<$BlogRSDUrl$>

terça-feira, janeiro 31, 2006

tratado secreto da cidade # 30 

# 30 – vigésimo primeiro dia – 20 de dezembro – lisboa

17h00

tenho três milhões de anos de água mole em pedra dura. sou um fino grão de universo aos pés da tua indiferença. quando há milhões de anos o mar aqui vivia e eu não era mais que chão, procuravas-me, beijavas-me, fazias-me crer em navios e marinheiros. em corpos quentes de outras galáxias. mas era o mar que amavas, não a mim. de resto não sou coisa que se ame ou se deixe de amar. sou apenas um pedaço de rocha, tão rarefeito que os meus lábios são uma impossibilidade física. houve dias de amor intenso. angélico. perfeito. acredito na pele mais do que em tudo na vida. acredito no corpo. nas vísceras. nos fluidos. no oceano que temos intra-cérebro. penso em ti como uma fada que tive e vi e senti e destruí. todas as fadas renascem dos beijos fatais, tu renasceste e eis que sabendo de mim semivivo me olhas como uma partícula, como um cadáver mineral. sei que não é vingança. não há vingança entre as rochas. não há passado no minério. contento-me de prazer quando caminhas. contento-me quando um mar inventado me inunda e submerge. sei-te ardida em vento. em éter. todos os dias vomito estas lembranças milenares. tenho a cabeça irrediavelmente perdida no subsolo da nossa história. há tantos biliões de estrelas com histórias parecidas para contar… há tantas histórias com tantos biliões de estrelas para contar, meu amor. tenho três milhões de anos de água mole na pedra dura do meu batimento celular. quando o mar aqui vivia (já me é impossível estabelecer uma ordem cronológica para os acontecimentos, não sei se isso do mar aqui viver foi ontem, se foi amanhã) beijavas os meus lábios impossíveis e desses beijos nasceu um pequeno coágulo de sangue no meu frágil tecido neurológico. coágulo que espera pacientemente o momento certo para explodir. é o herdeiro de todos os momentos magníficos, sublimes e cintilantes que nos envolveram. espero que rebente em breve essa bolha de placentas amorosas. enquanto isso apanho um táxi, transporto comigo tudo o que na vida preciso para mover a roda das lembranças, os cigarros, e quando me deitar terei o corpo maravilhosamente repousado apesar da tua eterna ausência.

domingo, janeiro 29, 2006

o banco - évora - 29 de janeiro de 2006 


tratado secreto da cidade # 29 

# 29 – noite nona – dezembro – évora

4h00

assinei pela primeira vez o livro dos segredos com o novo nome que me foi conferido. assinei-o com firmeza junto à janela de onde se vê a catedral. e a catedral estava branca, coberta de uma fina neve de anjos e arcanjos voando em torno da cruz. tive vontade de gritar de me desprender dos ossos e caminhar depressa até à grande basílica deixando as minhas pegadas no caminho. mas a solidão é total e só há razão para um grito ou um voo se há alguém a quem nos possamos dirigir, ainda que num breve pensamento. eis o primeiro segredo. a primeira página preenchida desse caderno de confissões que pressinto nunca completarei. aliás nunca conseguirei conhecer os meus segredos. os meus segredos não existem. eu é que existo em segredo no chão de uma catedral na negrura de um mar aéreo, flutuante e etéreo.

5h00

em frente à catedral um banco faz de cálice à neve, os meus sorrisos afundam-se no cálice o cálice é um poço e no poço a neve aguarda. não há cidade. não há céu. não há ventos, pensamentos ou desejos. há uma fonte de água sempre renascida. dores de cabeça. tenho o olhar condicionado pela cefaleia. neva e estou perante a verdade do olhar sem pensamento. tudo no plano. todas as casas e pessoas coladas a uma parede. existir é escalar uma parede cerebral. regozijo-me com a supressão, ainda que temporária, da horizontalidade. o topo da catedral permanece branco. aos seus pés a negrura das pegadas. os apóstolos.

