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domingo, fevereiro 29, 2004

“podia morrer nos teus olhos amada rádio” 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

“podia morrer nos teus olhos amada rádio”

ouço
soprado ao ouvido
“aqui estamos nós / homens sujeitos ao tempo”,
os versos de ruy belo que abriram
pela a voz de fernando alves,
a primeira emissão,
pirata,
da tsf.
“tomar a palavra, que queremos limpa e artesanal”,
assim se declarou a casa da rádio, num domingo de junho de 84

(com o diário de notícias, hoje, um cd com a memória da telefonia sem fios. a rádio bissexta, a rádio que quis ler o mundo. do fim da rua, ao fim do mundo.)

em cada segundo antigo, se espelha o que foi feito passado da melhor de todas as estações. a casa dos murmúrios e dos gritos. a casa de todos os sons, palavras e silêncios. a casa agora,
perdida no negócio, a rádio que esqueceu a possibilidade do ócio.
a casa
rádio
que hoje - dia em que oferece em cd a sua memória de elefante – mais não é que uma cópia de si mesma. um palimpsesto dos momentos dourados:
“postigo aberto”; intima fracção”
e
de
anjos dourados
(fernando alves; joão paulo guerra; emídio rangel (porque se disfarçou ele do medo de si próprio, ao espelho);
francisco amaral;
sena santos…
e
outros
anjos que a casa da rádio, silenciosamente, vai assassinando.

“sabemos todos os nomes do medo e da alegria

“susana dorme sozinha no palácio”

onde estão os dias da rádio que a telefonia anunciava?
onde estão os anjos, o ouro e as pausas?
onde estão as palavras sem mácula, limpas e artesanais?

“está tudo bem assim e não podia ser de outra forma” [salazar]?

“já corremos de mãos dadas
a mais secreta noite do mundo”


onde estão os lugares de encontro e as vozes?

tantas horas na madrugada, noites de cigarras doidas, horas de noite e lua.

“de novo o grande sobressalto”

387 04 06 – a linha
que aprendia mais mundo,
“postigo aberto” para a “intima fracção”.
horas clandestinas, véus e deslumbres.

“entrevistas com retrato” : “argumentos” , lúcidos, de joão paulo baltazar.
botas cardadas – timor
25 de abril em 25 horas – lugares de palmeiras e acácias
&
portugueses de gema
carlos júlio, antónio jorge branco…

…tsf em chinês…

…rádio sem fios,
amarrada agora nas teias de um tal comércio sem vergonha
de músicas enlatadas: idades da inocência e tais sucedâneos que.

dormes sozinha no palácio da terra dos incas – susana
o teu marido
o presidente fuji, el-chino, na terra dos eleitos
deixou-te só na floresta de pedra e segredo
como a rádio, hoje, dorme na promessa de voltar –
paulo alves guerra
“lições de vida” – fronteira de galegos
embaciadas janelas de igreja – ana catarina santos com
montagens de alexandrina guerreiro.

tsf – adeus!

“já corremos de mãos dadas
a mais secreta noite do mundo
já subimos ao alto da montanha
sabemos todos os nomes do medo e da alegria
em ti me transcendo
podia morrer nos teus olhos
se nestes dias de cigarras doidas
perderes de vista o meu coração vagabundo
dá-me um sinal
abraçar-nos-emos de novo
antes dos rigorosos frios
de novo o grande sobressalto
o formidável estremecimento dos instantes felizes
podia morrer nos teus olhos amada rádio”


fernando alves

DOL-U-RON Forte # 10 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


túlipa

se voasse nestes céus frios e pudesse ser mais núvem ou meia-lua
vermelho, ou marte, ou cabelos
e todas as coisas transparentes que preenchem o espaço
e o mar celeste,
neste centro de pedra que habito
ver-te-ia
uma
e
outra
e
outra
vez


(hino)

sábado, fevereiro 28, 2004

Caro Manuel, 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

caro manuel,

os seus apelos à blogosfera eborense são comoventes. quanto aos blogues da verborreia, com esses nunca perdi tempo. quanto aos outros, entre os quais incluo o seu, falar de évora não significa escrever "liberalitas julia" a cada post, nem andar a comentar questões da "toponímia" política da cidade todos os dias. ter évora em fundo é isso mesmo. é tê-la em fundo, em cenário, até em contra luz, às vezes focada, outras desfocada.

só consigo compreender a cidadania como um movimento de inteligência sem fronteiras de qualquer espécie. o resto, o resto é mesmo paisagem.

um fraterno abraço,
FMG

HORA DO DIABO # 72 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

memórias de um horror argentino numa manhã de chuva e vento e frio e fevereiro, quase março. uma manhã em memória de graciela.

graciela pernas de poce

"Estudiante de Ecología
Desapareció el 19 de octubre de 1976
Tenía 20 años

Semblanza elaborada por sus amigas:
Era rubia y sus ojos celestes ... Graciela nació en La Plata el 9 de diciembre de 1955 en una familia un poco de izquierda y un poco bohemia: un padre librero, una madre abogada y Pablo, su hermano menor.

Quizá haya sido eso o quizá no -las torsiones de la historia son siempre un poco más complicadas-, lo cierto es que muy pronto Graciela se acercó a los grupos de lectura política que florecían por aquellos años en el Colegio Nacional. En poco tiempo, los vientos de esa historia y una fuerza de voluntad que a veces se parecía a la obstinación, la llevaron a tomar las decisiones que en algunos serían provisorias y en ella definitivas: el amor, la militancia, quedarse acá.
Lloraba poco, pero escribía versos tristes. Era buena deportista, pero nunca dejó de fabricar objetos inútiles. Los usó también para adornar su última casa; la misma casa de la que pudo escapar por los techos cuando llegó la patota, y a la que volvió al darse cuenta de que Julio -su marido, su novio del Colegio -no podía seguirla porque lo habían herido. Era una buena deportista pero el I Cuerpo de Ejército la secuestró el 19 de octubre de 1976.
Y cantaba como una calandria ... cantaba con el coro de niños del Teatro Argentino, cantaba con los amigos del Colegio en los fogones de la playa, cantaba con sus compañeros de cautiverio en el Pozo de Banfield el 9 de diciembre de 1976: ese día Graciela cumplía 21 años.
Suyos fueron los días de su corta vida, pero no son suyos los días de su larga desaparición. Nuestro es el tesoro de haberla tenido entre nosotros, y nuestro es el desconsuelo. Para siempre."

sexta-feira, fevereiro 27, 2004

HORA DO DIABO #71 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

perder: ficar privado de uma coisa, ou de qualidade física ou moral que se possuía; ser separado pela morte; dar cabo de; destruir; corromper; desperdiçar; dissipar; deixar escapar; não chegar a tempo a; descair no conceito de; empregar sem proveito; ser suplantado por um concorrente; sofrer dano; desmerecer; arruinar-se; ficar desnorteado.”

estamos em perda.

HORA DA FÉNIX #62 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

um filme de filipe naudts

ver

quinta-feira, fevereiro 26, 2004

"dio è con noi" 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

recebi por e-mail, a mensagem dos bispos diocesanos, maurilio de gouveia, arcebispo de évora e amândio tomás, bispo auxiliar da arquidiocese de évora.

transcrevo dois parágrafos da mensagem, que me parecem reveladores do propósito da mesma:

Mensagem dos Bispos Diocesanos:

A Quaresma e defesa da vida e da dignidade da pessoa humana

A Igreja de Deus, guiada pelo Espírito, sua ‘memória viva’, revive, na fé, o mistério dos 40 dias (Quadragésima) de oração e jejum de Jesus “levado pelo Espírito ao deserto” (Lc 4,1) e todo o mistério, de prova e de consagração à vontade do Pai, que se manifesta na vida pública do Senhor, desde o baptismo de penitência a que se sujeitou, no rio Jordão, até ao ‘baptismo’ da morte, a que livremente se entregou por nós em sacrifício, salvando-nos pelo seu Mistério Pascal.

A Quaresma orienta para o sacrifício da cruz e para o triunfo pascal, de modo que não há jejum, oração e esmola que não provenham dum profundo desejo de conversão e para esta se orientem. A Páscoa pressupõe a Quaresma, que começa com o rito da imposição das cinzas e vai até ao Tríduo Pascal. A Quaresma é o tempo propício para a conversão, para a reflexão e diálogo com Deus, na oração e para a partilha com os irmãos necessitados.

[…]
Já o Concílio Vaticano II dizia há 40 anos: “são infames as seguintes coisas: tudo quanto se opõe à vida, como seja toda a espécie de homicídio, genocídio, aborto, eutanásia e suicídio voluntário; tudo o que viola a integridade da pessoa humana, como as mutilações, os tormentos corporais e mentais e as tentativas para violentar as próprias consciências; tudo quanto ofende a dignidade da pessoa humana, como as condições de vida infra-humanas, as prisões arbitrárias, as deportações, a escravidão, a prostituição, o comércio de mulheres e jovens; e também as condições degradantes de trabalho, em que os operários são tratados como meros instrumentos de lucro e não como pessoas livres e responsáveis. Todas estas coisas e outras semelhantes são infamantes; ao mesmo tempo que corrompem a civilização humana, desonram mais aqueles que assim procedem, do que os que padecem injustamente; e ofendem gravemente a honra devida ao Criador” ( Gaudium et spes, 27 ).


mais uma vez, a igreja toma a sua posição da forma mais brutal e intolerante, ao arrepio do próprio espírito da quadra religiosa que os católicos vivenciam, a quaresma. o facto, é que a igreja afirma, e reafirma, considerar as mulheres que interrompem voluntariamente a gravidez: homicidas, portanto criminosas, compara-as a torcionários, violadores, proxenetas, exploradores de trabalho infantil, genocídas, etc.

