domingo, fevereiro 19, 2006
tratado secreto do teatro # 10
# 10 – cena décima
(b, derrotado, dorme. a move o seu corpo sobre b. com o rosto acaricia-lhe as costas, as nádegas. sente b entre as coxas, no sexo. lentamente vai-se afastando do corpo dele e da cama. a caminha para a janela e fixa, já no escuro, a rua, as pessoas, o rio, a lua.)
a – não há retorno. basta olhar para estas pessoas na rua. estamos todos contaminados. o rio está contaminado. e nós… sei que estás a ouvir-me. deixa-te ficar aí, atrás de mim. basta-me ver o reflexo violeta do teu corpo no vidro da janela. já só conto cotigo para pôr fim a isto. ele vai vacilar. ama-me com demasiado ódio ou odeia-me com demasiado amor. se lhe dissesse para voltarmos para a rua, para a vida moribunda que tínhamos e ele iria sem uma hesitação. só conto contigo cavaleiro. tu percebes-me. como eu, tu sabes que é preciso fazer isto. vai ser tudo muito mais violento. mais duro. se as maquinas tivessem vindo… que raio, porque haviam elas de ter falhado. confirmei esta data dezenas de vezes… tu sentes o odorífero cheiro a rato? tu sentes, não sentes? foi o que ficou de humano nesta casa. ele não quer sentir. só te tenho a ti, cavaleiro violeta. cobre-me com a tua luz laranja. suga-me para dentro do teu raio violeta. apoia-me. tenho vontade de me voltar. mas não o quero fazer. vi-te de olhos cerrados enquanto lhe caligrafava as costas. nessa altura conduziste-me. sopraste-me as palavras certas. a minha língua funcionava como um pincel nas tuas mãos. se tinhas o rosto tapado é porque eu não devo ver o teu rosto. nem desejo ver o teu rosto. eu conheço-o. sei quem és. tu sabes que sei. conseguiste atingir o plano alto dos dois raios da magna via: laranja e violeta. meu querido sacerdote. hoje estás aqui e nem sequer te tinha invocado conscientemente. já quando éramos crianças sabíamos que este momento chegaria e agora que chegou tu não faltaste para me ajudar. foi para isso que vieste não foi? claro que foi. vês aquele homem, no automóvel ali em baixo? daqui a quarenta e cinco minutos vai ter um acidente, mas agora, neste exacto momento, quem o vê só será capaz de lhe reconhecer segurança e soberba e desprezo por tudo. até o automóvel é uma demonstração de desprezo pela existência. o telemóvel dele vai tocar, ele vai atender, vai responder com a brutalidade que lhe é habitual, vai descontrolar-se, o carro vai derrapar, bater no lancil, capotar. estará morto e nem sequer conseguirá perceber que já morreu. vês aquela senhora com a bata azul à porta da casa dos tecidos. não está a fazer nada. é uma mulher honesta. boa. sonha com a hora de apanhar o barco para o montijo e chegar a casa. tudo o que ela quer é chegar a casa e cair no sofá, ligar a televisão e desligar-se durante umas horas antes de se deitar. será a primeira a levar com o carro. também ela morrerá e também ela depois de morta não saberá que já morreu. estou exausta disto tudo. compreendes-me, não compreendes?
voz-off - «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
ITE MISSA EST.
fim da primeira parte
(b, derrotado, dorme. a move o seu corpo sobre b. com o rosto acaricia-lhe as costas, as nádegas. sente b entre as coxas, no sexo. lentamente vai-se afastando do corpo dele e da cama. a caminha para a janela e fixa, já no escuro, a rua, as pessoas, o rio, a lua.)
a – não há retorno. basta olhar para estas pessoas na rua. estamos todos contaminados. o rio está contaminado. e nós… sei que estás a ouvir-me. deixa-te ficar aí, atrás de mim. basta-me ver o reflexo violeta do teu corpo no vidro da janela. já só conto cotigo para pôr fim a isto. ele vai vacilar. ama-me com demasiado ódio ou odeia-me com demasiado amor. se lhe dissesse para voltarmos para a rua, para a vida moribunda que tínhamos e ele iria sem uma hesitação. só conto contigo cavaleiro. tu percebes-me. como eu, tu sabes que é preciso fazer isto. vai ser tudo muito mais violento. mais duro. se as maquinas tivessem vindo… que raio, porque haviam elas de ter falhado. confirmei esta data dezenas de vezes… tu sentes o odorífero cheiro a rato? tu sentes, não sentes? foi o que ficou de humano nesta casa. ele não quer sentir. só te tenho a ti, cavaleiro violeta. cobre-me com a tua luz laranja. suga-me para dentro do teu raio violeta. apoia-me. tenho vontade de me voltar. mas não o quero fazer. vi-te de olhos cerrados enquanto lhe caligrafava as costas. nessa altura conduziste-me. sopraste-me as palavras certas. a minha língua funcionava como um pincel nas tuas mãos. se tinhas o rosto tapado é porque eu não devo ver o teu rosto. nem desejo ver o teu rosto. eu conheço-o. sei quem és. tu sabes que sei. conseguiste atingir o plano alto dos dois raios da magna via: laranja e violeta. meu querido sacerdote. hoje estás aqui e nem sequer te tinha invocado conscientemente. já quando éramos crianças sabíamos que este momento chegaria e agora que chegou tu não faltaste para me ajudar. foi para isso que vieste não foi? claro que foi. vês aquele homem, no automóvel ali em baixo? daqui a quarenta e cinco minutos vai ter um acidente, mas agora, neste exacto momento, quem o vê só será capaz de lhe reconhecer segurança e soberba e desprezo por tudo. até o automóvel é uma demonstração de desprezo pela existência. o telemóvel dele vai tocar, ele vai atender, vai responder com a brutalidade que lhe é habitual, vai descontrolar-se, o carro vai derrapar, bater no lancil, capotar. estará morto e nem sequer conseguirá perceber que já morreu. vês aquela senhora com a bata azul à porta da casa dos tecidos. não está a fazer nada. é uma mulher honesta. boa. sonha com a hora de apanhar o barco para o montijo e chegar a casa. tudo o que ela quer é chegar a casa e cair no sofá, ligar a televisão e desligar-se durante umas horas antes de se deitar. será a primeira a levar com o carro. também ela morrerá e também ela depois de morta não saberá que já morreu. estou exausta disto tudo. compreendes-me, não compreendes?
voz-off - «Está deitada numa cama, de onde o sofrimento sobe até ao céu, até ao céu sem encontrar deus… de onde o sofrimento desce até ao fundo do inferno, até ao fundo do inferno sem encontrar demónio.»
ITE MISSA EST.
fim da primeira parte