sábado, janeiro 28, 2006

tratado secreto da cidade # 28 

# 28 – noite oitava – dezembro – évora

4h57

sentado num tronco, gelado, via-te nadar. contentava-me com essa distância. poderosas braçadas remando num torvelinho de correntes e rochas. não paravas. quando se fica assim, como eu ficava, gelado, sentado num tronco, vendo alguém combater ondas, sem palavras, sem olhares recíprocos, ganha-se uma resistência física que dura para toda a vida. o contacto visual é tudo o que necessitamos para desenvolver uma razão de existência. eu podia ter ido ver os barcos e as suas regatas uns metros mais ao lado. podia ter ido ver aviões a descolar, pessoas à entrada do metropolitano… podia ter feito o que quisesse da minha vida, ter ido ver, no conforto de qualquer lugar, com o corpo quente, todas as coisas grandiosas da criação. podia ter amado um amor seguro. podia ter sido amado por um amor seguro. podia. mas o que fiz e fiz bem em tê-lo feito, foi sentar-me todas as tardes num tronco junto a um mar frenético a ver-te nadar. acham os físicos das teorias quânticas, que o simples facto de observarmos uma partícula a modificamos estruturalmente. irreversivelmente. se eles têm razão devo ter-te mudado bastante a vida porque não houve braçada que desses que a minha retina não observasse. a minha atenção era total. concentrada. com-centrada. alinhada. mas a minha mente esteve sempre vazia enquanto te via nadar. nunca o meu cérebro produziu uma única intenção durante aquele tempo triangular: eu, tu e o oceano. mas se os físicos têm razão basta observar para mudar tudo. não é necessária qualquer motivação. hoje penso que apesar da distância a que sempre estivemos e do facto de teoricamente tu não saberes da minha presença, de alguma maneira, também tu me deves ter observado em permanência. talvez os físicos expliquem estas coisas. não sei muito disto. será que ao se ser observado se observa através de algum processo oculto ao nosso entendimento racional? ser observado também é observar? alguma coisa deste tipo deve acontecer pois também a minha vida se alterou tão radicalmente que também tu me deves ter observado enquanto aparentemente só nadavas. dantes era homem agora sou uma inerte matéria indefinida. este processo levou vinte e quatro anos. até que um dia não apareceste, ou eu perdi o dom que permitia distinguir-te na água… enfim, deixou de haver contacto. visual. como sempre usaste touca não sei a cor dos teus cabelos nem imagino a forma do teu rosto. durante esses vinte e quatro anos não foste mais que um ponto a deslocar-se no meu campo de visão. o mais importante ponto em deslocação no meu campo de visão.

tratado secreto da cidade # 27 

# 27 – noite sétima – dezembro – évora
para os actores do espectáculo «satirotic»,
karnart, lisboa, dezembro e janeiro de 2006,
éencenação de luís castro.
à memória de antónio botto


3h33

não é sonho. eles. sacerdotes negros. dirigem-se aos fiéis nas suas negras sotainas romanas. a velha águia do reich dos mil ânus vigia do alto encrostada numa moldura dourada. a velha águia do reich dos mil ânus observa o santo sacrifício do teatro. morramos, levantam-se os braços. caguemos, levantam-se as saias. bem-vindos à cremação das almas livres, à submissão dos corpos livres, à vestidura da negra oração que expulsa toda a luz e toda a luz absorve. meus irmãos e minhas irmãs caguemos. e o sacerdote, padre de roma levanta o braço, ergue-o em seta na direcção da águia e invoca num púlpito de lágrimas de sangue congelado as palavras da condenação. a última ceia. a ceia das velas que ardem em colunas com a virgem maria ao centro tentando re-guardar o seu menino, a rosa, a romã do seu ventre, escondê-la uma vez mais da águia que lhe sugou as veias. rapina nazi em cruzes de incêndio, fogueira sempiterna da roseacruz: latina voz de toda a paz. meus irmãos e minhas irmãs caguemos. como era no princípio é agora. primeiro o homem sentou-se e só depois de sentado cagou. assim meus irmãos vos ordeno, sentai-vos e cagai-vos uns aos outros como eu cago em vós enquanto me escorre pelas pernas o incontinente suco e odor do sémen cativo. há crianças escondidas em voos desesperados. marinheiros em terra e portas a cerrarem ventres de mulher.
ratos cegos roendo rolhas das garrafas dos reis da rússia. santificadas sotainas romanas que até em nados-mortos encontram pecados e penitências por cumprir. morramos para cristo, vivamos, sem semente ou óvulo, recostados nos seios sem leite da velha rata nazi. chupemos os finos lábios da rapina. selemos os orifícios do corpo com o lacre das suas homílias. chupemos irmãos, engulamos a seiva infectada com que ele nos esparge. sejamos nós os cegos ratos que hão-de corroer o sacro ofício do teatro. os mudos que repetem as palavras da danação. renunciemos em nome das sotainas negras e dos adúlteros rituais, a todo o amor, à claridade, à chama da paixão. afoguemo-nos na culpa de termos sempre culpa enquanto o navio que nos serve de arca não se afunda. se um dia a nossa pele tiver sentido o desejo de amar e os nossos sexos a vontade plena de se oferendar, que a pele nos seja arrancada e os sexos castrados e poemas apagados. não é roma o inverso evangelho de amor?
longe dos olhares profanos. no monte sagrado do sinai. dois meninos despidos das vestes de pele de cordeiro, tocaram-se pela primeira vez deitados na areia do chão. não conheciam nada, desconheciam a lua e o seu cristalino poder. sem ninguém os ver, jesus e joão reconheceram no calor dos seus olhos adolescentes a nudez verdadeira e tocaram-se sem medo. entrando um no outro um tornou-se o outro. mestre e discípulo, discípulo e mestre., longe do olhar profano, juraram, tendo só o deserto como testemunha, que o fluido de amor profundo que depositaram dentro deles através da sagração do sexo seria o princípio e o fim de todas as coisas, o alfa e o ómega. o verbo que é sopro. e desse encontro entre a carne de um e o espírito do outro, nasceu um filho, a palavra da verdadeira e única salvação. ao andrógino que brotou foi dado o nome de apocalipse. depois de cumprido só haverá amor em cada partícula do cosmo. disse jesus a joão. depois de cumprido só roma cairá do trono da vida em cada partícula do cosmo. disse joão a jesus. foi há muitos anos, no sagrado monte sinai longe dos olhares profanos.
chegou a hora.
durante o santo e sacro ofício do teatro, aos nossos olhos ardem as negras sotainas romanas enquanto do alto a rapina do reich dos mil ânus se desfaz em cinza de veneno. há um vento que anuncia o advento. e o cálice escondido está prestes a ser reencontrado. no graal o sangue e o sémen de jesus e joão prontos a se erguerem como uma espada inflamada. já tocaram os sinos da revelação.