Enfim, nesta mensagem, os bispos declaram “infames” as mulheres que praticam a interrupção voluntária da gravidez.

não haja dúvidas sobre as intenções deste “edital” de condenação pública. a igreja continua afastada do seu povo, persiste na condenação como arma de controle do seu rebanho, aplica sanções ao serviço das suas conveniências. outrora foram bruxas e judeus (os judeus, não há tanto tempo como isso, não nos esqueçamos da amizade entre o papa pio XII e os regimes nazis da alemanha e itália durante a II grande guerra).

um dia, um papa, num futuro qualquer, vai ajoelhar-se, vestido de branco, e cruz na mão, e pedirá desculpa pelo mal que “esta” igreja causou. declarará que estavam enganados… não foi assim com galileu, com a inquisição, com o tal papa nazi? será tarde, fieis servos de… deus?

p.s.: não deixa de ser inteligente a maneira como os bispos de évora, colocam as palavras da condenação na boca do concílio do vaticano II, como forma subtil de neutralizar as vozes mais humanas da comunidade católica. como se todos ignorássemos a pressão e condicionamento dos sectores mais fundamentalistas da igreja, que este papa - joão paulo II - bem representa, contra o movimento de regeneração iniciado por joão XXIII. pena é que não se lembrem de citar mais passagens das “resoluções” do vaticano II, especialmente aquelas que os incomodam, aquelas que dizem respeito à libertação dos homens e das mulheres, justamente, através da prática religiosa. mas o integrismo fanático sempre foi assim.





a reabilitação da arte como... 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

algumas notas, escritas como contributo para uma tese de doutoramento, na área do ensino do desenho, na licenciatura em arquitectura:

três condições me parecem necessárias para que seja possível reabilitar o desenho – aliás a arte – como elemento regenerador da condição humana:

. o quotidiano
. a visão clara
. a disponibilidade

I.
os construtores de catedrais da idade média produziram uma arquitectura sem equívocos. porquê? a resposta parece simples: cada obreiro executava a sua tarefa com profunda religiosidade. da mesma forma, cabe perguntar: haveria algum arquitecto egípcio, pintor, escultor, que ao trabalhar nas pirâmides, não acreditasse na eternidade espiritual, mesmo material, do seu faraó? parece obvio que não.

as pirâmides estão a escassos km de uma grande cidade, metropolitana, ruidosa, dir-se-ia, moderna. mas quem visita o cairo reterá os prédios da contemporaneidade? as auto-vias? não. são as pirâmides que continuam a tocar o coração dos viajantes. com efeito, é a profunda elevação espiritual que continua a tocar as pessoas, mesmo tantos séculos depois.

seríamos nós capazes de chorar e arrepiar com “a greve” de eisenstein, se não sentíssemos naqueles fotogramas mudos, o pulsar da genuína convicção marxista; o desenho de uma revolução a construir-se?

o que une através da história os maçons operativos de chartres, paris, évora, os arquitectos-sacerdotes do egipto, eisenstein, picasso... rimbaud? a visão clara do mundo fenomenológico e global percepção da transcendência.

II.
aquilo a que se convencionou chamar de “a idade do capitalismo tardio”, trouxe à humanidade uma preocupante substituição da sua natural capacidade de tratar os registos sensoriais. em rigor, o que vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos ou saboreamos, não é aquilo que verdadeiramente vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos ou saboreamos. deixámos de saber construir o nosso “museu imaginário(1)” agindo como se tivéssemos um chip de telemóvel, pré-carregado, instalado no nosso cérebro, alimentado por biliões de estímulos extra-sensoriais, que não sabemos tratar nem intelectualmente, nem emocionalmente, e que por isso mesmo, nos condicionam o intelecto, as emoções, a acção.

quer isto dizer que aquilo que pensamos e sentimos deixou de ser o resultado da nossa própria análise e criatividade, para pensarmos e sentirmos, segundo o padrão imposto por uma gestão massificada das emoções. vivemos o tempo da "maldição de midas(2)". tudo tornado ouro, impossibilita-nos sentir com o corpo.

assim, como podemos desenvolver a “visão clara”, almejar a clareza amorosa que a arte proporciona, que só a arte proporciona, a arte que é amor, e só o amor é arte? não podemos!

é mais uma vez necessária a reivindicação de um processo revolucionário, que descondicione a humanidade das grilhetas da “idade do sucesso”. mais uma vez a luta se centrará na liberdade essencial do ser humano, independentemente das suas condições de existência, desta vez a opressão é generalizada.

III.
agostinho da silva, falou-nos da possibilidade do desemprego em massa funcionar como agente “despertador” deste estado letárgico da humanidade. sem emprego, ao homem só restará o trabalho – o ócio – que é o contrário do negócio. sabemos que esta mudança, como todas, será dramática, catastrófica. que a humanidade mudará o sinal da sua identidade irreversivelmente. mas não é isso que desejamos? a revolução faz-se com os meios que temos ao nosso dispor. a revolução é um estado permanente da acção humana, radical, global e irreversível.

IV.
como tal, a disponibilidade para aprender nascerá de uma ligação directa entre o quotidiano e a expressão artística, ligada às condições sociais de maior sofrimento. hoje, como ontem, a arte deverá ser a arma, usada pelos que hoje nada têm a perder, a ferramenta da construção de um novo tempo.

V.
só assim soarão os corações produtores, os tambores. só assim os olhos cegarão para que seja possível ver, ouvir, cheirar, saborear e tactear pelo desenho.

(1) - expressão de andré malraux
(2) - expressão de francisco louçã



quarta-feira, fevereiro 25, 2004

ir ver 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Ar Líquido

segunda-feira, fevereiro 23, 2004

DOL-U-RON Forte #9 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

a noite devolve às flores
a frescura, o líquido
que o dia lhes sorveu impiedoso - à noite
as flores recebem a lua e no escuro o dom da respiração humana
as flores
recebem
o
calmo-estar-solitário
adormecem hereges, lúcidas
acordarão gratas, frágeis e de novo vulneráveis
nos seus corações tão pranto
a noite e as flores
são como
amantes
que precisam do abraço último de bach nos seus corpos
as noites não cobram às flores o que os dias as obrigam
fosse
a vida noite
e
flores
e acordaríamos túlipas encandescentes.

(hino)

hoje no público 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

morreu a cadelinha “spot”.
a leal e afectuosa cadelinha da família “bush”, morreu vítima de vergonha num hospital cijordano. a cadela, que durante quinze anos, sofreu os mais violentos atentados à dignidade canídea, tendo sido por mais que uma vez obrigada a passar revista a tropas; viajar no avião presidencial; comer perus de natal de plástico vindos do iraque, chegou mesmo ser obrigada a admitir, em conferência de imprensa, ser filha de “millie”, a também já falecida cadela de bush pai. sendo conhecido o apoio de “millie” à guerra do golfo e ao tráfico de armas entre o seu dono e os talibans, esta foi a mais duras de todas as provações por que "spot" teve de passar. nunca se conformou com as posições de direita da sua mãe, chegando a chamar-lhe vira-latas junto ao seu leito de morte.

algumas fontes anónimas, por isso fidedignas, revelaram, em carta dirigida ao procurador joão guerra, que nos últimos meses, “spot”, era obrigada a brincar com granadas com a cavilha solta. no entanto, os engenhos explosivos de fabrico caseiro, nunca chegaram a explodir. como “spot” frequentava uma igreja evangélica, onde se deleitava com as canções da portuguesa nucha, era com frequência protegida por jeová, nosso deus. a atitude suspeita dos donos obrigando a pobre cadela a ir apanhar ao lago e à piscina as ditas granadas, foi desvalorizada pela casa branca. o procurador joão guerra, apenas perguntou se na autópsia à bichinha, tinha sido encontrada alguma impressão digital de carlos cruz. washington respondeu que para evitar confusões com abortos, a família “bush” só autoriza autópsias da cintura para cima. pelo sim, pelo não, a carta foi anexada ao processo da casa pia.

deixamos as mais sentidas condolências ao cão barney e ao gato índia, que ainda se encontram nas garras da família bush na base americana em cuba.

domingo, fevereiro 22, 2004

domingo? 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

imagem

sábado, fevereiro 21, 2004

DOL-U-RON Forte #8 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

está um espelho encostado ao tronco de uma árvore
mesmo aqui na rua
os cães olham-se e exaltam-se
rosnam
pensam que é outro a desafiar-lhes o espaço urinário
e o espelho não responde
muda imagem de cão
mas que faz o mesmos gestos de ataque
sem som
os cães ainda ficam mais zangados ao
serem ignorados pelo
cão-de-espelho
no sopé da árvore
haverá coisa dolorosa que ser-se ignorado no auge da raiva?

já caíram na armadilha três pobres canídeos
os três partiram desolados com a insignificância dos seus apelos de guerra
e sem saberem –
que era contra eles próprios que bradavam


(hino)

HORA DO DIABO #70 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

há dias em que ficamos tão mudos, tão surpreendidos com a nossa própria condição de existência que nada nos satisfaz tantas e imensas perguntas nocturnas.

ainda assim, começo da noite, novamente, com as cartas de keats.


