco em pranto...um parto
bastava saber ser chuva
saber procurar pelas ruas uma porta sem entrada
ser eu a vela/ser eu o cigarro...uma cadeira
bastava
ser gente de vez em quando e
atirar-me frontalmente das escadas
cair como uma sombra desenhada

nada

nada

bastava ser vela/parede/escada
projecção de luz/pequeno sol extinto/armada

bastava ter-te acesa e esta noite
fecharia os olhos sem medo
do navio de espadas

quarta-feira, dezembro 08, 2004

dia 8 - manhã 


o princípio # 32 



trago comigo um aterrador rasto de imposturas
cheguei a acreditar na minha mãe
que detinha o poder mágico de voltar atrás com a dor
supus tantas coisas mágicas sobre a minha mãe/agora
que sei da irreversibilidade da vida
penso que talvez nem tenha sido criança
e se tive mãe acaso terei saído dela?
contam-se tantas coisas sobre nós
sobre as mães e os seus corações brancos
tantas falsidades imperdoáveis

se tivesse sido criança hoje
seria novo/inequívoco/grego

a vida preencheu-me e tudo se tornou impotência
– passado/amor/morte/re +
início da vida

depois do último fôlego
a mais terrível das descobertas como um
incêndio no peito uma
dor cardíaca/nó desfeito
voltaremos aos mesmos pesadelos
ao mesmo martírio infantil
a-
-o terror da adolescência/ao terror de um primeiro mesmo amor
a todas as rejeições
como antes
como agora
como depois e depois de depois
e mesmo que a morte nos ponha um fim mental ou se imponha como
a interrupção da aparência do amor
seremos sempre matéria continua/alimento/gloria transformadora de partículas

uma vez abertos à inspiração primordial
– perdidos para a condenação de viver

há ingénuos – claro – que depositam a sua fé no fim definitivo da morte
outros iludem-se com a esperança da eternidade celeste infernal e providente
que coisa mais trágica podemos nós conceber que a candura?

as crianças não são inocentes por isso são poderosas
cultas
as crianças sabem que não morrem
só as não-crianças acreditam
– na sua cândida brutalidade –
na morte das crianças

as crianças vivem e só vivem
por isso receiam a vida
o escuro/a falta do pai/a água quente do banho
as crianças só têm medo da vida porque são crianças
mas isso em nada nada nada
nada
nos salvará
como os frutos se reacendem nas árvores
em ciclos de danação
todas as crianças se tornarão apenas criaturas
pela acção nefasta de um conhecido deus furibundo
que jamais se arrependerá


segunda-feira, dezembro 06, 2004

o princípio # 31 

igreja do espírito santo
évora



Francis Bacon, Estudo de figura com base na crucifcação (1944)

lá estava/como sempre/desde sempre/para sempre
languido
escorrendo pela cruz
tão dourado
tão ideal/oferecendo-se/a ele
num amor clarividente sem contrato

compassivo/trémulo/delicado
entrou no corpo compáscuo daquela luz humana
limpou-lhe as lágrimas
sentiu o seu cheiro a suor de sangue
e o sémen embutido em madrepérola
espalhando-se na pele
tinha tempo
o suficiente
para beber a profunda iluminação
daquela intimidade líquida
o beijo e a suprema visão do seu homem
aberto/cruciforme/serenamente dependurado

a igreja o sol o perfume das flores no altar
tudo era perfeito àquela hora da manhã
tinha tempo
todo o tempo/dois mil anos de tempo
todo o tempo
todo o tempo
tinha o seu amor como um tesouro máximo
uma roseira explodindo no corpo
perfeito santo e imaculado

domingo, dezembro 05, 2004

o princípio # 30 

quero voltar àquele nosso vale/àquele lugar profundo
profuso
às estrelas onde nos abrigámos tantas vezes e
à casa onde fluía incandescente a cumplicidade do
nevoeiro sobre as nossas cabeças

rendido à sujeição deste ovo
ainda percorro aquele caminho de pequenas pedras
ainda
me sinto o animal assustado que o frio enlouqueceu
para te
ver
adormecida ao som de tiros disparados
ainda sou a incomensurável asa disparada em nossa direcção

quando sair deste hospital sem telhados
quando puder voltar livremente à luz
dos cometas
e ver a noite
ou o que dela tiver restado
irei irei
ter àquele lugar onde fomos barro

