sábado, fevereiro 18, 2006
tratado secreto do teatro # 8
# 8 – cena oitava
a – tens de perceber. aqui não estamos sós. nunca estivemos. é por isso que chegámos a este beco. mas agora é diferente e a única saída é entregarmo-nos a esta luz desconhecida que nos está a abençoar. eu também tenho medo. mas o medo não me paralisará, nunca. deixa-me limpar-te. deixa-me tirar-te daí. lavo-te o corpo com beijos, lavo-te com água do meu corpo.
b – não volto a lavar-me. nem mesmo com líquido que dantes tanto desejava. já te disse que fico aqui. não há diferença entre o que sou agora e a sujidade que me envolve. talvez tu não estejas só. agora, dantes. talvez sintas essa bênção… talvez seja real… não duvido de nada, quero lá saber. mas não me estendas mais esperanças. eu estou sozinho. e é sozinho que continuarei até ao final.
a – queres que te diga como está o rio? como são os barcos que estão a zarpar? queres que imagine para ti os marinheiros que os ocupam?
b – se quiseres?
a – … tu queres?
b – SIM!. é isso que queres que te diga não é?
a – é.
b – então fala, do rio, dos barcos, dos marinheiros, do vento, das amarras, do cais…
a – …o rio está branco. a lua já se reflecte na água. só há um barco. um pequeno veleiro… todos os marinheiros têm camisas brancas e sem mangas. estão sem calças puxando as cordas das velas. abraçam-se num corpo único. numa força única. as velas sobem com o vigor poderoso dos braços daqueles homens. têm as pernas entrelaçadas. os pés descalços, as vozes roucas. queres ouvir como eles gritam por ti? eles desejam-te. chamam-te para o navio. queres ir? gostas que eles te desejem?
b – a lua já se vê?
a – já. disse-te que o rio está branco com o seu reflexo.
b – então as máquinas não vêm. desistiram. o prédio não será demolido hoje. estamos condenados à noite. de que me serve saber do desejo dos marinheiros se estou aqui preso, a ti, não é a tua imaginação que me vai soltar nem dar asas. tu programaste tudo. tu sabes a maneira como me condenaste…
a – eu não te condenei. estou a salvar-te. a salvar-nos. a salvar-nos deste terror que tem sido a vida. olha o meu corpo. vê como é aparentemente jovem mas em verdade apodrecido. repara nos meus olhos. são foscos. vidrados. os cabelos sem forma. vê-me por dentro. esquece a minha aparência. até agora só foste capaz de ver os meus olhos aparentes, os cabelos aparentes, o corpo aparente. por uma vez que seja, faz um esforço e vê-me por dentro e ver-te-às a ti. contigo passa-se o mesmo. não é a sujidade da tua merda e do teu mijo que importa. estás enganado. pensas que mudas alguma coisa com isso. imbecil. o que é sórdido é a podridão que tens dentro. aprende a ver à transparência e compreenderás tudo: a razão porque estamos aqui. porque temos que estar aqui. a razão porque «alguém» veio em nosso auxilio. a razão porque o cheiro a rato é agradável, é perfume. tens de sair desse estado de choque em que ficaste depois de te ter gravado a pele. tens que desprender o corpo. voltar a estar vulnerável. só assim verás a luz laranja que eu vi e a figura violeta que me acompanhava enquanto te pincelava com a língua…
b – figura violeta…
a … as máquinas já não vêm. é um facto. teremos que enfrentar a noite. é um facto. e tu sabes o que isso significa. teria sido mais fácil se eles não tivessem falhado. agora está tudo nas nossas mãos. nas tuas principalmente. é por isso que tens de te preparar. podes ficar todo sujo por fora. é indiferente. não podes é ficar sujo por dentro. e tens de perceber que já não vais a tempo de destruir o corpo contra a parede, nem de expelir as vísceras. comeria o teu ódio ingerindo o teu coração sem hesitar se isso te ajudasse. mas é tarde demais. prepara-te. deixa-me ajudar-te a estares preparado. se não quiseres que te lave por fora eu não lavo, mas deixa-me lavar-te por dentro. deixa-me falar-te dos marinheiros.