"To Fanny Brawne

July 25th, 1819


Sunday night

My Sweet Girl,
I hope you did not blame me much for not obeying your request of a Letter on Saturday: we have had four in our small room playing at cards night and morning leaving me no undisturbed opportunity to write. Now Rice and Martin are gone I am at liberty. Brown to my sorrow confirms the account you give of your ill health. You cannot conceive how I ache to be with you: how I would die for one hour - for what is in the world? I say you cannot conceive; it is impossible you should look with such eyes upon me as I have upon you: it cannot be. Forgive me if I wander a little this evening, for I have been all day employed in a very abstract Poem and I am in deep love with you - two things which must excuse me. I have, believe me, not been an age in letting you take possession of me; the very first week I knew you I wrote myself your vassal; but burnt the Letter as the very next time I saw you I thought you manifested some dislike to me. If you should ever feel for Man at the first sight what I did for you, I am lost. Yet I should not quarrel with you, but hate myself if such a thing were to happen - only I should burst if the thing were not as fine as a Man as you are as a Woman. Perhaps I am too vehement, then fancy me on my knees, especially when I mention a part of your Letter which hurt me; you say speaking of Mr Severn "but you must be satisfied in knowing that I admired you much more than your friend." My dear love, I cannot believe there ever was or ever could be any thing to admire in me especially as far as sight goes - I cannot be admired, I am not a thing to be admired. You are, I love you; all I can bring you is a swooning admiration of your Beauty. I hold that place among Men which snub-nosed brunettes with meeting eyebrows do among women - they are trash to me - unless I should find one among them with a fire in her heart like the one that burns in mine. You absorb me in spite of myself - you alone: for I look not forward with any pleasure to what is called being settled in the world; I tremble at domestic cares - yet for you I would meet them, though if it would leave you the happier I would rather die than do so. I have two luxuries to brood over in my walks, your Loveliness and the hour of my death. O that I could have possession of them both in the same minute. I hate the world: it batters too much the wings of my self-will, and would I could take a sweet poison from your lips to send me out of it. From no others would I take it. I am indeed astonished to find myself so careless of all charms but yours - remembering as I do the time when even a bit of ribband was a matter of interest with me. What softer words can I find for you after this - what it is I will not read. Nor will I say more here, but in a postscript answer anything else you may have mentioned in your letter in so many words - for I am distracted with a thousand thoughts. I will imagine you Venus tonight and pray, pray, pray to your star like a Heathen.
Yours ever, fair Star,
John Keats


My seal is mark'd like a family table cloth with my Mother's initial F for Fanny: put between my Father's initials. You will soon hear from me again. My respectful Compts to your Mother. Tell Margaret I'll send her a reef of best rocks and tell Sam I will give him my light bay hunter if he will tie the Bishop hand and foot and pack him in a hamper and send him down for me to bathe him for his health with a Necklace of good snubby stones about his Neck. "

John-Keats


quarta-feira, fevereiro 18, 2004

Colaborações de Olsa 

"minha sereia noctívaga

Anseio a perda da luz,
anjos dormem nas estrela despertas;
no advento desejado,
mato o corpo
sendo apenas alma
na querida madrugada.

Silencioso
sob a nua Selene,
espero-te
ninfa negra
dos campos
de oiro em pão.

Sou então de novo
apenas o Verbo
que por momentos
esquece a má carne
que o corrompeu,
e sonho-me uma vez mais
capaz de amar.

Ilusão fugaz
que me
satisfaz!

Deixo-me seduzir
sem nunca to confessar,
és-me prazer privado
(jamais carnal)
que resguardo
só para mim:
egoísta.

Desconheces o meu sentir
e assim fazes-me feliz,
sou audaz no meu eterno omitir!

A manhã de insónias
não vem sem a nossa despedida;
temo-a,
abjuro o sol
que me cega de ti,
o meu olhar ferve
de lágrimas
pela claridade
que dentro de mim
todo o encanto finda.

Adeus, até à próxima noite, delírios meus;
é já dia… e morro em alma, de novo feito carne."

mais tarde ou mais cedo, o seu jornal 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

amanhã sai o “inimigo público”.

venho por este meio, propor à nação, a recolha de vinte e cinco mil assinaturas para a realização de um referendo nacional. é objectivo do referendo a troca de papeis entre o “ip” e o “público”. quécedezer, o “ip” passava a jornal diário e o “público” a suplemento. tão a ver?
é que não há dúvida, o humor está no "público", o sério, no "ip".

ora a perguntinha:

quer que o suplemento do jornal “público”: “inimigo público”, passe a diário, e que o diário “público” passe a suplemento?

hipóteses:

sim
ou
sim

depois cada uma vota conforme a sua consciência.

“o inimigo público”, mais tarde ou mais cedo, o seu jornal!”

THE VOICE OF THE SILENCE 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

quando as manhãs se abrem assim ao nevoeiro, à humidade, aos deuses dos países frios, nasce em nós a esperança de enverdecer, de nos tornarmos fluídos, marítimos. é uma esperança como outra qualquer. não custa olhar pela janela e sonhar com dias de imensidão e tranquilidade; com lareiras e rádios a pilhas.

HORA DA FÉNIX #61 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

começar a noite com as cartas de keats.
dias e noites como uma madrugada só.

"To Fanny Brawne

July 8th, 1819
July 8th

My sweet girl,

Your Letter gave me more delight, than any thing in the world but yourself could do; indeed I am almost astonished that any absent one should have that luxurious power over my senses which I feel. Even when I am not thinking of you I receive your influence and a tenderer nature steeling upon me. All my thoughts, my unhappiest days and nights have I find not at all cured me of my love of Beauty, but made it so intense that I am miserable that you are not with me: or rather breathe in that dull sort of patience that cannot be called Life. I never knew before, what such a love as you have made me feel, was; I did not believe in it; my Fancy was affraid of it, lest it should burn me up. But if you will fully love me, though there may be some fire, 'twill not be more than we can bear when moistened and bedewed with Pleasures. You mention 'horrid people' and ask me whether it depend upon them whether I see you again. Do understand me, my love, in this. I have so much of you in my heart that I must turn Mentor when I see a chance of harm befalling you. I would never see any thing but Pleasure in your eyes, love on your lips, and Happiness in your steps. I would wish to see you among those amusements suitable to your inclinations and spirits; so that our loves might be a delight in the midst of Pleasures agreeable enough, rather than a resource from vexations and cares. But I doubt much, in case of the worst, whether I shall be philosopher enough to follow my own Lessons: if I saw my resolution give you a pain I could not. Why may I not speak of your Beauty, since without that I could never have lov'd you. I cannot conceive any beginning of such love as I have for you but Beauty. There may be a sort of love for which, without the least sneer at it, I have the highest respect and can admire it in others: but it has not the richness, the bloom, the full form, the enchantment of love after my own heart. So let me speak of your Beauty, though to my own endangering; if you could be so cruel to me as to try elsewhere its Power. You say you are afraid I shall think you do not love me - in saying this you make me ache the more to be near you. I am at the diligent use of my faculties here, I do not pass a day without sprawling some blank verse or tagging some rhymes; and here I must confess, that, (since I am on that subject,) I love you the more in that I believe you have liked me for my own sake and for nothing else. I have met with women whom I really think would like to be married to a Poem and to be given away by a Novel. I have seen your Comet, and only wish it was a sign that poor Rice would get well whose illness makes him rather a melancholy companion: and the more so as so to conquer his feelings and hide them from me, with a forc'd Pun. I kiss'd your Writing over in the hope you had indulg'd me by leaving a trace of honey - What was your dream? Tell it me and I will tell you the interpretation threreof.
Ever yours, my love!"

John Keats.


segunda-feira, fevereiro 16, 2004

DOL-U-RON Forte #7 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

pudesse eu ganhar a paz
como uma dádiva das horas às minhas mãos
pudesse eu tê-las tranquilas, pudesse
não tremer tanto
pudessem as noites ser noites os
dias
dias
e
seria um outro, seria umas asas, um chapéu
qualquer coisa, de alto, de vermelho

não sou um chapéu porque não sou um chapéu

ando sem sentir e com passos circunflexos

não sou asas porque não sou asas

não tenho vermelho nos lábios
nem gravatas, nem algas a adornarem-me o pescoço – colares
de flores violetas talvez me salvassem
pudesse eu transpirar a paz como uma oferenda das horas à minha dor de /respirar
e
a própria paz seria oxigénio e transparências –
pintadas
as
minhas mãos deixar-se-iam apagar
como pássaros cegos

(hino)




VáVá # 3 ... ouvir rádio 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

os dias sem rádio

vivo numa casa do centro histórico de évora. nestas casas não se consegue captar a televisão de sinal aberto com antenas interiores. ou se instalam “espinhas” no telhado, “pratos” da tv cabo digital, ou não se vê televisão. não tenho dinheiro nem para uma coisa nem para outra, mas isso não me deixa triste. não preciso da televisão para ser feliz.

o mesmo não digo da telefonia. sempre me conheci a ouvir rádio, digo, a ouvir programas de rádio. disso preciso, o meu sangue fluí em fm.