se tivesse campo para caminhar
calcularia pelo tamanho dos pés
os dias que faltam
para a chegada de lúcifer
nosso terno e amantíssimo protector
mas estas paredes por onde o sol não passa
estas portas seladas
construídas com os ossos dos coelhos
que
me precederam na doença e na morte da pele
jamais se abrirão
e é disso que tenho medo –
minha pluma

extraviei-me nesta cama pintada de fresco
que me colou o movimento

antes de me terem arrancado os tecidos mais finos
das pálpebras eu podia fechar os olhos e
imaginar
te
por dentro
no nosso pequeno lago/quadrangular
desenhar com o cérebro aquele vale
as árvores e as corujas no meu
peito até que me beijasses e azulasses
os lábios a língua

desejo tanto fechar os olhos
não ter que ver
me
cessar
junto a esta parede de azulejos amarelos

as minhas pernas cheiram a fígado
a talho
a incenso indiano
e tu sabes como me agonia o cheiro do incenso indiano

espero a última carta
o papel caligrafado onde porei a minha assinatura
pela última vez
e prometo-te minha pluma
toda a coragem
no momento da cremação

sábado, dezembro 04, 2004

o princípio # 29 

havia maçãs sobre livros
cheirava a pinheiro
voavam bandeiras de oração e
a água corria como uma veia aberta
por entre os dedos
sobre os corpos
na cama

havia uma máquina de escrever sem t minúsculo
macieiras como gotas musicais
num puro papel de poema

das nossas mãos saíam furiosas goivas
sulcando chapas de madeira em
noites exaltadas pelo odor a tinta de impressão
gravações pintadas em puro papel de poema

tinha-mos um espelho
oval
magnífico
resplandecente
para onde nunca ousamos olhar

em frente à casa dois operários poliam pedra num
absoluto silêncio operário
ao fim da tarde cruzávamos olhares suados por cima do muro –
nunca um sorriso
mas a cumplicidade serena do labor comum

foram dias árvore
dias violentos como uma veia cortada
e o sangue jorrava
de felicidade

quinta-feira, dezembro 02, 2004

o princípio # 28 

especialmente dedicado a cineastas

a matança impôs-se pelos vidros do carro
lancetando flores e perfumes
fazendo vozear algumas árvores gritadoras
e ao longe o porco
alastrando em máximas contracções
como gigantes gaivotas numa seara de alturas

como é bela aquela mesa ornamentada
por onde escorrem os fluidos sanguíneos do porco
e os homens –
estátuas gregas em movimento

sócrates ter-se-ia apaixonado por aqueles homens
afiados

enquanto fincam os pés no chão
deixam gotejar urina nas cuecas
na excitação avermelhada de uma erecção de boné

agarram
as patas do porco como hércules teria agarrado as patas
do imperador do hades

o carro enche-se de cravos enquanto
a morte devassa a intimidade do sacrifício

mesmo ao lado –
junto à porta por onde hei-de sair no fim da viagem -
um único amor-perfeito resiste
preso a uma videira
na mudez de uma rosa

à nossa frente passa uma mulher
uma delicada e bonita magra mulher
carregando dois baldes de sangue

olha para nós
colados aos assentos do automóvel

e sorri

uma delicada e bonita mulher magra
grávida
carregando dois baldes de sangue

o porco já não grita
o porco já não tem forma
e os homens limpam das calças
com a mão
as viris manchas da ejaculação

a mulher passa à nossa frente

e sorri

«boa-tarde senhores»
e levanta os baldes à força de braços acima
da barriga prenhe de feto ou de chouriço
«é para o arroz senhores»

abro a porta do automóvel
deito a mão ao único amor-perfeito
arrancando-o silencioso

não sendo tradição
é uma recordação
uma morte silenciosa sem histerias
de facas e ainda assim tão igual

com os cravos dá bem para encher dois baldes
de vermelho
para o arroz

quarta-feira, dezembro 01, 2004

o princípio # 27 

janela da pastelaria

em cada depressão craniana para olhos
há espectadores
que albergam narizes de palhaço

na ponta nasal do palhaço
há espectadores globais sem olhos

olhos
e
narizes de palhaço

os olhos
.......ora se introduzem no crânio dos narizes espectadores
.......ora se ferram nos crânios oculares dos palhaços

os narizes
.......ora se embebem na íris dos espectadores
.......ora se embutem nas mandíbulas dos palhaços oculares

fim:
ou
a vida é um crânio nasal de palhaço sem olhar
ou
a vida é um olhar craniano disparado sem nariz

fecho a janela da pastelaria


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