a – tens de perceber. aqui não estamos sós. nunca estivemos. é por isso que chegámos a este beco. mas agora é diferente e a única saída é entregarmo-nos a esta luz desconhecida que nos está a abençoar. eu também tenho medo. mas o medo não me paralisará, nunca. deixa-me limpar-te. deixa-me tirar-te daí. lavo-te o corpo com beijos, lavo-te com água do meu corpo.
b – não volto a lavar-me. nem mesmo com líquido que dantes tanto desejava. já te disse que fico aqui. não há diferença entre o que sou agora e a sujidade que me envolve. talvez tu não estejas só. agora, dantes. talvez sintas essa bênção… talvez seja real… não duvido de nada, quero lá saber. mas não me estendas mais esperanças. eu estou sozinho. e é sozinho que continuarei até ao final.
a – queres que te diga como está o rio? como são os barcos que estão a zarpar? queres que imagine para ti os marinheiros que os ocupam?
b – se quiseres?
a – … tu queres?
b – SIM!. é isso que queres que te diga não é?
a – é.
b – então fala, do rio, dos barcos, dos marinheiros, do vento, das amarras, do cais…
a – …o rio está branco. a lua já se reflecte na água. só há um barco. um pequeno veleiro… todos os marinheiros têm camisas brancas e sem mangas. estão sem calças puxando as cordas das velas. abraçam-se num corpo único. numa força única. as velas sobem com o vigor poderoso dos braços daqueles homens. têm as pernas entrelaçadas. os pés descalços, as vozes roucas. queres ouvir como eles gritam por ti? eles desejam-te. chamam-te para o navio. queres ir? gostas que eles te desejem?
b – a lua já se vê?
a – já. disse-te que o rio está branco com o seu reflexo.
b – então as máquinas não vêm. desistiram. o prédio não será demolido hoje. estamos condenados à noite. de que me serve saber do desejo dos marinheiros se estou aqui preso, a ti, não é a tua imaginação que me vai soltar nem dar asas. tu programaste tudo. tu sabes a maneira como me condenaste…
a – eu não te condenei. estou a salvar-te. a salvar-nos. a salvar-nos deste terror que tem sido a vida. olha o meu corpo. vê como é aparentemente jovem mas em verdade apodrecido. repara nos meus olhos. são foscos. vidrados. os cabelos sem forma. vê-me por dentro. esquece a minha aparência. até agora só foste capaz de ver os meus olhos aparentes, os cabelos aparentes, o corpo aparente. por uma vez que seja, faz um esforço e vê-me por dentro e ver-te-às a ti. contigo passa-se o mesmo. não é a sujidade da tua merda e do teu mijo que importa. estás enganado. pensas que mudas alguma coisa com isso. imbecil. o que é sórdido é a podridão que tens dentro. aprende a ver à transparência e compreenderás tudo: a razão porque estamos aqui. porque temos que estar aqui. a razão porque «alguém» veio em nosso auxilio. a razão porque o cheiro a rato é agradável, é perfume. tens de sair desse estado de choque em que ficaste depois de te ter gravado a pele. tens que desprender o corpo. voltar a estar vulnerável. só assim verás a luz laranja que eu vi e a figura violeta que me acompanhava enquanto te pincelava com a língua…
b – figura violeta…
a … as máquinas já não vêm. é um facto. teremos que enfrentar a noite. é um facto. e tu sabes o que isso significa. teria sido mais fácil se eles não tivessem falhado. agora está tudo nas nossas mãos. nas tuas principalmente. é por isso que tens de te preparar. podes ficar todo sujo por fora. é indiferente. não podes é ficar sujo por dentro. e tens de perceber que já não vais a tempo de destruir o corpo contra a parede, nem de expelir as vísceras. comeria o teu ódio ingerindo o teu coração sem hesitar se isso te ajudasse. mas é tarde demais. prepara-te. deixa-me ajudar-te a estares preparado. se não quiseres que te lave por fora eu não lavo, mas deixa-me lavar-te por dentro. deixa-me falar-te dos marinheiros.