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sexta-feira, fevereiro 17, 2006

tratado secreto do teatro # 7 

# 7 – cena sétima

a – as máquinas já não vêm.
b – não me vou levantar daqui. não me quero levantar daqui. quero ficar agarrado aos meus joelhos. quero ficar dormente e ter dores. suar muito ou gelar. quero que os dedos das mãos de desarticulem com o esforço de agarrar as pernas. se essa entidade que tu dizes que existe, existe, e tem poder suficiente, que me venha tirar daqui. não bebo mais água desse garrafão imundo dos nossos lábios. não volto à casa de banho. é aqui que farei tudo. nesta posição. até perder o olhar, até perder o sangue. até perder toda a seiva que me corre nas veias, no cérebro… vou desfazer-me em líquidos, aqui, percebes. os ossos hão-de se quebrar. os dentes hão-de estalar. há-de chegar o limite. o espasmo final. usa tu a casa de banho, bebe a água que ainda resta no garrafão minha querida, bebe e inspira o cheiro a rato de que tanto gostas. quero ver as minhas vísceras espalhadas neste colchão. quero saber como são os meus rins. os meus pulmões. quero estar frente a frente com a merda do meu cérebro. quero isso tudo. e queria que comesses o meu coração. que lhe sentisses o amargo. há bocado menti-te. eu odeio. eu sei o que é odiar. e quanto olho para ti, aí meio escondida a espreitar à janela, é ódio que sinto. se comesses o meu coração agora saberias, saberias de saber e de sabor, o que é o ódio. vou ficar aqui agarrado às pernas. aqui agarrado às pernas. aqui agarrado às pernas… às pernas que tu tiveste. aqui agarrado a tudo o que tu tiveste: cabeça, boca, tronco, sexo, cu, mãos, pés, olhos, pensamento, palavras, pele. tiveste-me. e a merda é que ainda me tens mas o que te faz gozar é o suave odor a rato e o que te faz vibrar é a transcendente presença de um ser que se terá dado ao trabalho de vir habitar neste quarto, num prédio em demolição, só para te acompanhar…
a – …para nos acompanhar…
b – ó pá não me lixes. não és nada. ou és tudo. és sórdida. eu sou sórdido. isto que estamos a viver é sórdido. estes lençóis são sórdidos. até a merda que cagamos é sórdida e eu quero gritar e não consigo e quero estoirar o corpo de cansaço e não consigo. quero partir as costelas uma a uma para tu ouvires e saberes que o corpo que tiveste se está a rachar a acabar e nem sequer sei fazer isso por mais que me esmague contra esta parede.

és tudo. é evidente que «tu és tudo». pôr a hipótese de não seres nada é ainda mais ridículo do que pensar que posso rebentar de alegria neste poço de raiva e ódio e amor e desejo. coisas que tu já não sentes. olha bem para ti. desesperada à beira dessa janela a suplicar mentalmente para que as máquinas venham e o prédio comece a ser demolido: «por favor senhor, faz com que tudo corra como eu planeei, faz com que as máquinas venham a tempo e o prédio se reduza a entulho, por favor senhor.» vá, diz-me se não é isto que estás a pensar, se não é nisto que concentras o teu super-poder-do-pensamento? eu não saio daqui. desta posição. desta cama. deste choro que não consigo. desta vida emparedada que me deste. o meu coração há-de reluzir nestes lençóis. hei-de vomitá-lo e tu terás tanto medo dele que o virás comer só para que ele desapareça da tua vista e então estarei implacavelmente dentro de ti. irrigando o choro e o grito que agora não consigo.
a – será pior se as máquinas não vierem.

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