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segunda-feira, maio 31, 2004

a empresa # 16 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

o meu tempo é tão precário
que nem me devora
que nem passa
que nem cru me cruza a pele e me transforma
é um sólido ar
uma lama oxidada de insubstituíveis cerejas temporãs
uma loca onde se escondem peixes sólidos
um tempo de peixes brancos, noivos e pesados

à volta da minha morte há livros
gaiolas sem porta
redes, limos, linhos, agulhas
insuportável conspiração dos vivos
embaixadores, profetas nus, delta sol e lua
e leite para gatos e gatos a lamber
orações inaugurais -
há mestres hindús, padres ortodoxos
desenhos animados aos meus olhos, à volta
o esquife aberto
sempre
aberto
à espera do tempo que
tão precário não me reconhece
e uma ou outra visita que aparece de copo na mão

Lourdes Castro na Janela Indiscreta 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Lourdes Castro na Janela Indiscreta

totem 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


gravura de FMG

domingo, maio 30, 2004

na Íntima Fracção 

"Não me atrevo a comentar o Rock in Rio - Lisboa. Juntamente com o Euro 2004, são eventos que não admitem discussão. Como antigamente não se discutia Deus, Pátria e Autoridade, agora, qualquer palavra em falso sobre estes acontecimentos, pode ser entendida como anti-patriotismo. É triste. Revolta. Pois é. Mas eu não sou um Miguel de Vasconcelos. Creio que há muitos, nos mais diversos gabinetes do Portugal de sempre. E ninguém os atira pela janela ? É que nem sequer estão escondidos dentro de armário algum!"
Francisco Amaral

a empresa # 15 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

desejava a libertação da minha cintura celibatária
desejo de um desnó que me resolvesse
me tornasse
um
sírio
ou a própria páscoa
ser a sombra do cordeiro a sombra da faca
sangue piedoso da faca benzendo o cordeiro
ser a lâmpada e o azeite e o pavio
desejava sentir um requiem na boca
vomitar as vibrações dos sopros
dourados
dos
trompetes a aninharem-se na orquestra

tenho uma respiração definitiva
é tão difícil morrer

Lucien Freud 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


pintura de Lucien Freud

Mário Dionísio no Lugar Efémero 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

a empresa # 14 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

tanta roupa suja, açaimes que me prendem
açaimes à volta dos mais ínfimos pedaços de boca
perdi o hálito, o odor, o aro rosa das minhas pérolas
já não tenho o passo apressado das noivas nem
o impulso puxado da trela ou o andar enlameado dos tractores
sou só ausência
vai e vem
inexorável boneca transeunte
uma superfície com pés de aura dourada
- irreconhecível aura dourada -
ainda
assim
trago comigo a prontidão salivar das flores
a seiva exuberante dos náufragos
a resina e a mácula dos machados na árvore
habito a dolorosa servidão das florestas e
faltam-me pássaros e toda a espécie de gritos
falta-me despertar os miolos com a bomba
opiácea destes comprimidos que tenho na mão esquerda

como desejava sentir a minha pele aquecer sob ti
sejas lá tu o ti que fores
tenha eu a pele que te puder dar

chove meu doce companheiro

sábado, maio 29, 2004

fim?  

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


pintura de mark rothko

segunda-feira, maio 24, 2004

a empresa # 13 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

durante o funeral, antes de se espalharem
sobre a mortalha
as partículas da concórdia moral
as abelhas pisaram-lhe o nariz maquilhado de pó branco
os pés levantaram-se apontado o fim da igreja
e as outras tantas gárgulas esculpidas na face da viúva
tudo parecia musical, orgânico e floral
rezavam-se odes de salmo
e preces de satã em sua memória com m maiúsculo
tudo em verde esmeralda
sob rosa
sem jardim, sem espaço, sem acordar

carregaram-lhe o esquife com orgulho
com alguma paz genuína, com genuína paz comprada
às orações pétrias gravadas na lápide frontal do templo
e os olhos já não olhavam e
apesar de cegos e ainda beijados pela saliva dos anjos
permaneciam com o azul deitado de toda a dignidade