évora tem as piores estações de rádio que se possa imaginar. De resto, não são coisas para ouvir, são talvez para anunciar empresas de construção civil; tractores; vestidos de noiva (tratores vestidos de noiva); sistemas de rega, mas não mais do que isso. acho mesmo que a coisa mais parecida com rádio que se fez nesta cidade não foi feita pelas rádios, mas em animações amplificadas, no ar das feiras e circos que tais.

se andarmos com as telefonias, antena erecta, em prospecções de captação, lá conseguiremos, a custo, captar, num canto entre o frigorifico e o micro-ondas, ou entre a tigela do cão e o caixote do gato, uma tsf dentro de uma frigideira, ou uma antena 2 em suaves prestações sonoras.

claro que o reciclado rádio clube português tá sempre a dar-lhe. o mesmo com a renascença e a antena 1.

pronto é o que cá há. já não é mau, dirão alguns. e talvez não fosse. poderia não ser, se a rádio ainda preenchesse os dias, se a rádio ainda fosse rádio, se os autores de rádio ainda pudessem fazer programas e pô-los no ar… se não tivesse, a telefonia-sem-fios, capitulado ao merdum da animaçãozinha.

vejamos:

a antena 1 quer ser um mix da tsf com a falecida nostalgia.
a tsf, um mix da nostalgia, com a nostalgia da tsf.
a antena 2 transformou-se na “pastoral” dos ouvintes. passa os dias a dar conselhos e a celebrar o santo-ofício da música enlatada, versão erudita.
a renascença, bem, a renascença é o que é.

que dizer?
que fazer?
que esperar?

que desespero!

domingo, fevereiro 15, 2004

HORA DA FÉNIX #60 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Vermeer

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

quantos anos pode uma pintura esperar pelo seu modelo?

vermeer foi um homem invisível
desconhecido, essencial, depurado

vermeer existiu? pode exitir um homem assim?
isso importa?

o que é isto a que chamamos arte?
estará alguém, séculos a fora, esperando por nós?

a menina do brinco de pérola - mistério entre os mistérios
- mistério de uns lábios que acabaram de beijar, de uns olhos ainda
fixos no amante.

breve história da pintura numa pérola perto de si.

VáVá, ao congresso... 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

no "Crónicas do Deserto", Manuel Dinis Cabeça, deixou-nos um post mostrando a sua preplexidade com a falta de cometários dos blogues sobre o "Congresso do Alentejo" - perdão - Alentejo XXI! (como um estádio de futebol) .

tendo em conta a história destes encontros, a manipulação do pc sobre os seus conteúdos, etc., etc., francamente, de que se espanta o MDC?

estranho era o contrário!

haveria alguma coisa que merecesse a nossa atenção virada para montemor, por este dias? dar uns bafos num virtual cachimbo da paz - os tão apregoados consensos inter-partidários?

silêncio dos blogues? caro MDC, nada mais natural, meu amigo, nada mais natural!



HORA DO DIABO #69 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

mais uma vez michaux. uma e outra e outra e outra vez. sempre.

"Ao sair de casa, perdi-me. Foi tarde demais para recuar. Encontrava-me no meio de uma planicie. E grande rodas circulavam por toda a parte. Tinham um tamanho cem vezes maior que o meu. E havia outras maiores ainda. Eu sussurrava para mim, quase sem olhá-las, quando se aproximavam: «Roda, por piedade, não me esmages.» Elas chegavam, levantando um vento poderoso, e partiam. Eu vacilava. Há meses que era isto: «Roda, não me esmages... Roda, uma vez mais, não me esmagues.» E ninguém interveio! E nada consegue parar isto! Vou ficar aqui até à morte."
Henri Michaux, in "As Minhas Propriedades"

sábado, fevereiro 14, 2004

VáVá, ao futebol 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

futebol

este post tem continuação

sexta-feira, fevereiro 13, 2004

HORA DO DIABO #68 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

"Ela pôs-se a atirar ludo pela janela, anéis, pulseiras, um colar, alguns objectos preciosos e, arrancada do porta moedas, uma grande quantidade de dinheiro pelo ar, e as almofadas.

Caem vestidos no passeio. Nua, ela continua a atirar mais vestidos pela janela.

Horror da posse. Insuportável, indigna posse.

Num minuto de iluminação, o véu é rasgado. Ela vê a baixeza de possuir, de guardar, de acumular.

Tornou-se-lhe subitamente insuportável andar com roupas em cima do corpo, e tendo juntado os objectos, ali em monte, pôs-se logo a despir tudo.

Ignóbil ter desejado apropriar-se das coisas, guardá-las para si.

Na sequência deste acto tão pessoal, e todavia público (enxergado da rua), retiraram-lhe a liberdade.

Ela começou por falar muito, depressa, sem cessar, e depois quase nada.

Ao mesmo tempo que outras internadas, foi levada a desenhar, a pintar, e um dia puseram-lhe nas mãos um lápis de cores e colocaram diante dela, numa mesa, uma folha branca de papel.

Inerte, ela traça, distraída, alguns pontos e riscos esparsos, e depois, de súbito e sem parar, flores, flores sem suporte.

Umas flores cândidas, de corolas simples e simplesmente coloridas, flores oferendas, flores de nascimento, flores tingidas de inocência. Muitas. Muitas.

Palavras, nenhumas, nunca mais.

Somente flores, flores, flores.

O dom, dar, dar-se.

«Impunha-se defendê-la de si mesma...» Flores é a sua única resposta. Flores, flores, flores."


Henri Michaux, in "O Retiro pelo Risco"

quinta-feira, fevereiro 12, 2004

HORA DO DIABO #67 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

"Vida: O espaço de tempo que decorre desde o nascimento até à morte dos seres. Modo de viver: dar-se boa vida; vida de vadio. Comportamento: vida exemplar. Alimentação e necessidades da vida: trabalhar para ganhar a vida. Ocupação, profissão. Carreira: abraçar a vida monástica. Princípio de existência, de força, de entusiasmo, de actividade (diz-se das pessoas e das coisas). Fundamento , essência; causa, origem. Biografia. Vida civil, os direitos civis. Vida externa, vida futura, a outra vida, a existência espiritual depois da morte. Em sentido místico: a bem-aventurança, a glória eterna."

e agora? o que é que se faz? como é que se faz?

quarta-feira, fevereiro 11, 2004

DOL-U-RON Forte - #6 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

chorassem as rosas nesta praça rectangular
e algo se libertaria na cidade
que
respirasse
que vivesse
que tivesse um corpo de carne e olhos – um pássaro
um
rato
algo quente que suspirasse

junto à fogueira, junto à igreja
junto ao frio, aos táxis
estão rosas que não conseguem chorar a dor

homens e umas crianças e um cão castanho
rodeiam os canteiros
vêem as flores
e caem em prantos de amores passados e chuva

os morcegos chocam com antenas de televisão e gemem
nada, nada as faz chorar
estão secas, lúcidas
a cidade devorou-as, o céu e
as portas da judiaria devoraram-nas
e elas secas, amando, pulsam com um coração externo, voador e branco

mulheres entram em táxis e vão, vão
e rua abaixo desaparecem
tão bem
como as rosas que esperam – as túlipas
do outro lado do ovo
o bolbo

os advogados saem tarde dos escritórios
batem com as portas pesadas, com os ferrolhos das casas de judeu
casas tão velhas como as suas imagens negras – as togas
pendentes nos braços e
pastas pesadas presas nas pontas dos dedos
fardos de doentes aprisionados
almas cativas em papel timbrado

perto da meia-noite sairão de buracos os bancários aficionados
das horas
extraordinárias – as estrelas
as rosas-secas-por-dentro não chorarão, não
podem
tudo lhes será cortado
e o cão que lhes arrancará os dedos
beberá os seus choros contidos

rosas-gato envelhecidas

não sabem, mas
em cada noite futura uma rosa nascerá ao contrário
plantando pétalas sob o olhar compassivo das túlipas libertadas

pudésseis vós chorar, queridas rosas
e poderia eu chorar convosco ardendo na fogueira da praça
nós cinza seríamos pó de electricidade
essência de choro nas vossas faces, a liberdade

(hino)

Lugar Efémero 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

pff, visite:

todos os dias, a todas as horas:"lugar efémero"

post de bernardo rodrigues no "desejo casar"

DOL-U-RON Forte - #5 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

na melhor das hipóteses duraremos mais
algumas horas lúcidos
mexendo os braços, as pernas e os olhos do cérebro
a discernir
a soletrar o nosso nome
e
depois
fim

depois é o vago, o sem luz de presença
o enevoado das origens, o incerto da razão
e
não
haverá nada a fazer – será eterno
por eras e eras
eras de insanidade

(hino)

Arrepio 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

post de luís nazaré no "causa nossa"

HORA DA FÉNIX #59 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

coisas gamadas, esta do "dicionário do diabo":

1.2.04 SER CONSERVADOR: Ser conservador é, por exemplo, sentir um enorme prazer com os genéricos dos filmes de Woody Allen. Sempre iguais: fundo negro, lettering branco e elegante, música da época das big bands, os nomes dos actores por ordem alfabética, a família de actores (agora menos recorrente), os habituais Juliet Taylor (casting), Santo Loquasto (production designer), Charles H. Joffe e Jack Rollins (produtores) e, claro, o «Written and Directed by Woody Allen». A deliciosa revisitação do conhecido.

DIGA-SE DE PASSAGEM: que o que este filme, Anything Else, tem de melhor é o génerico

terça-feira, fevereiro 10, 2004

Como sempre, de um e-mail: 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Sobretudo no instante em que o vento de Outubro
(há quem pretenda que te crie de uma outonal magia,
dos sonoros montes do País de Gales ou da baba das aranhas)
vem com os punhos dos bolbos flagelar a terra,
há quem pretenda que te crie com palavras sem coração.
O coração esgota-se, estremecendo com a fuga
do sangue químico, consciente de como a agitação chega.
Junto à orla do mar, escuta as negras vogais dos pássaros.

