quarta-feira, fevereiro 15, 2006
tratado secreto do teatro # 4
# 4 – cena quarta
b – dentro de seis horas começam a demolir o prédio.
a – devem começar pelos andares de cima. pelo telhado. até chegarem ao nosso piso ainda devem levar algum tempo.
b – oito horas?
a – sei lá. é indiferente. acabarão por chegar. seis ou oito, é irrelevante. o tempo vai passar mais depressa do que imaginamos.
b – até agora o tempo tem passado muito devagar.
a – vai deixar de ser assim.
b – achas que antes de começarem vêm fazer outra inspecção de segurança para se certificarem de que não está cá ninguém?
a – acho que não. já fizeram quatro. ninguém nos descobriu. a casa está completamente vazia. só cá temos esta cama e o frigorifico velho. nem roupas temos.
b – …a manta, os lençóis… e aquelas roupas quentes que guardámos caso estivesse demasiado frio para estarmos sem roupa.
a – tudo isso já eles viram. é obvio que pensaram que tínhamos deixado essas coisas de propósito. ninguém sabe que ainda aqui estamos.
b – sabemos nós. é isso que é difícil de suportar.
a – podes fugir. eu não te impeço, ninguém te impede. deixou de haver impedimentos condições. deixámos de haver. nós. os outros. nós e os outros. foge.
b – já não há fuga. posso sair daqui pela porta da cave como tenho feito quando é preciso, mas tudo isto que aqui estamos a viver viria dentro de mim.
a – …preciso?… quando vais ter com o rapaz do barreiro?
b – não, quando vou ter contigo através do corpo do rapaz.
a – escreve qualquer coisa em mim.
b – não temos tintas…
a – tens a tua língua, tens a tua saliva, é uma tinta mais poderosa do que qualquer outra, apesar de ser invisível. mas se eu não perceber o desenho das letras enquanto a tua língua me caligrafa, promete-me que não me dirás o que escreveste. prometes?
b – prometo. mas tu reconhecerás todos os caracteres.
a – então escreve. eu fico quieta a olhar o tecto. não farei um movimento. quero sentir tudo. estarei completamente concentrada na ponta da tua língua e no lastro da tua saliva. agarra-me as mãos enquanto escreves. agarra-me para que me lembre sempre da possibilidade da imobilidade. será uma sessão de caligrafia zen. a tua língua, um largo pincel de bambu, o meu pescoço e peito e barriga e sexo e pernas e pés, uma imensa folha de papel de arroz.
b – assim farei.
a – já sabes o que vais escrever?
b – já.
a – …então?
b – fecha os olhos. deixa que me sinta livre.
a – eu fecho. mas não me toques com o resto do teu corpo. só as mãos. não quero sentir mais nada para além da tua língua-caligrafadora.
(b ajoelha-se na cama sobre o corpo de a de forma a que nenhuma parte de si lhe toque. b tem a língua húmida e pontiaguda. começa a sua escrita pelo pescoço e vai descendo, escrevendo como uma criança que aprende a desenhar as primeiras letras. detêm-se no peito e depois na barriga. frases mais longas letras de maior dimensão. no sexo, só um pequeno sinal, talvez um ponto. a faz pequenos movimentos que logo reprime. b sem lhe largar as mãos, continua. nas pernas a caligrafia torna-se mais difícil. b está extenuado. a não diz uma palavra. está realmente concentrada. b não diz uma palavra. está demasiado nervoso. sabe a responsabilidade que assumiu. nada poderá apagar aquelas palavras. inesperadamente, não tem medo. sabe exactamente o que quer deixar gravado no corpo de a. tem perfeita noção de que a está a reconhecer a escrita da sua língua. termina beijando-lhe os pés. podia ter-lhe dito mas seria desnecessário. a conhece aquele sinal desde sempre, o sinal do final, o beijo nos pés. b solta-lhe as mãos com ternura. a solta os olhos e sem uma pequena pausa começa a recitar as palavras pirogravadas. o texto de michaux que há tantos anos b lhe escrevera no verso de um bilhete de cinema. chora. chora devagar. a descobre que ainda tem lágrimas, ainda que suaves e controladas por uma estranha força exterior. a sente a presença de algo fora dela que a conduz.)
