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sexta-feira, fevereiro 17, 2006

tratado secreto do teatro # 6 

# 6 – cena sexta

b – é a tua vez de gravar a minha pele.
a – a minha vez?!
b – sim, também quero que fiquem pirogravadas, com o calor da tua língua e da tua saliva, as últimas palavras do nosso… do nosso quê? encontro? amor?
a – …«do que teve princípio». do resto não sabemos nada. não há nomes. não quero mais nomes. acabaram os nomes. morreram como as memórias.
b – seja. quero a invisível caligrafia da tua boca marcando-me na pele as tuas últimas palavras daquilo que entre nós… «teve princípio».
a – se não descodificares o que escrevo, queres que no fim te diga o que gravei?
b – sim. enquanto estiveres a escrever, apenas me concentrarei no toque da tua língua e no escorrer da tua saliva. quero estar livre e vulnerável enquanto usas o fogo. quero sentir sem pensamentos. só depois as palavras.
a – está bem. assim farei. e as mãos queres tas agarre?
b – não. estarei imóvel e terei os olhos abertos mas não verei. só estarei desperto para o teu toque. de resto, tudo em mim estará inerte, insensível. desligado.
a – vira-te de costas…
b – pronto, já estou. agora não quero falar mais. não me perguntes mais nada até chegares ao fim. começa.

(a limpou o suor do corpo na manta. prendeu os cabelos com uma mola da roupa. a sentou-se sobre as nádegas de b. só escreverias nas costas de b. tudo o que tinha para caligrafar seria circunscrito àquele espaço. quando a se sentou sobre b e sentiu o contacto entre a pele dos dois foi percorrida por um arrepio, uma luz laranja que lhe velou os olhos. a sabia o que iria escrever, mas naquele momento a «entidade» que ela pressentia no quarto, parecia estar a ditar-lhe letra a letra o texto que havia de escrever. a fechou os olhos para se esconder, ainda assim continuava inundada dessa inesperada cor laranja. com os olhos fechados, pela primeira vez, a viu a figura de alguém. um ser masculino. violeta. com o rosto tapado. o violeta era tão intenso que o contraste com o laranja provocava um espécie de alucinação ácida no cérebro. a quis fugir dali mas sabia que devia ficar e honrar a sua promessa. b não se movia, não falava, não pedia nada. estava completamente disponível para ela. a não se atreveu a abrir os olhos. a figura violeta ainda se matinha dentro de si. sentiu um calor quase insuportável nos pontos do corpo que estavam em contacto com a pele de b. tinha de começar. sentiu a língua ficar redonda, era impossível torná-la pontiaguda como b tinha feito. a sua língua não seria rigorosa como um aparo. seriam pinceladas, gestos molhados. ideogramas envés de letras. a esperou que a saliva se acumulasse na boca e escorresse para a língua. começou. b, sempre imóvel, como tinha dito que estaria. iniciou o trabalho pelo ombro esquerdo. à medida que o pincelava ganhava confiança, à medida que ganhava confiança a luz laranja e a figura violeta iam-se desvanecendo até que desapareceram por completo. a foi escorregando pelas costas de b. os gestos da língua ganharam um movimento quase autónomo. quando terminou tinha o corpo completamente contorcido, naturalmente e sem esforço. como se algo lhe tivesse preparado o esqueleto para aquele momento. contorções que a nem acreditava ter conseguido fazer. endireitou-se e desceu até aos pés de b para lhe fazer o sinal de que tinha terminado. b ergueu-se rapidamente, sentando-se junto à parede a abraçar as pernas com os joelhos juntos à cara.)
a – queres agora que te diga o que pintei. sabes, não caligrafei. escrevi. mas não como tu fizeste, as palavras saíram em gestos abstractos que quase nem conseguia controlar. a minha língua e saliva gravaram-te sozinhas, eu só pensava no que queria gravado em ti. foi uma coisa automática.
b – eu sei. sei reconhecer os movimentos da tua boca. sim, diz-me agora o que ficou marcado em mim.
a – ITE, MISSA EST

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