quinta-feira, fevereiro 09, 2006
tratado secreto da cidade # 37
# 37 – vigésimo sétimo dia – 37 de dezembro – évora
17h07
não é a cabeça que me repugna no animal. sei que é costume as pessoas se sentirem-se repugnadas pela cabeça dos abutres. por isso e por saberem que eles descarnam os mortos. mas a mim nada neles me repugna. sei o que ele espera, porque está aqui e respeito-o por isso. é o cansaço que me desespera. é extenuante tê-lo por perto há vinte e quatro horas, talvez mais. sem uma palavra, sem um olhar de compreensível mensagem. nada, só os dois. pele e penas lado a lado numa espera que se está a revelar interminável. sei que ele vencerá, mas o saramago não aceita a vitória assim de mão beijada. ele sabe que só é verdadeiramente vencedor quando eu cair aos seus pés. irreversivelmente. genuinamente. por desistência seria até uma humilhação para ele. saber isto ainda me faz respeitar mais o pássaro. a questão é que a resistência do corpo humano é brutal. e ele sabe que é assim. é por isso que está preparado para uma espera tão longa, a que for necessária. eu é que não estou preparado. quando o invoquei pensei que só viesse quando a morte estivesse consumada. queria ver o meu corpo ainda quente a ser limpo pelo bico em sabre do abutre. queria assistir com deleite à desocultação lenta dos meus ossos, olhá-los já limpos e prontos a reutilizar. mas enganei-me. mal foi invocada a presença do bicho logo ele se materializou num voo vindo sabe-se lá donde… quando o olho sei que ele me respeita. não é um cadáver que ele quer, é um dador de vida em forma de morte… nunca pensei que isto levasse tanto tempo… nunca pensei que o abutre comparecesse tão depressa… nunca pensei que o meu corpo estivesse ainda tão longe da desagregação que aparenta. nunca pensei. ou pensei sem saber o que pensava. fiz tudo mal. planeei tudo sem saber o que fazia e agora é irreversível, ele continuará aqui, até que me consuma com a verdade que ele exige. e o pior é que até a um abutre tenho medo de desapontar. sei que se desse um tiro na cabeça ele nem me tocaria por desprezo e nojo. da mesma forma, não tenho por mim suficiente amor para lhe dar um tiro e acabar com isto. será uma longa e insuportável noite.
17h07
não é a cabeça que me repugna no animal. sei que é costume as pessoas se sentirem-se repugnadas pela cabeça dos abutres. por isso e por saberem que eles descarnam os mortos. mas a mim nada neles me repugna. sei o que ele espera, porque está aqui e respeito-o por isso. é o cansaço que me desespera. é extenuante tê-lo por perto há vinte e quatro horas, talvez mais. sem uma palavra, sem um olhar de compreensível mensagem. nada, só os dois. pele e penas lado a lado numa espera que se está a revelar interminável. sei que ele vencerá, mas o saramago não aceita a vitória assim de mão beijada. ele sabe que só é verdadeiramente vencedor quando eu cair aos seus pés. irreversivelmente. genuinamente. por desistência seria até uma humilhação para ele. saber isto ainda me faz respeitar mais o pássaro. a questão é que a resistência do corpo humano é brutal. e ele sabe que é assim. é por isso que está preparado para uma espera tão longa, a que for necessária. eu é que não estou preparado. quando o invoquei pensei que só viesse quando a morte estivesse consumada. queria ver o meu corpo ainda quente a ser limpo pelo bico em sabre do abutre. queria assistir com deleite à desocultação lenta dos meus ossos, olhá-los já limpos e prontos a reutilizar. mas enganei-me. mal foi invocada a presença do bicho logo ele se materializou num voo vindo sabe-se lá donde… quando o olho sei que ele me respeita. não é um cadáver que ele quer, é um dador de vida em forma de morte… nunca pensei que isto levasse tanto tempo… nunca pensei que o abutre comparecesse tão depressa… nunca pensei que o meu corpo estivesse ainda tão longe da desagregação que aparenta. nunca pensei. ou pensei sem saber o que pensava. fiz tudo mal. planeei tudo sem saber o que fazia e agora é irreversível, ele continuará aqui, até que me consuma com a verdade que ele exige. e o pior é que até a um abutre tenho medo de desapontar. sei que se desse um tiro na cabeça ele nem me tocaria por desprezo e nojo. da mesma forma, não tenho por mim suficiente amor para lhe dar um tiro e acabar com isto. será uma longa e insuportável noite.