a – «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
b – dentro de seis horas começam a demolir o prédio.
a – devem começar pelos andares de cima. pelo telhado. até chegarem ao nosso piso ainda devem levar algum tempo.
b – oito horas?
a – sei lá. é indiferente. acabarão por chegar. seis ou oito, é irrelevante. o tempo vai passar mais depressa do que imaginamos.
b – até agora o tempo tem passado muito devagar.
a – vai deixar de ser assim.
b – achas que antes de começarem vêm fazer outra inspecção de segurança para se certificarem de que não está cá ninguém?
a – acho que não. já fizeram quatro. ninguém nos descobriu. a casa está completamente vazia. só cá temos esta cama e o frigorifico velho. nem roupas temos.
b – …a manta, os lençóis… e aquelas roupas quentes que guardámos caso estivesse demasiado frio para estarmos sem roupa.
a – tudo isso já eles viram. é obvio que pensaram que tínhamos deixado essas coisas de propósito. ninguém sabe que ainda aqui estamos.
b – sabemos nós. é isso que é difícil de suportar.
a – podes fugir. eu não te impeço, ninguém te impede. deixou de haver impedimentos condições. deixámos de haver. nós. os outros. nós e os outros. foge.
b – já não há fuga. posso sair daqui pela porta da cave como tenho feito quando é preciso, mas tudo isto que aqui estamos a viver viria dentro de mim.
a – …preciso?… quando vais ter com o rapaz do barreiro?
b – não, quando vou ter contigo através do corpo do rapaz.
a – escreve qualquer coisa em mim.
b – não temos tintas…
a – tens a tua língua, tens a tua saliva, é uma tinta mais poderosa do que qualquer outra, apesar de ser invisível. mas se eu não perceber o desenho das letras enquanto a tua língua me caligrafa, promete-me que não me dirás o que escreveste. prometes?
b – prometo. mas tu reconhecerás todos os caracteres.
a – então escreve. eu fico quieta a olhar o tecto. não farei um movimento. quero sentir tudo. estarei completamente concentrada na ponta da tua língua e no lastro da tua saliva. agarra-me as mãos enquanto escreves. agarra-me para que me lembre sempre da possibilidade da imobilidade. será uma sessão de caligrafia zen. a tua língua, um largo pincel de bambu, o meu pescoço e peito e barriga e sexo e pernas e pés, uma imensa folha de papel de arroz.
b – assim farei.
a – já sabes o que vais escrever?
b – já.
a – …então?
b – fecha os olhos. deixa que me sinta livre.
a – eu fecho. mas não me toques com o resto do teu corpo. só as mãos. não quero sentir mais nada para além da tua língua-caligrafadora.
(b ajoelha-se na cama sobre o corpo de a de forma a que nenhuma parte de si lhe toque. b tem a língua húmida e pontiaguda. começa a sua escrita pelo pescoço e vai descendo, escrevendo como uma criança que aprende a desenhar as primeiras letras. detêm-se no peito e depois na barriga. frases mais longas letras de maior dimensão. no sexo, só um pequeno sinal, talvez um ponto. a faz pequenos movimentos que logo reprime. b sem lhe largar as mãos, continua. nas pernas a caligrafia torna-se mais difícil. b está extenuado. a não diz uma palavra. está realmente concentrada. b não diz uma palavra. está demasiado nervoso. sabe a responsabilidade que assumiu. nada poderá apagar aquelas palavras. inesperadamente, não tem medo. sabe exactamente o que quer deixar gravado no corpo de a. tem perfeita noção de que a está a reconhecer a escrita da sua língua. termina beijando-lhe os pés. podia ter-lhe dito mas seria desnecessário. a conhece aquele sinal desde sempre, o sinal do final, o beijo nos pés. b solta-lhe as mãos com ternura. a solta os olhos e sem uma pequena pausa começa a recitar as palavras pirogravadas. o texto de michaux que há tantos anos b lhe escrevera no verso de um bilhete de cinema. chora. chora devagar. a descobre que ainda tem lágrimas, ainda que suaves e controladas por uma estranha força exterior. a sente a presença de algo fora dela que a conduz.)
a – «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»