segunda-feira, janeiro 23, 2006

tratado secreto da cidade # 26 

# 26 – noite sexta – 22 de dezembro – évora

5h10

costumávamos encontrar-nos junto de um lago de águas negras. dava-mos as mãos e os lábios. dava-mos os pés debaixo de água. transbordávamos de encanto sob uma lua inventada. junto ao lago juntavam-se cães e veados. seres róseos que vinham só para nos ver abraçados. tínhamos roupas brancas e violetas. brancas eu, violetas tu e os bolsos cheios de pedras numa esperança que se revelou sempre vã de nos afundarmos para a vida nesses sonhos. se olhássemos o céu não era difícil ver a miríade de anjos às cores que assistiam passivos ao nosso abraço. fomos irmãos e irmãos deixámos de ser. não sei se esse lago ainda existe. eu existo, tu existes, os cães existem, os veados. mas o lago terá secado? porque têm os lagos uma aura tão misteriosa? o que tornava essas noites diferentes de todas as outras noites e de todos os dias era conseguirmos estar vazios de tudo. ali. sem um pensamento, sem uma corrente de memória que nos arrebatasse do coração o calor daquela água fria e daquele lugar sem geografia onde descobrimos, por acaso, num oráculo encontrado, insígnias gravadas nos ossos cranianos de uma vaca morta, termos já habitado aquele lugar há muitas vidas quando éramos crianças. esta noite distante de todos os lugares do mundo é-me impossível chegar a esse lugar. não fomos nós que nos deixámos submergir para a eternidade nas águas desse lago, foram as águas desse lago que submergiram todos os pontos cardeais que permitiam lá chegar sem qualquer esforço, sem qualquer indução onírica. já nem sei o teu nome. o meu sei porque carrego esse peso como um tesouro amaldiçoado. tenho à minha frente o crânio da vaca que nos revelou termos passado as primeiras vidas da nossa idade naquele aquário de brumas felizes e ventos bruscos. mas já não há nele um só vestígio de qualquer marca. ambos fomos testemunhas de qualquer coisa extraordinária que agora se perdeu. finalmente libertos estamos aptos a um afogamento sem encantos. a que mais podemos aspirar? se esse lago existe, à sua beira estarão outros corpos, outros lábios, outros pés. ou não. olho sereno para o sangue que se espalha na banheira, sangue que não é meu, sangue onde me banho, sangue que consagro e tomo pelos poros como um bálsamo purificador dessa ilusão de morte florescendo face ao olhar compassivo dos animais. daqui a pouco será hora de dar corda à máquina que conta as horas e reconhecer no relógio mais um nascimento do sol. antes disso lavarei cuidadosamente a banheira, meu novo e efémero lago. a observar-me só um animal que por prudência e bom gosto não revelarei o nome mas que ambos conhecemos.

sábado, janeiro 21, 2006

tratado secreto da cidade # 25 

# 25 – quinta noite – 21 de dezembro – lisboa
com base no espectáculo «a dificuldade de se exprimir» de copi, tradução de luís castro, pela companhia de teatro karnart, dezembro e janeiro de 2006, lisboa