Dylan Thomas

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

HORA DA FÉNIX #58 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

venceslau de moraes teve duas mulheres. ambas morreram precocemente. dizem que até ao fim da vida ele ia todos os dias, escrupulosamente, visitar as suas campas. escreveu mesmo um livro sobre elas, não propriamente sobre elas, mas sobre lugares, nomes, situações, inspirados na memória das suas esposas.

a pessoa e os livros de venceslau sempre me fascinaram profundamente. o velho marinheiro iluminado, viajante português nas terras do dharma, escritor das histórias dos amores navegantes. homem sem mácula. homem bom, sábio e mestre.

venceslau era de lisboa, já nessa altura, o marinheiro via no tejo a porta para o sol nascente. a saída. ele próprio foi a ponte oriental erigida sobre este escuro rio de nome ocidente.

talvez as suas cinzas estejam perto das campas das mulheres. talvez assim ele as possa continuar a visitar. talvez estejam espalhadas pela paisagem, talvez naveguem no pacífico. talvez ainda abençoe, serenamente, pelo nascer do sol, a sua cidade natal. talvez nem a tivesse nunca deixado e toda a sua vida não passasse de um desses sonhos portugueses.

A estreia do LFB no "Causa Nossa" 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

coisas gamadas:

mais uma, do "causa nossa". se já tinhamos o dever de frequentar aquele lugar, já por lá anda o vital moreira e assim..., agora melhor, o lfb aterrou por lá, escreve bem, e assim... é ler, é ler:

"Chama-me puto.

Tenho 26 anos. Da primeira vez que me chamaram "senhor" tinha 17 e assustei-me. Uma senhora num autocarro lotado, ao ver-me atrapalhado com os livros de liceu, disse para alguém: "Deixa passar o senhor". Tranquilizei-me com as inúmeras dioptrias da mulher que transformavam seguramente a minha barba rala num mato grosso de camionista e me acrescentavam - aos seus olhos - uma ou duas décadas.
9 anos depois, com muito mais barba e aqueles incómodos pêlos que começam a conquistar território no nariz, ainda gosto que não me tratem por senhor. Prefiro ser a mascote, o amigo mais novo, o companheiro caloiro, gosto de ser "o puto".
Agora, vindo orgulhosamente daqui, chego a esta casa nova. Venho com a mala carregada de boas intenções, mas também dúvidas. Não sou um pensador político como qualquer um dos nomes no cabeçalho. Sei também que não tenho a verve deste, a cultura daquele ou a paixão daqueloutro. E nem pretendo, sequer, insinuar que estou num meio onde encontrem uma qualquer virtude. Não, a coisa mais provável que encontrarão neste "meio" a que me refiro será o meu próprio umbigo.
Mas, depois de um mês de descanso electrónico, regresso com prazer às lides virtuais. Dá-me gozo - e compreenderão que dê - receber um convite electrónico do Vital, de quem li tantos livros durante o meu curso de Direito. É como um aspirante a monitor que recebe um convite do regente. Agrada-me partilhar conversas com o Luís Nazaré, que aprendi a admirar por motivos bem mais prosaicos (o Benfica) ou partilhar um cabeçalho com o Vicente que - sem o saber - deu título à minha crónica de 3 anos num semanário açoriano onde também era o menino da equipa (chamava-se "Geração Rasca"). E, sobretudo, alegra-me sobremaneira voltar a integrar uma equipa com o meu pai profissional, amigo e mestre Luís Osório. Espero que estes e os outros me ajudem a resolver uma angústia que me persegue: a da razão à direita e do coração à esquerda.
Tenho tempo. Afinal - nunca como agora - fez tanto sentido que me chamem "puto".

Luís Filipe Borges

domingo, fevereiro 08, 2004

Colaborações de Olsa 

Textos de Olsa:

1.

X facse – unidade

No quebrado espelho,

reencontro por fim

aquele que, livre de complexos,

devo amar como verdadeiro par de mim,

não mais oculto

num preconceituoso conselho,

no qual jamais labuto!

Assumo-me assim pelos meus reflexos.



Oh Adónis seduzido

pelo Apólo bruto!!,

em seus braços foste traído…

adormecido

no seu colo corrupto!



De ti, o infame,

apenas invejava

a beleza,

que em seu único proveito

de prazer usou

e gastou,

consumindo avaro

a tua graça e gentileza,

em secretas nocturnas camas

que diurno desdenhava!!

Oh belo príncipe desencantado!,

choras agora no conforto do meu peito,

por algum mito que te ame

não mais em segredo feroz e bárbaro.!

Oh, em pranto, meu amado!!,

não vês que é por mim que chamas?!!!



Vem!, encontra-me

no reconforto de um abraço,

contenta-te com o meu carinho!

Embalo-me em teu rosto escasso

de adulto menino,

aconchegando-me em o teu ninho,

que envolve-me num paraíso pequenino,

no qual me dou fálico

àquele que entra-me

simpático!!.



És finalmente meu

e eu

entrego-me teu,

sem a modéstia que a mim antecedeu

nem a imoral vergonha que esqueceu

tudo já o que demais me sucedeu!.



Sou livre por te amar desencoberto

sob o céu,

neste querer não banido por este aberto

já véu!!!!



Oh Adónis!, homem da minha paixão!!,

a ti que me rompeste o desencanto

da minha interna solidão,

te dedico este elevado canto,

ansiando pelo teu corpo em sofreguidão,

enquanto me renasço deste meu eterno

caixão,

que me fora tão terno!



Em uma posse mútua

e em prazeres partilhados,

descobrimos novas mortes

em êxtases demorados,

que nos fazem esquecer às nossas Sortes

e não mais cair nas armadilhas

dos vãos sedutores deltas dourados!.

Para sempre errantes

pelas, do sonho, charmosas ilhas,

somos apenas homogéneos amantes

encorpando-se numa amorosa capicua.!



Cedo-me à tua carne

que me satisfaz

a sede de fome

enfastiada e voraz!!;

belo Adónis!, em meu cerne

penetra-me e em mim dorme.



Em uníssono rasgamos os escrúpulos

dos outros que soberanos

nos julgam aberrações,

que em fobia nos acusam(os tiranos!)

em ofensas de leis e religiões

a que se consagram em desejos chulos!.



Em nós apagamos a marca da proibição

num sentimento de Amor puro,

ignorando as vozes

que nos apelidam de perversão,

pois, deste mundo macio e duro,

optámos por apenas colher as nozes!.



Liberdade

é sem tabus amar-te

assim belo e casto,

e em felicidade

ser em ti homem afinal;

em abandono de Marte,

não mais ser viril,

mas pela doçura

do teu rosto

percorrer uma caricia gentil

de plena candura;

és o meu derradeiro

prazer carnal…

o meu esposo de Amor verdadeiro!!!



Por fim… recolhes ao íntimo casulo

após uma curta solar exposição,
jamais firme e confiante no nosso Amor;

oh fraco

(e não franco)!,

receias

afinal ser votado à execração

pela sempre altiva opinião do povo nulo

com o qual te rodeias,

reclamando-se da moral mestre e senhor!



Consumo-te então em ocultos jardins,

insistindo no desejo

de fazer-te público

e gritar a todos que amoroso te beijo!;

mas tu, oh Adónis ainda maculado

por um egoísta e pudico

namorado passado!,

temes novas feridas que não desafias,

e em o meu Amor assumido nunca confias,

fugindo de mim

para um santuário de púbicos querubins,

onde te perco em desespero

para outro disfarçado

unissexual e insincero

Mimado Pierot encarapuçado de Arlequim!



Procuro-te,

mas em vão

encontro-te

bêbedo de ilusão!!!



Paraísos

perdidos,

por juízos

ofendidos.



Sou de novo impar,

unido eterno

à solidão;

sem ninguém

por quem

amante chamar,

condeno interno

toda a ambição

de Amor,

submeto-me terno

à minha Dor!!.



De novo em perdição,

retorno ao meu caixão!.


in "egoS"

2.

ser e não estar

Feel me empty
as a star
shinning
into the mourning sun;
see my tears
dissolving my face
until perfection
until god
until nothing at all.
Peace!
Death.
A mirror being broken…

Quero-te apenas no vazio
que preenche os meus sonhos,
és o reflexo que nego ao espelho;
é-me interdito amar.

I am stone.
Intocável.
Sem sentir.
Soulless flesh.
Whole ghost.
Sou e erro.

Recrio devaneios
para me esquecer
entre momentos.

Invento-me
em imagens
de cortesia,
que me cortam
a sufocante
razão interna…
eterna sempre!

Then I am happy
like the starting fool
that does not know the end abyss
while blindly walking ahead;
and I keep on pretending through my mask
till boredom finally comes
and wakes me back to the mirror front.
Cry!

Felizes os parvos,
pois deles é o paraíso!

A razão mata-me e eu digo que te amo
num sussurro baixinho
de palavras ocas
que só eu oiço.
Música!
Dor de Minerva!

Kill all
feelings
by the apple’s bite.

I am me…
mas nunca estou contigo!

3.

\/
Miguel!
Reza
para que tudo desapareça
num sonho jamais acordado.

Reza
para que o rubor em tuas ásperas mãos
por milagre floresça em meras rosas.

Reza
para tudo esquecer
e nada no fim seres.

Reza
pelos divinos pecados
que não queres teus.

Reza,
chora,
berra.

Reza,
que eu fico aqui
até adormeceres.

Reza,
que o belo sol prateado
amanhã outro dia trará.

Reza,
e as vozes
não ouvirás.

Reza,
desespera,
acorda.

Reza,
pois eu parto daqui
e contigo deixo-te.

Reza,
em solidão abandonado
os fantasma acusar-te-ão.

Reza,
pela memória
que sufoca-te.

Reza,
pois perdão de ti
encontrarás jamais.

Reza,
em vãs súplicas
que já não crês.

Vem,
morre,
anjo arcaico venerado;
e por um beijo ressuscita
em meu ventre,
homem novo amaldiçoado!