à porta, outro cadáver esperava para desertar

sábado, maio 22, 2004

Républica Espanhola 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


"Elegia à Républica Espanhola"
Robert Motherwell

sexta-feira, maio 21, 2004

a empresa # 12 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

lerei os teus livros como livros bíblicos
seguirei o meu mestre ferido
e seguirei o teu cadáver, o teu sino
como quiseres
procurarei caracóis nos jardins para ti
buscarei orvalho na aurora como os magos
para que bebas a água pura da delicadeza

hei de cobrir o teu rosto com pequenos diamantes
hei de plantar crucifixos na cama para que as orações rebentem
no
meu
olhar
curvado

que posso eu fazer-te?
como posso eu abandonar-me para te continuar?

a minha cabeça é já um poço sem canteiros
sem húmos, sem ar, sem gado
sou um furo na terra, no planeta, se não te puder sangrar

à minha volta tudo cheira a asas
a voos de sabor e vapor
há casas de infância e mulheres a andar
e jornais de hoje, por abrir, por ler
há cheiro a tempo por parar
há mortos por enterrar
há tanta coisa que não chego a nada
nada
nada
se não for a tua promessa de me ter contigo

mesmo que mintas
mesmo que me mintas
te adorarei

onde te escondes mestre? 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



«Comecei a ler poesia muito tarde, tinha aí uns treze, catorze anos. Mas não comecei mal, foi com o Alberto Caeiro - não com Fernando Pessoa -, o que me levou a uma crise mística muito grande, porque não exigi ser baptizado. Era muito pagão, e de repente comecei a ver Deus em toda a parte, nos cinzeiros, nas cadeiras. Contraditoriamente, baptizei-me nessa Igreja Católica onde, como dizia Caeiro, tudo é bastante estúpido. Hoje sou o mais anticatólico possível, mas foi assim. Passou o misticismo, mas a paixão permaneceu. Os poemas de Pessoa são o meu «hobby» quotidiano. Mas sou mais Álvaro de Campos que Alberto Caeiro. A seguir tenciono gravar a «Ode Marítima», só que a «Ode Marítima» é «Os Lusíadas» do séc. XX, é impossível dizê-la bem. Tenho medo, vou até ver se deixo de fumar para ficar com melhor voz»
Mário Viegas

quinta-feira, maio 20, 2004

ar líquido 

"Agarra a garganta com as mãos
não voe o choro
ramo florífero do chumbo"


Cristina Tavares


a empresa # 11 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

sinto-me com saúde (até tenho medo de o dizer)
invocando o espírito da tua presença meu irmão

meu doce rapaz loução

que rasgava romãs com os dentes
sangrando sementes e sucos inaugurais
de novas estações
a tua presença invocada é tão preciosa meu querido homem
é como se tocasses pianos em mim
como se abraçasses cordas musicais à minha volta
e
me torturasses a cintura
o lábio

como desejava rezar contigo de novo
aprender aquelas palavras farpadas pela primeira vez
enrolá-las na língua
caminhar nas margens dessa cidade ariana
que conquistaste aos abutres de lisboa
num tempo sem noiva
sem jornal
sem estrada
sem vertical

este sentir-me são depende de ti
meu irmão arredondado, esplêndido, espantado, arado e fundamental
vejo-te ameaçado pela falta de cores
pelo fim de agosto
pelo fim de ver-te
e não há árvore ou espasmo de santidade
que te faça continuar
já não te tenho senão em invocação
e é por isso que me posso desligar das tuas mãos
relembrar-te num retrato
engolir-te luxo na minha falta de boca

não penses mais em mim
– quero ainda dizer-te


digitalis 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Bacon 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


francis bacon

quarta-feira, maio 19, 2004

José Mário Branco/Retorta 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

NÃO AO EXCESSO DE PRISÃO PREVENTIVA 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

a empresa # 10 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

eis o voo impulsionado pelo breve
fio-de-vento deste dia
que se iça como marés de aço no espaço
que se transporta nos dedos contando pedras
de um rosário oriental
cântico feminino dos milagres
toque, palavra, marcha
de um anjo de asas devoradas pelos espinhos de um lírio
como se carregasse um cravo
antecipando a mudança sobrenatural da lua
a mudança estrutural das horas
não há sombras de rosa nas manhãs de solstício
porém o seu perfume pasma as bocas sentadas
e extremas
das uvas
ao colo dos seus pais impotentes
inactivos poemas paternos
a arrastar dias de salário em falta
de mãos lavadas
nos joelhos nus das filhas extasiadas
com as pestanas negras do