4h35

sigo os trilhos do trenó.
hoje inicia-se o ciclo minguante da lua.
ainda bem que não nevou nestas últimas horas, se tivesse nevado seria agora impossível reconhecer estes sulcos negros.
dizem que os lobos das estepes são os mais perigosos. apesar do punhal que trago ser-me-ia impossível defender-me de uma matilha ou mesmo de um solitário. é engraçado, aqui nunca se diz «um lobo solitário», referem-se aos lobos eremitas como se fossem um diamante num colar...
ao mesmo tempo, se não nevar, não conseguirei alcançar o trenó antes dele chegar à cidade. é preciso que a neve o detenha, é preciso que os cães se afundem até ao pescoço e lhes seja impossível aguentar a caminhada. é preciso que elas se vejam obrigadas a descer do trenó para limpar a neve da estrada. isto se tiverem levado a pá. e é preciso que os cães aguentem o frio. estão quarenta graus abaixo de zero. quarenta graus. será que se lembraram de levar aguardente para os cães?
nem sei como ainda não caí neste mar branco. talvez sejam os cascos que servem de protecção... mas se neva deixo de distinguir os sulcos do trenó. é uma tarefa impossível. demasiado impossível. tenho as asas coladas. e mesmo que as tivesse soltas, sem a luz de uma lua plena como conseguiria eu orientar-me? o melhor é manter as quatro patas no chão. galopar de vez em quando. mesmo que não possa salvar irina, talvez possa salvar um ou outro cão aquecendo-o com o meu corpo. na cidade deve estar mais quente. nem que seja um bocadinho mais quente.
irina morrerá, eu sei que sim.
deitou demasiado sangue antes de partir. talvez a madre se salve. há tantos anos que ela não habita o seu corpo físico. quanto à senhora garbo... já está morta não é verdade? ela mexe-se e todas essas coisas que fazem dos corpos coisas aparentemente vivas, mas viva?
agora irina, tanto sangue... a perna deslocada, os gritos sufocados, o dedo partido... irina não se salvará se eu não a aquecer.
sou um velho piano, a trote, de vez em quando a galope, só, em plenas estepes siberianas... (tanto sangue.) dizem que os lobos... pois, já disse.
quando vivia em moscovo tinha mãos e pernas. tinha pele...
de que serve pensar agora em moscovo. se ao menos me conseguisse recordar do calor daqueles dias em casablanca. não houve dor no meu corpo que não fosse sarada pelo sol de casablanca. nem mesmo quando me abriram e mudaram a cor dos olhos me fizeram mal. ninguém percebe,
mas naqueles dias eu sabia,
eu acreditava,
que me iriam tirar daquele avesso em que tinha nascido para habitar num veludo novo de existência. e em casablanca eu via irina a apanhar sol no terraço. deslumbrava-me com aquele corpo de rapaz por construir. e havia a voz de pierre, que nunca vi...
não me quero lembrar de mais nada. quero salvar irina daquele trenó e sei que é impossível. sou um velho piano gasto. nas estepes. quarenta graus abaixo de zero.
há muitos anos, há milhares de anos, neste preciso lugar, nasciam lírios selvagens, o campo era cultivado, os homens amavam-se com força. com delicadeza. com uma imensa força delicada.
obrigado pátria mãe por teres trazido para este lugar o conforto das tempestades de neve. sou um velho xamã siberiano. um ponto escuro na natureza. desesperado xamã das estepes a gritar por ti
irina. meu menino.
nem o nosso filho conseguiu sobreviver aqui. quando chegares à cidade, morta e repousada lembra-te da tua velha lira e do fogo daqueles dias em casablanca. lembra-te do teu solitário diamante.




tratado secreto da cidade # 24 

# 24 – vigésimo dia – lisboa

14h35

eles choram nesses dias em que um corpo se desfaz na terra ou no fogo. e é uma coisa tão simples. tão longe da morte. nesses dias o corpo desfaz-se. e é só. há os que não choram, claro. os que são serenos. os tranquilos. os equilibrados. os de bom senso e gosto. os extra-ordinários. sim aqueles que para além de ordinários são extra. têm todos tanta razão. têm mesmo. nas suas cabeças é só iluminação e saber e toda uma resma de papeis sagrados para recitar. sim senhor. gente que sente. gente que sabe negociar tu cá ele lá com deus. gente que tem o rabo sempre lavado não vá o diabo tecê-las. há tanta gente inteligente a pontificar a sua experiência, a lavar os sovacos e a pôr perfume para dar exemplo do asseio extremo das almas. e. nesses dias. em que o corpo de alguém se desfaz. choram ou ficam sérios a mostrar competência. e um corpo a desfazer-se na terra ou no fogo é uma coisa tão simples. tão longe da morte. um corpo desfaz-se na terra ou no fogo e é só. é pena que a majestade destes tantos seres grandes, destes profetas de pantufas e comando da televisão na mão não lhes chegue aos beiços muito menos à mente. que a majestade das suas inúmeras e incontestáveis sabedorias não lhes permita (nem se pede coisa de maior envergadura) saber que a morte não é o dia em que o corpo de alguém se desfaz na terra, ou no fogo, nem mesmo na água benta do vento. é pena, é peninha, que tanta majestade implantada nos cornos não os deixe ver no espelho onde raspam os dentes, que morte é o que eles provocam. que assassinos não são os que disparam à queima roupa sob o efeito do medo. que assassinos não são os que se fazem explodir com bombas à cintura acreditando que é deus que lhe guia os passos. assassinos não são os que estão presos. os que fogem. mentirosos não são os que mentem. traidores não são os que traem. assassinos, mentirosos e traidores são os que fazem tudo sem fazer nada. esses mesmo que vão todos os meses ao médico para saber se têm alto o colesterol entre chouriços assados e garrafões de vinho.

