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quinta-feira, fevereiro 16, 2006

tratado secreto do teatro # 5 

# 5 – cena quinta

b – quando era pequeno encontrei um escorpião na praia. um escorpião negro. em adulto, soube que era raro e letal. na altura pensei que fosse um caranguejo e peguei-lhe. ele aninhou-se na minha mão. ficou imóvel. qual será a capacidade de visão de um escorpião? será que ele me via? a minha mão era muito pequenina, cinco anos, seis, coisa assim, ele ocupava praticamente toda a palma da mão mais os dedos. pergunto isto da visão dos escorpiões porque enquanto ele se aninhava, pareceu-me que me olhava fixamente nos olhos. pelo menos eu olhava-o fixamente nos olhos. a única coisa que estranhei na altura foi a sua serena imobilidade. ele não queria fugir nem picar-me. devagar, com algum medo, dei pequenas festas no dorso do meu «caranguejo». ele deixou. ele mostrou-me que queria…
a – não sentes a presença de alguém ou de alguma coisa neste quarto?
b – para além de nós, não.
a – eu sinto. como se uma força com olhos aqui estivesse a registar estes nossos últimos momentos…
b – é possível. não acho isso estranho. porque é que não haveríamos de estar acompanhados por entidades que não podemos ver mas que de alguma forma sentimos.
a – pareces-me muito crédulo de repente. dantes não eras assim.
b – dantes nada era assim. já não há «dantes». o «dantes» morreu. e eu não sei se estou vivo se estou morto. agora tudo me parece razoável. digo-te mais. espero que sim. que esteja aqui presente uma entidade verdadeiramente poderosa, cheia de olhos, olhos que vêem tudo. ouvidos que ouvem tudo. mil mãos que tocam em tudo. espero que sim, que um terceiro e oculto ser se tenha juntado a nós. quer tenha boas ou más intenções. é indiferente o bem e o mal. fazem parte um do outro. a diferença está na maldade e na bondade e neste momento nem a bondade nos eleva nem a maldade nos pode destruir mais.
a – …o escorpião?
b – não tem nenhum interesse especial a história. só me estava a lembrar dela…
a – continua, conta-ma a mim e à «tua entidade que tudo vê»
b – foste tu que falaste nisso, queridinha, eu não sinto entidade nenhuma, tu é dizes que sentes…
a – desculpa. continua a história. conta-a para mim.
b – …dei-lhe festas com a ponta dos dedos e senti que ele queria que eu lhas desse. que continuasse a dar-lhe, que não parasse. foi nesse momento que apareceu um rapazinho, muito branco, quase albino, albino mesmo, que gritou que largasse o bicho porque era perigoso. agarrou-me na mão e atirou o escorpião para o chão com um chinelo. fiquei a olhar para ele na areia. mantinha a mesma imobilidade. pareceu-me mais negro que antes. o outro rapaz mexeu-lhe com o chinelo e ele virou-se inerte: «está morto, felizmente!» –, eu era realmente muito pequeno na altura, mas consegui ter a consciência de que ele me tinha escolhido para morrer. foi ele que escolheu a minha mão para morrer e morreu enquanto lhe acariciava o dorso. guardei o escorpião no bolso dos calções. ainda existe o seu cadáver negro, seco. acho que é a minha mãe que o tem. outra coisa que me faz pensar é que foi aquele pequeno animal que me proporcionou encontrar o pedro, aquele rapaz. dez anos depois fomos amantes. foi o meu primeiro amante. o primeiro ser com quem me deitei. o primeiro rapaz que beijei. o primeiro que teve o meu corpo. nunca o amei, mas apaixonava-me aquele ar branco e cândido. sempre que fazíamos amor lembrava-me do escorpião e agradecia-lhe e dedicava-lhe aqueles momentos de prazer. soube há pouco tempo que estava muito doente com uma coisa qualquer na pele. um cancro estranho. estive para o ir ver ao hospital, envés disso acariciei um escorpião de cobre que estava à venda numa dessas lojas de decoração a puxar pró misticismo indiano.
a – devias ter ido vê-lo ao hospital.
b – eu fui vê-lo. com a ponta dos dedos no dorso do escorpião de cobre.
a – não achas estranho que as máquinas ainda não tenham chegado? as máquinas da demolição do prédio.
b – já te disse. já não acho nada estranho. quando se está à espera. quando se está em estado de espera, deixa-se de estranhar o que quer que seja. é o medo e o desespero que se instala na alma. a estranheza não. achar uma coisa estranha, invulgar, é coisa que só os que têm a dom da tranquilidade sentem. estou fora da normalidade. na fronteira entre o abandono máximo e a esperança de um milagre impossível: enfrentar dignamente a tua fuga. o milagre de descobrir nos teus olhos uma ínfima centelha de compaixão.
a – pois eu só espero que a demolição do edifício se inicie o mais rapidamente possível. o meu estado de espera não é menor que o teu. e estou tão farta da tua permanente auto-piedade. não entendes nada. tudo isto…
b – …para usar as tuas palavras, se não entendo nada pára de me tentar explicar. é inútil.

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