pai

a quem elas escreverão cartas num verão de outro país
dizendo que ele
o das pestanas de rímel
fora o primeiro rasgo masculino da sua pele

a empresa # 9 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

toco os rostos assombrados pelo esquecimento das pedras
dos arados
das mãos indelicadas
e canções do ar louvando safiras
toco rostos assombrados pela culpa
pelo acto desculpado
pela mágoa desculpada do acto

infiltrados odores de promessa
atravessada expressão de doença e refúgio

toco as pernas quentes de um pensamento ósseo
a carne separadamente
árvore esgotada circular e olhos vendados

tiro folhas de plátano do meu peito como se cantasse
e jurasse espantos
espasmos
lagos
rios
e caísse dos fenómenos
e me levantasse feliz por ter amado de verdade
uma vez
todo um dia
abrindo a boca e tocando perante deus a face
sirene de sileno

como desejava quebrar um espelho onde me reflectisse
como desejava quebrar a imagem cristalizada de um dia criminoso
sentir a condenação
por fim
a carne separadamente
chegar ao fim

dizer passou

à minha volta rostos mar de pequenos infernos
de permanentes interrupções
ruídos como ataques de aranhas
à minha volta a brutalidade máxima de um dia masculino
a vergar na impossibilidade
na marcha de cinzas de um peixe em combustão

toco o pano da minha idade
bordo o lenço e o som deste tempo
sentindo irreversível
o meu peso
a sonhar

terça-feira, maio 18, 2004

a empresa # 8 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

as pálpebras redobram-se tentando expelir os invasores
as tuas sobrancelhas prendem-se nas minhas
encaixam
todas as dores e todos os risos se espalham pelos mastros
gosto de nadar dentro do que em ti é água fria
caminhar ao lado dos teus pés inchados
como se fugisse ainda crisálida
das páginas infernais de um livro coleccionador de borboletas

deixo que o sangue preencha o espaço vazio das rosas
e nos faça transbordar as mãos

dantes
abríamos a boca em simultâneo
deixávamos cair o cabelo na água
ríamos
tanto – abençoada existência animal –
hoje
há hélices remexendo sangue
há a invisibilidade de um gato marcando o mosaico
branco e preto do chão do pátio
há uma palmeira a oxidar e
um deus mais pequeno que um macaco a saltar nas costas da buganvília

o imã iniciou a oração no topo da gaiola
é o fim do nosso encontro vespertino
é o último suspiro do nosso fechar de olhos
hora de espalhar mel pelas pernas
hora de rejeitar a oração entoada pelo santo
hora de partir os ossos ao pássaro antes de o comer
é a hora de partir o
cálice
onde nos depusemos
e nos deixámos beber por trepadeiras

sentimos ainda os últimos espancamentos no peito?
as últimas sombras?

o gato correrá na direcção da tua cabeça
amarrar-te-á a boca com os cabelos
procurando mais tarde o meu prazer em vê-lo
inspiradamente lento suado imenso leão vitorioso a guerrear
até que o menino nasça as flores se despeguem
até que o primeiro choro se ouça

até que seja livro a história deste parto


café e cigarros 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



a empresa # 7 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

a tua pele é como um terreno despido e húmido
pressentindo um amor desesperado
um pedaço de algodão
um limão
a tua pele nem é sangue nem luz nem pássaro
sob ela levantam-se exércitos de alfinetes
e espaços vazios entre eles
o teu movimento é um círculo impotente
a porta auricular de um coro sem gente
entre ti e a minha pele há uma torrente de fráguas
onde são fundidas espadas e espelhos e açores
na tua pele já não há gemidos
nem momentos trepidantes de carruagem

fiquei emparedado entre uma última gota
do teu suor gelado e
a
cor da tua concepção
enforquei-me nos nós das tuas roupas de flores
até te ouvir chorar
de fome
a arder procurando o tónico o perfume da tua sombra
sugando e bebendo o podre que te preenche
tapando e protegendo a tua pele apodrecida
felizmente
devagar