.......morte é o que está à vossa volta enquanto estão sentados no sofá da sala condenando à vida eterna do martírio, como nenhum juiz de espírito são se atreveria a fazer, aqueles que respiram e andam nus fora do controlo remoto dos vossos televisores. e é tão lindo ver o incenso a arder na mesinha da sala e velas de cheiro a arder e conchas espanta-espíritos a baloiçar musicalmente à boca das janelas. são quase horas queridos. é melhor irem arranjar-se. há um funeral à vossa espera. um corpo prestes a desfazer-se na terra. vão lá chorar. pelo menos na vossa ausência os mortos poderão descansar.




terça-feira, janeiro 17, 2006

tratado secreto da cidade # 23 

# 23 – décimo nono dia – 19 de dezembro – lisboa

5h00

toda a gente a olhar. eu a andar depressa. a rua é negra como negros são os ossos dos olhos. ando e oiço as cartilagens do corpo a retorcerem-se. muito bem. tenho esta nacionalidade, este nome, falo esta língua mas não vivo em lugar nenhum. não habito em lugar nenhum. não sei se há diferença entre uma coisa e outra. dantes, quando não tinha que correr no escuro para me esquivar ao nó que tenho na garganta, acreditava que viver era habitar e habitar era viver. e afinal em que ficamos? aqui estou e aqui vou ficar? partirei deste lugar de infames coincidências e ultrajes? só preciso de uma casa de banho, de um lugarzinho onde possa urinar e defecar. é uma exigência minha. e os direitos não se pedem, exigem-se, tomam-se, arrancam-se à dentada aos abutres que os aprisionam. sei que tenho este aspecto ao contrário. sem plexo. conduzo sapatos e deixo-me conduzir por eles. umas vezes os sapatos são a carroça e eu os bois outras vezes sou eu a besta e eles o carro. deixo-me conduzir mas não vou de arrasto. tenho as mãos geladas, qual é o problema? estou a esfregá-las para as aquecer, é assim uma coisa tão espectacular? vêem cavalos à solta nas auto-estradas e acham normal, vêem árvores a cair, prédios a implodir, tipos a morrer por todo o lado e nada vos prende a atenção e só porque estou a esfregar as mãos é este espanto? a cidade está afogada em carecas com gravata e fatinhos azuis, a cidade está afogada em carros metalizados, estamos todos afogados em carecas de fatinho azul, estamos todos afogados em automóveis metalizados e isso não vos incomoda? hei-de me esquivar deste nó que tenho na garganta. preciso é de continuar a andar depressa, cada vez mais depressa, e mais depressa. olhos negros, ossos negros. falta de olhos, falta de ossos. dói-me o joelho direito. sabem que há uma flor na tailândia que vomita? pois se até há flores que têm nojo e problemas de estômago é muitíssimo natural que eu sinta este garrote a apertar-me a garganta. perder-me não me perco. juro-vos. sobre o esquadro e o compasso. sobre o livro sagrado que ainda não escrevi e quando conseguir vomitar serei como uma flor tailandesa. desejosa borboleta. desejada borboleta. rinoceronte imenso para vos enfrentar.




