quarta-feira, fevereiro 08, 2006
tratado secreto da cidade # 36
# 36 – vigésimo sexto dia – 36 de dezembro – évora
18h50
ao que parece vestiu um smoking para se suicidar naquele quarto de hotel em paris. já toda a gente conhece esta história. conhece? bem, deitou-se na cama vestido como se o suicídio fosse uma noite na ópera. envenenou-se. só deram por ele no dia seguinte, não tenho a certeza, enfim bastante tempo depois. na altura o homem que o encontrou descreveu o cadáver como uma verdadeira visão do inferno de dante. o veneno fez-lhe inchar de tal maneira o corpo que o smoking rebentou pelas costuras e do nariz e orelhas e boca saía uma espécie de líquido verde misturado com sangue. apesar disso, manteve a extrema dignidade dos poetas. calculo que a morte tenha sido muito dolorosa. só pode ter sido, para ter um resultado assim. mas a sua compostura manteve-se inalterada. já morto, com o corpo a explodir de veneno e desespero, continuava pronto para uma noite na ópera. em lisboa, o seu único amigo, escreveu num jornal: «morre cedo o que os deuses amam». hoje junto à fonte da praça vi um cão a esfrangalhar com dentes e patas um velho smoking que alguém deve ter deitado ao lixo. um smoking com lapelas de cetim e botões grandes e negros. algibeiras largas. parecia antigo pelo corte. o cão tinha dificuldade em o rasgar, obra de um antigo alfaiate na certa. na boca do cão o casaco parecia um corvo gigante, um pássaro sem dúvida. o cão brincou com o casaco até se cansar e deixou-o, só, junto ao granito das escadas da igreja. apesar de irremediavelmente destruído, mesmo rasgado, espalhado no chão, um smoking dificilmente perde a sua dignidade. já com a temperatura a descer, as pessoas começaram a fugir para os ares condicionados dos automóveis, para os aquecedores nos seus pombais. começaram a fugir. junto à escada da igreja, o smoking continuava dignamente preparado para uma noite de ópera. «morre cedo o que os deuses amam.»
18h50
ao que parece vestiu um smoking para se suicidar naquele quarto de hotel em paris. já toda a gente conhece esta história. conhece? bem, deitou-se na cama vestido como se o suicídio fosse uma noite na ópera. envenenou-se. só deram por ele no dia seguinte, não tenho a certeza, enfim bastante tempo depois. na altura o homem que o encontrou descreveu o cadáver como uma verdadeira visão do inferno de dante. o veneno fez-lhe inchar de tal maneira o corpo que o smoking rebentou pelas costuras e do nariz e orelhas e boca saía uma espécie de líquido verde misturado com sangue. apesar disso, manteve a extrema dignidade dos poetas. calculo que a morte tenha sido muito dolorosa. só pode ter sido, para ter um resultado assim. mas a sua compostura manteve-se inalterada. já morto, com o corpo a explodir de veneno e desespero, continuava pronto para uma noite na ópera. em lisboa, o seu único amigo, escreveu num jornal: «morre cedo o que os deuses amam». hoje junto à fonte da praça vi um cão a esfrangalhar com dentes e patas um velho smoking que alguém deve ter deitado ao lixo. um smoking com lapelas de cetim e botões grandes e negros. algibeiras largas. parecia antigo pelo corte. o cão tinha dificuldade em o rasgar, obra de um antigo alfaiate na certa. na boca do cão o casaco parecia um corvo gigante, um pássaro sem dúvida. o cão brincou com o casaco até se cansar e deixou-o, só, junto ao granito das escadas da igreja. apesar de irremediavelmente destruído, mesmo rasgado, espalhado no chão, um smoking dificilmente perde a sua dignidade. já com a temperatura a descer, as pessoas começaram a fugir para os ares condicionados dos automóveis, para os aquecedores nos seus pombais. começaram a fugir. junto à escada da igreja, o smoking continuava dignamente preparado para uma noite de ópera. «morre cedo o que os deuses amam.»