domingo, maio 16, 2004

a empresa # 6 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

dedos tão frisos de água
a tocarem no amor dentro das árvores
como o toque severo dos melros e a lã das ovelhas indianas
é assim que te lembro pequena princesa
dos horrores – das espinhas – dos insectos
sei que é possível perder-te
posso por isso falar-te ter-te
sem rota clara
a floresta levantou-se para te re-conceber
o céu revoltou-se numa floresta insurrecta
para ti

por ti
ainda chora aquele homem gordo
que não quiseste que não viste
se
quer
ao teu lado
para sempre empurrando montanhas de ti
esmagaste o seu corpo as suas palavras
e ele amava-te tanto

uma vez mais ele veio quebrar o lacre
esperar-te desenhar-te
abrir os laços das tuas veias surdamente
como luzes que selam o coração das cores

tantos e tão precisos mestres te educaram para o amor
tantas e tão preciosas árvores
foram derrubadas para fazer livros para ti
- pequena princesa dos insectos-horrores -
espinhas foram colhidas
decepadas do caule
cozinhadas ao sol
para que as governasses
para que as repousasses
um
dia
rainha

assim te quero matar

sábado, maio 15, 2004

domingo? 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


Viagem aos Açores / jornaldiario.com 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

"Viagem aos Açores"

a empresa # 5 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


amo a agonia espantada da minha saúde
esse momento nítido do princípio do mundo
o extraordinário milagre de respirar com defeito
e subir para a cama a custo
sobre uns chinelos verdes trazidos do japão
dizer
ah – com o esforço
do
estômago com o esforço
dos olhos
ah –
das sílabas partidas antes do tempo, depois de se calarem as sirenes
do barco
afundadamente

e eu estremeço como um guiso
um não sino
como um campo de noivas e pistolas antigas
coisas soltas dentro do corpo
como uma casa-corpo, uma casa-lago
um lago-corpo, um campo de casas-lago no corpo
a estremecer dentro de mim
e eu como um guiso

procuro nomes de flores para fazer chás
coisas que me curem
o leite da cura original
o poema, o tom do vinco no fruto
[perfeito vinco o dos frutos]
procuro trazer para o pensamento histérico das horas
o terror dos frutos apodrecidos antes do tempo
e com eles destilar a minha infelicidade -
- causa única da minha felicidade
a minha infelicidade é a causa única da minha felicidade
repito
esse é o espírito das tardes-noite
e da minha vida neste castelo
água barrenta que corre nos copos
para me apertar

quero marcar-me com as tuas mãos
quero não querer o que o tempo me faz gritar
puramente
quero sair deste leito de orações
desta camisa engomada
quero só sentir a dor do teu toque
quero que o meu corpo aqueça sob o teu grito

um poema final findará a minha loucura
porá fim a esta angústia furiosa derradeira e tua
um poema trará o fim da minha saúde esmagada
não há perdão para a poesia
não há uma vez mais nos poemas
não há próxima vez
só o absoluto
o jogo
de excitações
debaixo das abobadas coroadas da nossa cabeça
e
quando renascer
debaixo dos meus pés
nascerão
ao meu andar
largas
e azuis
flores de lótus

sexta-feira, maio 14, 2004

Chico Anysio & Mário Quintana 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

os versos da vida de Chico Anysio:

"Todos estes que aí estão
Atravancando o meu caminho,
Eles passarão.
Eu passarinho!"

Mario Quintana

a empresa # 4 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


a descoberta dos meus lábios ainda hoje me assusta
quando os vi beijar o meu pulso esquerdo
com aquele sorriso complacente
com aquele balouço de espuma e vermelho
corri para o campo de pedra pedindo ajuda
gritando por um qualquer socorro animal
e nada
ninguém
nem um ser, um anjo, uma pérola, um santo
em meu auxílio

devem achar normal que me assuste com os meus lábios

talvez o cavalo do vizinho zé
me tenha compreendido porque chorou, ainda
durante
uns breves instantes ao ver-me
assim
com lábios nascidos
a escorrer pela seara, a depositar grãos de mel e aveia
enquanto sangrava a cor da minha boca

ainda hoje me assusto com a descoberta do meu pulso esquerdo
quando os meus lábios o beijaram pela primeira vez
- o paizinho estava na cozinha e não quis saber –
corri para o campo de pedra pedindo ajuda
gritando por um qualquer sorriso de socorro
e nada
ninguém
e o meu pulso a escorrer grãos de mel e aveia
pela terra arada a dentro

talvez o cavalo do vizinho zé

José Mário Branco & Fausto 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Resistir é ter-vos!