segunda-feira, janeiro 16, 2006

tratado secreto da cidade # 22 

# 22 – décimo oitavo dia – 18 de dezembro – lisboa

11h00

levanta-te. alisa o corpo. veste um ar decente e sai para a rua, ou fica em casa, enfim, faz o que quiseres desde que te desembaraces do cadáver desse animal que tens ao colo. faz desenhos com lápis de cera, colagens, origamis, reza, enfia qualquer coisa pela goela. um destes dias o sol nasce de vez e pronto, tudo terá passado. mas agora. para já, para hoje, para já já, tens de te livrar dessa coisa. desse coiso. isso que te bate e bate e bate. essa coisa que te enche o cérebro de sangue e empanturra as veias. tens de dar com os burros n'água, percebes? isso mesmo. cair pela janela abaixo. abrir as tripas como se fosses uma romã. até já tens as costas dobradas do peso. carregas com essa coisa há tanto tempo que já nem te apercebes que isso não faz parte do teu corpo. já fez, eu sei, eu sei isso tudo, escusas de estar sempre a repetir a mesma coisa. sei tudo o que foi bom para ti e o que foi mau, o que foste e o que não foste e quero lá saber. ou cais no poço ou o poço cai em ti. tenho dito. se caíres no poço tens a hipótese de vir à tona, de boiar, gritar, esperar que te atirem um balde, pedir socorro. se o poço cai em ti é ele que fica com a hipótese de se safar. já não há muito tempo. nunca há muito tempo. voa pá. sai daí. levanta-te. alisa o corpo. veste um ar decente. acumula energia nem que depois vomites os pulmões, mas sai daí e esmaga essa besta que faz tiquetaque. desagua. um destes dias o sol nasce de vez e pronto. tudo terá passado. tens de dar com os burros n'água. é assim. ou então morres a abarrotar de sangue dentro do corpo. isso não vai parar. vai continuar a bombear e bombear e bombear e bombear e bombear até que a morte vos separe. mas ainda vais a tempo. acaba com isso já. já já. faz com que tudo à tua volta seja vermelho. rebenta-te. explode-te. eleva-te ao mais alto que há em ti e deixa-te cair violentamente no chão. esquece os pára-quedas, as bóias, as botijas de oxigénio. levanta-te daí. alisa o corpo. veste um ar decente e, por favor, rebenta.




sexta-feira, janeiro 13, 2006

tratado secreto da cidade # 21 

# 21 - décimo sétimo dia – 17 de dezembro – lisboa

6h30

se a cidade adormecesse. se adormecessem as árvores. se o amor adormecesse para sempre. se existisse a possibilidade, ainda que ínfima, de adormecer a vida e repousar os olhos, os dedos. assim o corpo pudesse cair num sono para sempre. assim a vida fosse mais que morte, mais que sonho. só sono. só.

quarta-feira, janeiro 11, 2006

tratado secreto da cidade # 20 

# 20 - décimo sexto dia – 16 de dezembro – lisboa

10h00

o corpo cede. nada a fazer. já. cada pedaço de pele é um possível balão. cheiro de carne putrefacta. um osso espetando-se na barriga. se não fossem os cigarros e os comprimidos e a água e a febre durante a noite, que haveria neste resto de vida que valesse a pena? ah! o amor... sim... pois é o amor... há o amor. o a-m-o-r. não vêem que é um erro de dislexia de um qualquer gramático português da antiguidade que queria escrever roma. essa, sim. aquela cidade a que todos os caminhos vão dar. roma. roma é que é. agora o amor, o amor... pele podre e o corpo a ceder. nada a fazer. já. cheira mal? pois cheira. é assim. queriam o quê cheiro a água de rosas? nada. cheira mal. cheira mesmo mal. é tecido morto numa estrutura andante que nem conseguiu apagar os sentidos a tempo. acabou. é um cadáver que vos escreve. incomoda? pois, calculo. se fosse ao contrário eu também não gostava. custa não custa? já viram gente com o corpo todo queimado? fugiam a sete pés era o que era. borravam-se nas calças. «ai que me faz tanta impressão ver.» pois saibam meus cobardolas, que há muito boa gente que quando lhes aparece um tipo assim à frente não só não foge como os trata. e beija. nas feridas. gente que até lambia a carne em sangue das feridas se fosse preciso. há, sim senhor. gente que não arreda pé dali. põe pomada e ligaduras e é como se estivessem a cuidar de um bebé acabado de nascer saído deles próprios. ou vocês também são daqueles imbecis que acham que só as mulheres é que parem? placenta todos a temos. uns por dentro outros por fora. parir é coisa do género humano, não é coisa do género feminino. filhos da mãe de linguistas e escritores e doutores por extenso e mesmo os doutores abreviados em dê e érres, filhos da mãe vocês todos, filósofos, religiosos, médicos, físicos, matemáticos, pintores, todos vocês que deram cabo das palavras. que tornaram as palavras numa coisa de advogados e parlamentaristas. continuem lá a reproduzir-se. multipliquem-se que é essa a vontade de jeová. vosso pai. ou mãe ou lá o que aquela coisa é. a mim já tanto se me dá. a mim o que me interessa é rugir. só rugir. pois ainda não nasceu homem ou mulher no mundo que não se agache perante o rugir de um leão. os leões não se matam. morrem sozinhos. morrem por si. e rugem até ao fim. mesmo com a pele podre e cheiro fétido no olhar. e vocês macaquinhos do chinês, ajoelhem-se. fizeram disto uma selva não foi? pois agora aguentem-se. aguentem-se que a selva é uma monarquia e o monarca até em decomposição é o leão que ruge. o resto, vocês, não passam da vaca que ri. bando de queijinhos suíços aos triângulos.