Olsa



HORA DO DIABO 66 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

para quando chegarem os trinta anos

cena 1

nessa noite, ao contrário do que era normal, tinha conseguido adormecer. uma estranha preocupação costumava levar-me o sono para o paradeiro desconhecido do meu irmão, na altura jovem – adolescente – militante da acção revolucionária armada, braço armado do partido comunista português.

acordei, ainda criança, com as vozes dos meus pais na sala. Escutavam, no velho rádio philips, uns estranhos comunicados. depois dessa madrugada não voltei a poder ser criança e raramente voltei a ver os meus pais juntos na sala. a revolução estava no ar e eu, que já tinha aprendido a ler, reparei nuns panfletos espalhados no chão do corredor encerado, impressos a tinta vermelha, um texto do mário henrique leiria. só soube uns anos mais tarde que se tratavam das palavras do mário henrique leiria, nessa madrugada, com muito esforço, apenas consegui decifrar três ou quatro palavras entre elas: “gin tónico – os textos proibidos”.

cena 2

os meus pais deram pela minha presença já tarde. tinha conseguido esconder-me atrás do sofá de napa, junto à minúscula televisão, perto da janela. o meu pai chorava. daí a uns minutos ouvia-se: “grândola vila morena” dum microfone que falava. “o povo é quem mais ordena”. foi a minha mãe que deu comigo. “lisboa capital, república popular”. e deu-me um beijo.

cena 3

tocou o telefone, e outra vez, e outra… outra… outra. uma dessas vezes era o meu irmão. “é hoje mãe, ainda nos vamos ver hoje”. implorei para falar com ele mas não deixaram, era perigoso saber-se que estavam crianças em casa. do mal o menos, o meu irmão estava vivo, tinha voz, lembrava-se do número de casa. era filho da madrugada, eu não sabia, mas pressenti que me estava para acontecer qualquer coisa. algo que não me deixaria voltar a ser menino.

cena 4

“mãe, olha que manhã não te consegues levantar cedo para me ir levar à escola”. pareceu-me que era bom argumento, talvez tudo voltasse à normalidade. não podia faltar à escola se não estivesse doente, era o que ela me costumava dizer. “hoje não vais à escola, anda cá”. explicou-me várias coisas. coisas de mais. estava muito emocionada, demasiado emocionada para se fazer entender. quase entrei em pânico. entrei em pânico. ela conta-me que vomitei, mas disso já não me lembro. ainda uma criança, a noite e eu. o meu pai não olhou para mim, mas disse “espero que não venham cá antes de me vestir”. ainda hoje não percebo porque não queria o meu pai ser encontrado em cuecas na noite de 24 para 25 de abril de 1974.

cena 5

nas duas horas seguintes a minha mãe queimou centenas de papeis na casa de banho. às 5.30 da manhã bateram à porta. o meu pai lá sabia, já vestido abriu a porta. era um tipo fardado. a minha mãe dizia-me que se algum dia batessem à porta durante a noite eu me fosse esconder no gavetão da cama. quando o tipo fardado bateu à porta eu fugi, como pude, tropecei nos livros, tropecei no cheiro a fogo vindo da casa de banho, enterrei-me no pequeno caixão de madeira da minha cama. o cão ficou a ganir do lado de fora. estúpido esconderijo para uma criança com um cão em casa. mas não me atrevi a sair de lá. a minha mãe tinha dito.
quando saí de lá já o meu pai não estava em casa. a minha mãe tinha ido resgatar o puto denunciado pelo cão. só voltei a ver o meu pai uns quinze dias depois.

cena 6

desde do dia do meu nascimento que a minha cama servia para esconder uns pequenos jornais em papel bíblia. umas quantas folhas de papel, ocultadas entre o lençol e o colchão. nessa madrugada a minha mãe desatou a queimar avantes, os papeis bíblia. pela primeira vez pediu-me ajuda. senti-me muito orgulhoso por poder ser útil. pelo menos era uma esperança de que não iria ficar sozinho, ou recambiado para a minha avó, o que aliás acabou por acontecer, mas só lá para as nove da manhã.

cena 7

a vizinha de baixo veio reclamar do cheiro, batia na porta aos pontapés. da conversa da minha mãe com a vizinha só retive uns “ó minha senhora vá à merda”. achei engraçado que a minha mãe continuasse a tratar a senhora por você ao mesmo tempo que a mandava à merda. foi extraordinário ouvir a minha mãe a mandar à merda uma vizinha a meio da noite, à porta da rua, ali mesmo, onde nunca se podia falar, nem alto nem baixo nem nada, só no elevador se podiam mover os lábios.

cena 8

seguiu-se um silencio assustador. a minha mãe sentada na sala, fumava olhando o tecto. eu vestido para sair agarrava a pequena mala da escola, sentei-me à mesa de jantar, junto ao rádio, agora desligado. a minha mãe interrompeu o silencio e voltou a conversar comigo. sentou-me no colo, abraçou-me e despejou uma quantidade de explicações. o facto é que tinha de ir para casa da minha avó. “não tenhas medo, é bom o que está a acontecer, a mãe depois explica-te tudo”.

cena 9

quando íamos a sair tocou outra vez o telefone. desta vez a minha mãe passou-mo:

- olha, vai para casa da avó como a mãe diz, logo à noite vou lá ver-te. prometo que vou. já não vou para guerra, já ninguém vai!
- mas ias para a guerra?
- sim.
- qual guerra?
- eu depois explico-te. o que interessa é que a partir de hoje já nada vai ser igual. é o dia mais feliz das nossas vidas!
- porquê?
- …
- vais mesmo ver-me a casa da avó?
- vou, prometo.

não chegou a ir. mas foi bom, tinha ouvido a voz do meu irmão, ele estava feliz. no fim dessa madrugada toda a gente parecia feliz. no fim dessa madrugada tivemos que nascer, que renascer, que reaprender. eu por mim nunca mais fiz outra coisa. levei o rádio philips, ainda o tenho. já não pia. já pouco falo com o meu irmão e a revolução… a revolução ficou congelada naquela sala, num país distante, entre cheiro a papeis queimados e cera no chão do corredor.

Há horas de sorte, 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

do "causa nossa":

"Bem-vindo LFB
Luís Filipe Borges é tudo menos um desconhecido no “Causa Nossa”. Colaborou no seu nascimento, suscitou uma nota de lamento e desafio do Luís Osório, já publicou aqui um belo post como convidado. Agora ele passa a integrar de pleno direito o nosso blogue.
Para nós, representa um notável “reforço de inverno” a entrada deste jovem açoriano, com um curso de Direito trocado em boa hora pelo jornalismo, pela poesia, pelo teatro, pela rádio, pela televisão, pelo cinema, pela ópera e também pela blogosfera (co-fundador do “Desejo Casar”), entre várias outras paixões por onde tem prodigalizado o seu talento (associado das “Produções Fictícias”, colaborador do “Inimigo público”, etc.).
Confessa que sonha ser pai e realizar uma grande metragem. Entretanto, aqui o temos a partilhar da nossa causa. Bem-vindo!

Os fundadores do CN"

sábado, fevereiro 07, 2004

DOL-U-RON Forte - 4 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

não tenho janelas em casa
mas se tivesse janelas em casa
não seriam para ver pores-de-sol, nem amanheceres tranquilos e bucólicos
tão pouco para deixar entrar o ar da manhã – esse resto da madrugada

quero lá saber das manhãs que nascem
ou dos odores dos pomares
ou das lembranças do perfume dos morangos
ou da memória do cheiro a pó de arroz nas mãos da velha
ou das músicas da rádio
ou dos animais de estimação
ou das camas em que dormi

não tenho direito a essas coisas das pessoas que vivem
nem sequer direito a janelas – que se as tivesse não seriam para alimentar o sonho
de as abrir e respirar

decidi
não querer saber das coisas a que não tenho direito,
dos beijos
das vidas passadas
das vidas futuras cheias de banhos no mar
e algas
e esplanadas e cores de rebuçado a derreter

estou aqui e tenho uma porta
uma porta por onde se entra e sai – uma boa porta
estou aqui e tenho cigarros e a dor da culpa de todos os sofrimentos
e o medo de perder a culpa – coisa minha que conheço – e
a culpa de ter medo

janelas… bach… às vezes acontecem, mas é tão raro
janelas e fresco e noites azuis… bach
a mim?
conseguir chegar à casa de banho já é uma bênção
que agradeço, penitente, todos os segundos
divina graça essa a de ter tempo para chegar ao outro lado
da sala, mesmo tropeçando na cama, e não me sujar todo

também tenho recebido a dádiva do banho

isto para dizer
que não me queixo
que não tenho porque me queixar

apenas constato
o facto
nem triste nem contente
de que não tenho janelas em casa
nem luz do dia
nem ar fresco da manhã
nem vistas sobre um mar qualquer, mesmo de pedra – évora
nem noites de verão com mosquitos
nem horas vagas vendo carros ao fundo, e donos de casa com cães a passear

não tenho
é um facto
e é só

obrigado


(hino)

sexta-feira, fevereiro 06, 2004

HORA DO DIABO 65 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

cena 1 - para f.
todas as madrugadas podiam ser assim. silenciosas, azuis, transparentes, com vozes de rádio ao fundo, sons suaves de carros a passar, luzes douradas da rua a entrarem-nos pela janela.

as noites podiam acabar mais cedo e os dias nascerem mais tarde. todas as madrugadas poderiam ser assim e se fossem, seríamos mais doces, teríamos asas.

cena 2
um dia a rádio voltará a ter programas de rádio.
por agora temos que esperar.
um dia a inteligência voltará à rádio.
um dia a inteligência voltará.
por agora, podemos olhar, aproveitar a pausa. sonhar. criar os momentos de som que vão nascer, um dia, na rádio.