segunda-feira, janeiro 09, 2006

tratado secreto da cidade # 19 

# 19 – décimo quinto dia – 15 de dezembro – lisboa

7h00

a lua canta se olho o rio. é um mínimo som de prazer. um mínimo musical som de prazer. quando me sento. a lua. eu. a olhar o rio. engulo o som, a música torna-se alimento, brilha num tom baixo. as escadas são o cérebro do rio. as escadas dos pequenos cais de lisboa. são elas que pensam as correntes, que levam os cardumes de peixe de encontro às redes dos pescadores. e é nelas que me sento ao nascer do dia a olhar a lua e é sentado nelas que escuto o murmúrio dos lábios invisíveis do fim da noite. até que finalmente quando tudo se cala: lua, rio, peixes –, é porque o sol rompeu e tudo destrói com o seu manto de cegueira. é a hora da pastelaria. do fim do encanto. e lá estão as operárias antes da fábrica. elas são a fábrica, as máquinas, o chão, as paredes. não sabem disso. esperam o pão que comem com manteiga. café com leite. elas são tudo e nem adivinham. pensam-se ocas, impotentes e submissas à vida e à morte das horas. é às sete que saem da pastelaria. às onze duma vez. não. sem antes. limparem as suas mesas e devolverem a loiça ao empregado. cento e cinquenta anos de movimento operário. graças a deus, resumidos num pão com manteiga na pastelaria. já não é a luta pelo controlo do poder de estado que as arrebata. é o quente do galão. que as tira do inverno por uns segundos. meia-hora e entram as putas as prostitutas e os militares. as primeiras de terço na mão esquerda e missal na outra mais uma caixinha de comprimidos. as outras compram cigarros e bebem garrafas de água e bicas escaldadas. e os militares, ah! os militares acumulam tudo. pais nossos, avés marias, garrafas de água, cigarros de toda a espécie, marlboro especialmente, e bicas. muitas bicas.


sábado, janeiro 07, 2006

tratado secreto da cidade # 18 

# 18 – décimo quarto dia - 14 de dezembro – évora

6h00

... dia em que lhe peguei nas mãos e lhe observei os dedos. tinha mandalas em cada uma das pequenas extremidades. como se monges tibetanos tivessem laboriosamente desenhado dez únicos e irrepetíveis digitais mandalas de areia nos seus dedos. bebemos chá de tília. num café com mesas de mármore. e madeira. avisados da impermanência de tudo, os monges, mal terminam o mandala desfazem-nos com um. só. gesto. cada mandala leva meses a desenhar. às vezes quase um ano. mal um é destruído logo outro se inicia. assim passam aqueles monges as suas vidas. naquele dia aqueles minúsculos mandalas digitais ainda se estavam a fazer. alguns circulares, outros espiralados. hoje vi-os e reparei que estavam concluídos. chegou o momento de os desfazer num só gesto, para reiniciar os seus desenhos. contudo, mantém-se o olor a tília.

sexta-feira, janeiro 06, 2006

tratado secreto da cidade # 17 

# 17 – décimo terceiro dia – 13 de dezembro – évora

9h00

de vez em quando vem-me à ideia construir uma capoeira e criar galinhas. gosto do cheiro das galinhas. gosto dos vestidos que usam no inverno. do canto lírico. dos perfumes a rosas-de-santa-teresinha que usam nos chapéus. e dos bicos. da incapacidade de voar. das pernas curtas. do andar preso e. ocupam pouco espaço. um galinheiro ocupa pouco espaço. se for numa varanda ou num terraço ocupa pouco espaço. são bichos que vão pouco ao médico e se amam silenciosamente. principalmente gosto dos vestidos. os que usam no inverno. assim a arrojar pelo chão.

tratado secreto da cidade # 15 

# 16 – décimo segundo dia – 12 de dezembro – lisboa

5h35

sonho. uma estrada azul. igual às estradas negras de alcatrão. uma estrada. igual. mas azul. traços contínuos e descontínuos iguais aos das estradas de asfalto. traços brancos sobre um chão de lápis-lazúli. pequenas pedras. não polidas. um chão de pequenas pedras não polidas lápis-lazúli. eu sentado, numa cadeira de praia. observo. na berma alguém de sotaina carmim empurra. um carrinho de bebé. as suas passadas indicam uma marcha. avança só com uma perna. a esquerda. avança com a perna e estaca o passo, a seguir, a direita acompanha o movimento até que o pé pára imóvel junto do outro. uma marcha. avança sempre com o pé esquerdo. imobiliza-se com o direito. pés juntos. avança novamente. sem pressa. a sotaina parece uma bandeira carmim presa ao fio que é seu o corpo. nem o carrinho nem o bebé emitem qualquer som. param e arrancam ao ritmo da marcha. quando passa à minha frente dá-me a cara a ver. sem expressão ou cumprimento. é dourada. as mãos não sei porque estão tapadas por umas luvas de algodão branco. face ao horizonte prossegue. passam três carros: um vermelho, um branco, e um preto. todos sem condutor mas com alguém sentado no lugar do morto vestindo sotainas roxas. ao fim de um tempo, talvez uma hora, ou mais, no tempo-real-dos-sonhos, o ser encontra uma flor no chão. pára. trava o carro e o bebé. diz-lhe umas palavras ao ouvido. e fica. perfilado. paralelo ao sol. de frente para a estrada. dez minutos. uma ambulância que os recolhe. partem. presa na porta fica um pequeno pedaço da sotaina carmim que ondula freneticamente com a deslocação de ar. a flor desaparece. sob a minha cadeira um rectângulo de chão começa a descer. como um elevador de palco. eu deixo-me ir. terra adentro. sentado e sereno. já no fundo da terra vejo o rectângulo fechar-se sobre a cabeça. ali fico, gozando o odor fresco de uma terra acabada de lavrar. por dentro.

6h00

vigília. acendo uma vela junto ao miradouro do largo da graça. o sacristão abre as grandes portas de madeira da igreja. lisboa parada aos meus pés. o rio congelado. gravado num banco de pedra estão uns versos que transcrevo:
«Quantas vezes, de súbito, emudeces!
Não sei que luz em teu olhar flutua.
Sinto tremer-te a mão e empalideces.

O vento e o mar murmuram orações
E a poesia das coisas se insinua
Lenta e amorosa em nossos corações.»
sobre os meus joelhos. sobre a sotaina roxa, meu vestido, escrevo ainda quase sem tinta: antero do quental.



quarta-feira, janeiro 04, 2006

tratado secreto da cidade # 15 

# 15 – décimo primeiro dia – 11 de dezembro – lisboa

8h25

temos de mudar tudo. tudo. temos de mudar tudo. tudo. quando estiver a escrever o gato não virá pousar as asas na janela. tudo. temos de arranjar uns olhos novos, querido. uns olhos cegos. tudo tem de mudar. vamos ter que morrer depressa. e ver anjos ajoelhados, arcanjos rezando na sua magnífica altura. temos. mudar olhos. pele dos dedos. temos. de. ter um
................esqueleto
................querido,
................um
esqueleto como aqueles esqueletos de antigamente. inteiros. íntegros. róseos de coração e invioláveis de espinha. há muita coisa que me preocupa. demasiadas coisas que me preocupam. coisas puras. véus. um cristal que tenho dentro de mim e diz santo santo santo. onde escutarei o rio e as sirenes dos navios? aonde sentirei os marinheiros? em que corpo? querido
................dá-me pele
não a tua, nem quero a minha de volta. dá-me pele, só isso. querido
................dá-me pele
há palavras que devo manter, reproduzir e depois, quem sabe, transmitir. santo santo santo. temos de mudar tudo ainda hoje. ver o céu e as poucas estrelas que adornam o mar. ter o vento nas mãos a aquecer. aspergir o quarto de dormir com a água e o incenso em honra daquele pelos quais se tornam vapor. bênção de areia quente no verão. hoje relembro tudo, tudo. cada tudo. dá-me pele querido e faz de mim um milagre pelo teu corpo e sangue-exangue-transmissor de pó. um dia viveremos dessa pouca luz que nos entra pelos pés e vai subindo e subindo e se desenrola. até ao cérebro. como uma lesma para se aninhar numa casca. uma lesma renascendo caracol mesmo dentro. do cérebro. onde a dor e a vertigem são um contigo, como a fome e a tristeza são unas em mim. santo santo santo e. adorado. és.


segunda-feira, janeiro 02, 2006

tratado secreto da cidade # 14 

# 14 – quarta noite – 14 de dezembro – madrid

chegou a casa. o seu comboio. olhou pela janela e viu um rato. um pequeno e gordo rato. tentando passar por um minúsculo buraco. só lhe entrou a cabeça. ao rato. o rabo e a cauda mexiam-se freneticamente do lado de cá. rato, cabeça para o lado de lá, rato, rabo para o lado de cá. um anormal sofrimento de rato. pequeno. e. gordo. rato tentando
........passar pelo túnel de um buraco
........um vácuo
nem morto nem rato. só túnel só vácuo. cabeça para lá do buraco. rabo. para cá do vácuo. a mulher recostou a cabeça no sofá do comboio. a sua casa com janela para um rato. olhando em frente fez um voto: que em nenhuma vida eu seja um rato. pequeno. gordo e rabo. e o comboio arrancou. sua casa em andamento. dez minutos de viagem e um túnel sem luz. a mulher. recostada no seu sofá de casa. entrou
........no túnel.
fechou os olhos.
e guinchou num anormal sofrimento vácuo.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?