para todos os seres que precisam da telefonia-sem-fios, duas pessoas generosas deitaram mãos à vida e não cederam ao desespero dos silêncios impostos. cristina fernandes e mário filipe pires. para todos os seres que respiraram a vida nas emissões do último programa de rádio da rádio portuguesa – intima fracção de francisco amaral – o if no ar, ideias para a continuidade do intima fracção, é uma ilha de aventuras musicais, um mar de transparências etéricas, um reduto de desejos, sentidos, sensações, voos.

cena 3
na almirante reis, em lisboa, em frente à velha sede de um partido que um dia aconteceu, uma senhora enrola-se como um bicho-de-conta para pedir esmola. é uma senhora idosa, magrinha, sempre de olhos fechados. imóvel. insonora. quase, quase invisível. as moedas acumulam-se numa pacote de bolachas. mulher tão frágil, tão rocha.

quinta-feira, fevereiro 05, 2004

Antes e Depois 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

o novo eduardo prado coelho clique aqui

já todos tínhamos reparado no renovação do visual do eduardo prado coelho. o novo corte do cabelo branco, mais elegante, a nova barba de três dias, a ligeira perda de peso, apenas para dar um toque no cinto, nada que altere o carisma. os óculos mais finos. coisa com classe, subtil, só para os entendidos e amigos. mas nunca pensei que ele viesse a alterar essa sua atitude fashion de forma tão radical.



quando hoje abri o "público", e dei com o seu “fio do horizonte”, fiquei estupefacto. o epc, está mesmo jovem! jovem a sério. está um puto pá, um chavalo. coisa de trintas e tais. assim, do número de ontem para o número de hoje. mas onde é que o gajo fez aquilo? como é que conseguiu? agora o epc vai ter o savoir-fair dos sessenta e tal com a aparência dos trintas? não é justo, é uma concorrência desleal. não quero viver num sítio onde os homens de sessenta e tal anos podem ter looks de trinta. é que assim não temos hipóteses. portugal vai ficar ainda mais pequeno. agora em cada dez mulheres , oito vão apaixonar-se pelo epc. tendo em conta que as outras duas se vão apixonar pelo pedro santana lopes – essas também não interessam nem ao próprio menino jesus – como é que vamos fazer?



agora que falo nisto, ocorre-me a hipótese remota de ter sido um engano de paginação. Oxalá!

(também pode ser uma fotografia antiga do epc… não está tudo perdido)

HORA DA FÉNIX 57 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

"A minha vida não está atrás de mim
nem à frente
nem agora
Está cá dentro."
Jaques Prévert

Banco de Urgências 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

"As Produções Fictícias estão a trabalhar em mais uma proposta teatral. URGÊNCIAS é o nome de guerra deste projecto que pretende ser um espaço de criação de espectáculos teatrais, apostando numa dramaturgia contemporânea e na reflexão sobre o teatro dos nossos dias.
Para já, reuniu-se uma equipa de criativos e colaboradores das Produções Fictícias – Nuno Costa Santos, Luís Filipe Borges, Filipe Homem Fonseca, Pedro Mexia, Pedro Rosa Mendes, João Quadros e Susana Romana – a quem foi lançado o desafio para a escrita de textos teatrais de curta duração sob o mote: O que tens de urgente para dizer? A partir desses textos e após um período de discussão e ensaio com um grupo de actores, serão criados dois espectáculos: Urgências I e Urgências II, a exibir em períodos diferentes de 2004.
Tiago Rodrigues e Nuno Artur Silva asseguram a direcção geral do projecto.
URGÊNCIAS é um projecto que assenta na ideia de fazer do teatro um espaço onde se debate e revela tudo o que é urgente dizer, fazer, ouvir e ver… aqui e agora."


HORA DO DIABO 64 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

do BARNABÉ, sem mais palavras:

Que é feito da direita?

"A direita desapareceu da blogosfera. O Lomba está há semanas encalhado em clichés. O Mexia ainda não digeriu o luto. O magazine cultural "Abrupto", dirigido por um professor de Liceu bem comportado, está agora entre São Bernardo e Camus. Assim não vale. Isto agora é tudo nosso? Já estamos em tal estado, que só nos resta discutir entre nós. Daqui a pouco estamos a matar-nos por causa da Guerra Civil de Espanha. Ou pior, em desespero, caimos na tentação de discutir com o Liberdade de Expressão e com as suas receitas monocórdicas anunciadas antecipadamente por planos quinquenais. Ou com o Valete Fratres, que só fazia links sem tradução, e agora lhe deu para ser cabotino por conta própria. Salvem-nos dos debates internos da esquerda e dos confrontos com o refugo da direita. Volta, Coluna, estás perdoada"

quarta-feira, fevereiro 04, 2004

DOL-U-RON Forte - 3 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

ao encontro dos limões fumados

guardo, religiosamente, maços de cigarros vazios
tenho armazenados milhares de pacotes amarelos
vinte e quatro anos em maços aninhados nos armários da cozinha
quantos cigarros fumei?
milhões? é exagero? milhões é muito?
milhares?
não
foram milhões
porque são milhares de maços
taras perdidas, aos milhares, nos armários da cozinha

os armários de cozinha são para guardar coisas de cozinha
mas
eu
não tenho
espaço nos armários da cozinha para guardar mais nada
por
causa
da
memória armazenada
dos milhões de
cigarros do meu passado

é dia três de fevereiro – antes
de sair de casa
olho para a comunidade amarela dos armários
e sinto uma poderosa vontade de fumar.

(hino dol-u-ron forte)


terça-feira, fevereiro 03, 2004

ÚLTIMA HORA! 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

comunicado à nação:

tendo em consideração a notícia de que alberto joão jardim pode vir a mudar-se para o continente para assumir a presidência da assembleia da republica; propomos que se desenvolva o seguinte projecto-lei:

caso o senhor alberto joão jardim se mude para o continente português (nada temos a opor que se mude para qualquer outro continente):

1. a assembleia da república mudar-se-á automaticamente para a madeira.
2. a mais alta magistratura da nação passará a ser ocupada por um comité de salvação nacional.
3. caso a.j.j. se mantenha no continente nacional, deverá ser decretada a distribuição gratuita de vacinas contra a raiva. os núcleos da resistência assumirão a responsabilidade de recrutar os enfermeiros necessários para responder às necessidades.
4. portugal continental deverá passar a designar-se por: região de regime especial em situação de calamidade pública.
5. a actual região autónoma da madeira deverá passar a designar-se: madeira lorosae.
6. sugere-se que a primeira medida do c.s.n. seja o envio de cartas anónimas ao juiz rui teixeira, ou, no caso do juiz fugir para o ginásio, para o procurador joão guerra, a fim de que possam ser anexadas ao processo da casa pia e, desta forma, divulgadas à comunicação social internacional o mais rapidamente possível.
7. as cartas devem conter a seguinte informação: “o jardim tem um sadham escondido na pança”. esperamos que a agência noticiosa do aparelho judicial funcione com a habitual competência e que bush tome as atitudes que considere mais convenientes.
8. o c.s.n. deverá, apesar da tragédia que assola o continente, saudar a população libertada da madeira e convidar o sr. ramos horta a habitar um chalé no porto santo. esta media serve apenas para mostrar solidariedade com timor e dar esperança ao povo português no exílio, como recompensa, serão oferecidos a ramos horta três mil laços para o pescoço, sendo 50 assinados e numerados por batista-bastos, e catorze por miguel esteves cardoso. será ainda cedido ao prémio nobel da paz, um pc (personal computer ou funcionário do partido comunista, à escolha), para tratamento de dados e processamento de texto e meia hora de internet (56k por dial-up) por dia.
9. o diário da república deverá ser substituído por outro órgão (de preferência doado por um jovem sem doenças venéreas), sob o título distintivo “a verdade”. para dirigir o novo órgão de comunicação social do estado, deverá ser convidado o cantor brasileiro lenine. caso o brasileiro não possa assumir o cargo devido à sua anorexia nervosa (pudera com esse nome), será convidado o filho mais novo de lennon. embora o nome não ser tão fashion como o de lenine, tem a mais valia de parecer chinês e contar com património familiar de relevo.
10. estes decretos entrarão em vigor assim que a.j.j. entrar a bordo do avião com destino a lisboa.

ps (partido que manterá uma célula armada, comandada a partir de argel por manuel alegre, a quem será assegurada assistência na doença pelo sr. francisco assis) – caso o avião que transporta a.j.j. se venha a despenhar em camarate, estão já asseguradas indemnizações às famílias das vitimas dos moradores da permanentemente fustigada freguesia.

atenção:

pede-se a todos os dirigentes do c.s.n. que mantenham o poder afastado de otelo saraiva de carvalho, senão daqui a vinte anos lá estamos todos outra vez a tentar tirar o gajo da prisão.

caso o tenente-coronel não se convença a bem, será oferecido ao militar de abril, um curso gratuito de actor e imitador de pavarotti, em cuba.

notas:
1.aos membros do c.s.n. será imposta a utilização de véu islâmico.
2.o blogue abrupto será imediatamente nacionalizado, passando a sua direcção a ser assumida por vital moreira.
3.francisco amaral será nomeado ministro da rádio no exílio, sendo a sua única tarefa voltar a pôr no aro programa “íntima fracção”.

tá dito!

Comentários 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Caros leitores do SAUDADES DE ANTERO:

a partir de hoje poderão deixar os vossos comentários clicando sobre o link "Comment" no fim de cada post.

FMG

segunda-feira, fevereiro 02, 2004

O Inimigo Público 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

“o inimigo público” é o único órgão de comunicação social verdadeiramente fiável da imprensa portuguesa. digo isto sem problemas de consciência.

desde que rui zink assumiu a provedoria dos leitores, “o inimigo publico” tornou-se um colo materno para todos os que têm olhos e podem ler em papel impresso. é que um leitor sofre muito, tem muitos problemas de estômago e de fígado e até, de tanto choro cara abaixo, muitos problemas de pele. fica muito salgada a cútis, depois de uma leitura concentrada. pior, o expresso, por exemplo, chega a cegar. há mesmo quem defenda que o avião onde seguiam o sr.carneiro e o sr. costa – os srs. ministros – caiu para esbarrar de trombas em camarate, não por atentado, não por falha técnica, mas devido a uma suicídio colectivo depois de uma sessão de leitura criativa, encenada a bordo para passar o tempo, por iniciativa do próprio sr. carneiro, que irreflectidamente propôs o “expresso” como material dramático. os pilotos foram os únicos que não leram, mas como ouviram deu no mesmo. agora com o nosso provedor, rui zink, tenho a certeza da impossibilidade de ali virem a serem publicados textos do marcelo rebelo de sousa, do pacheco pereira, do luís delgado, do miguel portas, da anabela mota ribeiro, do fernando rosas, do josé antónio saraiva, do lobo antunes, da laurinda alves, do mário bettencourt resendes, do… daquele pá, aquele que escreve no coiso… não tas a ver pá? esse pois. só há um problema com o “ip”, é que tem de se comprar o público para o ler e com isto não estamos livres do josé manuel fernandes.

além disso, no “ip” escrevem os melhores dramaturgistas do humor em portugal: a ficha tripla, nuno costa santos, luís filipe borges e tiago rodrigues. agora que o stand-up tragedy acabou, é um lugar privilegiado para os não perder d’olho.

as noticias do “ip” são verdadeiras. eles dizem que não que é por causa dos processos, mas todos sabemos que são aquelas as verdadeiras notícias do país e do mundo. só ali podemos encontrar o país real. a verdadeira história (o corrector do pc tinha-me mudado história para hóstia) da casa pia, do iraque, do maravilhoso e fraterno mundo do futebol, da vida privada da celeste cardona, dos filmes do paulo portas, das filhas dos ministros no ensino superior. à verdadeira história da vida sexual de joão bosco da mota amaral

agora que o lenine, o marx, o trotsky, o júlio pinto e o féher estão mortos, se um dia acabarem com o “ip”, como vamos saber o que se passa? já imaginaram se (longe vá o agouro) voltamos a ter que ler a visão? a visão, que o melhor que tem é o pequeno formato que se adapta muito bem a qualquer casa de banho em momentos de concentração.

não devemos esquecer que é no “ip” que são publicados os cartoons do mais desengraçado humorista português, nuno markl. tão desengraçado que é das poucas pessoas com quem conseguimos rir. desde o fim da “filosofia de ponta” que não eram postas à reflexão popular as questões que verdadeiramente dizem respeito ao quotidiano. “há vida em markl” é o espelho das nossas ansiedades, das razões da nossa impotência. é preciso compreender que é pelo facto de o nuno markl não saber o que há de fazer para ter graça, que tem graça. porque assim ele tem que recorrer aos dramas da alma nacional. aos dilemas dos portugueses. aos seus dilemas que são os dilemas de todos nós, povo português.

estou em crer que a vida não nos iria pregar a partida de termos que voltar à impressa feita por jornalistas. já que a vida se tornou nesta amalgama de bandalheiras desumanas, pois que os jornais passem a ser feitos por argumentistas, escritores, filósofos, artistas plásticos, gráficos. enfim gente inteligente. a gente que pode afinal salvar esta coisa terrestre a que chamamos planeta.







Para o Luís Carmelo 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

“Ah, como é diferente o amor à camisola” – salmo de Júlio Dantas.
(das antas!)


para o luís carmelo, ainda sobre o seu post, reclamando o fundamento genético do seu amor ao futebol e ao benfica. um abraço do frederico

intectuais que escondem o vosso secreto amor ao pé-na-bola, uni-vos!


Ode ao Futebol

Rectângulo verde
Meio de sombra
Meio de sol
Vinte e dois em cuecas
Jogando futebol
Correndo
Saltando
Ao som de um apito
Um homem magrito
Também em cuecas
E mais dois carecas
Com uma bandeira
De cá para lá
De lá para cá

Bola ao centro
Bola fora
Fora o árbitro

E a multidão
Lá do peão
Gritava
Berrava
Gesticulava
E a bola coitada
Rolava no verde
Rolava no pé
De cabeça em cabeça
A bola não perde
Um minuto sequer
E o zumbido no ar
Como um bezouro
Toda redonda
Toda bonita
Vestida de couro

O árbitro corre
O árbitro apita
O público grita
Bola nas redes

Laranjadas
Pirolitos
Asneiras
Palavrões
Damas frenéticas
Gordas
Esqueléticas
Esganadiças aos gritos
Todas à uma
Todas ao um
Ao árbitro roubam o apito
Entra a polícia
Os cavalos a correr
Os senhores a esconder
Uma cabeça aqui
Um pé acolá
Ancas
Coxas
Pernas

Cabeças no chão
Cabeças de cavalo
Cavalos sem cabeça
Com os pés no ar
Fez-se em montam
A multidão.

E uma dama excitada
Que era casada
Com um marido
Distraído
No meio da bancada
Que estava à cunha
Tirou-lhe um olho
Com a própria unha!
Ânimos ao alto!...
E no fim
Perdeu-se o campeonato!
Tóssan
(que apesar de não ter gostado de futebol, foi – a par com mário henrique leiria – dos maiores humoristas que esta terra teve)

domingo, fevereiro 01, 2004

SAUDADES DE ANTERO 2 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Saudades de Antero 2
Roteiros - Évora-Lisboa-Évora

A HORA DA FÉNIX 56 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

de um e-mail:

A Tempestade

"Contra o rochedo do paredão,
já eram prenúncio as ondas batendo,
enquanto sobre elas o vento gemia,
descendo da montanha,
silvando entre os eirados, sobre os socalcos ventosos;
o chiar sibilante dos fios de electricidade, o restolhar e esvoaçar das folhas,
a pequena lâmpada baloiçando e batendo dentro do candeeiro da rua.
Para onde foi toda a gente?
Vê-se na montanha uma luz.
Ao longo do molhe a maré começava a crescer
e as ondas, ainda não muito altas, mas quase,
vinham cada vez mais perto umas das outras;
cresce do mar uma densa névoa de chuva,
fazendo buracos na areia como se disparasse chumbo grosso,
o vento do mar e o vento da montanha em contenda,
destroçando a espuma das ondas e lançando-a na escuridão.
É tempo de correr para casa!
E a camisola suja de uma criança sai de rompante de uma rua e toma o caminho da subida;
um gato sai a correr de ao pé da janela, tal como nós,
entre as árvores já brancas um pouco acima de Santa Lúcia.
Onde a porta mais pesada volta a ser aberta
e é mais fácil o nosso respirar.
Depois, o ribombar de um trovão, e logo a chuva escura a cair sobre tudo,sobre
os terraços das casas, rajadas fustigando
as paredes, as portadas das janelas, obriga
o último observador a recolher,os jogadores
a concentrar-se mais nas cartas, as suas Lachryma Christi.
Vamo-nos chegando à cama, ao colchão de palha.
Ficamos à espera e à escuta.
A tempestade parece acalmar mas logo redobra,
quase faz inclinar as árvores até ao chão,
arranca as últimas e já mirradas laranjas do pomar,
destrói os frágeis cravos.
Uma aranha apressa-se a descer de uma lâmpada que baloiça,
corre sobre a colcha e esconde-se na armação da cama.
A lâmpada acende e apaga, cada vez mais fraca.
a água ruge na cisterna.
Nós ficamos muito juntos, agarrados à almofada,
respirando profundamente, à espera
que a última grande onda galgue o paredão,
que o estrondo seco das altas vagas se abata sobre a praia,
que se oiça o estremecimento súbito do imenso rochedo a despenhar-se
e o furacão devolva aos pinheiros ainda vivos as suas farpas"

theodore roethke

HORA DO DIABO - 63 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

há uma casa para alugar mesmo em frente à minha. pelo menos pensava que sim, que estava vazia. fizeram-se obras, meses de obras e poeira, vieram fiscais e fiscais e fiscais até que se deu-se a coisa como pronta para alugar. esta noite acordei com uma violenta gritaria misturada com o barulho de pontapés numa porta. uma gritaria, etílica, histérica, e bumba, bumba, bumba numa porta.

levantei-me e espreitei pela janela. estavam uns cinco marmanjos a sovar a porta debaixo de uma chuva intensa. pensei que a casa tinha sido, entretanto, alugada e que os inquilinos, na excitação da bebedeira, tivessem perdido as chaves.

mas hoje a casa continua tão trancada como antes, tão silenciosa e reclusa da sua própria solidão que me pus a duvidar se realmente aquilo se tinha passado.

tenho uma vizinha que todas as manhãs desperta a rua com insultos à vida, ao marido, aos gatos, a tudo… a ela, enquanto lava e esfrega e encera a porta da sua casa. dá fé de tudo. sabe de tudo e não se inibe nada em pôr as mãos nas ancas e desancar as ancas dos outros pelos mais insignificantes motivos. esperava que ela confirmasse a história nos seus comentários matinais com as comadres e com isso recuperasse a minha sanidade. nada, hoje nem saiu de casa. estive quase para lhe ir bater à porta e perguntar se a senhora hoje não vinha bradar aos céus por causa do mijo dos gatos.

a chuva continua, a rua está deserta, a vizinha desaparecida e a casa… a casa, talvez já lá nem esteja.

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