(imagem "retorta")

quinta-feira, maio 13, 2004

13 de Maio 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



13 de Maio

" - Pedi, supliquei, quase de joelhos, disposta a ficar três dias defronte das suas janelas até me deixarem entrar. Vimos exprimir o nosso grande reconhecimento. Porque foi o meu reverendo quem curou Lise, por completo, na quinta-feira, rezando diante dela e impondo-lhe as mãos. Tínhamos pressa em beijar essas mãos e testemunhar-lhe a nossa gratidão e respeito.
- Curei-a? Mas se ainda está na cadeira de rodas..."


F. Dostoievski, "Os Irmãos Karamazov"

a empresa # 3 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


como uma multidão ordenada, os meus cabelos
apressam-se ao encontro dos teus dedos cada vez mais fortes
os teus dedos tornaram-se locomotivas incendiadas
caminhos de peregrinos em enchentes de velas
os meus cabelos
marés, abelhas
a espetarem os teus gestos
eu
um campo de oliveiras em derrocada

ouvi-te dizer: “mamã”?
sim disseste mamã
enquanto me prendias os gestos do pescoço
chamaste mamã a não sei o quê de vago que sentiste em mim
quiseste-me mamã no meu corpo
talvez para me reconheceres
para me apreenderes
na tua fome de ser filha, na
tua impaciência desvairada de ser abençoada ao deitar
quiseste-me ali ao teu olhar
perfumado e materno
aleitando esses momentos de intimidade violenta
espumando rosas-flores, rosas-gato


hei
de
te arrancar
os dedos enrolando-os
nos nós dos meus cabelos
hei
de
te
ter inteira dentro da minha boca
em risos oblíquos, transparências ruidosas
estertores de pele tristemente arrancada

imagem 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



em
estudos sobre o comunismo

a empresa # 2 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


ainda sinto os pés
e os dedos da mão esquerda
ainda sinto a língua a estremecer
um dos olhos ainda responde ao nervo
a paz da pele é agora perene
consigo rodar sobre mim
com uma das mãos bato na cara - não sinto dor
sinto só o aproximar dos corpos
sinto o fenómeno do aproximar da mão

lembro-me das chávenas de café
que pressentia na cozinha no fim das refeições
como gostaria agora de ter uma dessas chávenas de
café entre os lábios
os quase-lábios que me animam o resto
o quase-rosto
o quase-resto

deixei de ver há três minutos
e ainda tenho a memória da minha imagem
deixo-me exalar a imagens antigas
deixo que me vejam
e procurem transformado
permito que encham as jarras de flores
e arrumem o quarto

(terei a casa sempre arrumada
pagas as contas da luz e da
água
terei jornal à aurora
e compota de laranja no funeral?)


agradeço desde já a vossa presença a neste local
meus irmãos, minhas irmãs, meus queridos camaradas
agradeço os ramos de violetas
os arranjos de dentes-de-leão
as velas
e os suicidários vasos bonsai sobre o altar
agradeço-vos tudo
tudo
meus queridos que me amaram tanto
todos vós
que entraram em mim
e me deram o vosso suor
e a vossa cor
agradeço
porque tenho de agradecer
obrigado
obrigado
obrigado
e
muito
especialmente
agradeço
o pássaro empalhado que puseram
na sala
para lembrar às visitas
como eu, eu, eu
gostava de aves
e sobre elas escrevi, e com elas desenhei

em
fim

obrigado pela vossa presença
neste momento tão especial da hora do almoço


LIBERDADE 


estamos com o barnabé

quarta-feira, maio 12, 2004

a empresa # 1 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



os corpos foram colocados um a um
nos ladrilhos da igreja
um a um corpos de todos os tamanhos
alguns
ainda calmos
traziam a expressão dos poemas de auden
outros
remexidos
em dores de castigo
pareciam rir e rir sobre si

a igreja era branca, hospitalar
o sol acendia-se sobre o altar
um, dois – tanto faz –
padres em batinas de vermelho cardinalício
abençoavam colheres de prata e cálices dourados
consagravam hóstias
repetiam pequenas orações em grego
e bebiam vinhos de frança
as freiras continuavam sempre
arrastando seres
pelo chão de mármore

os miúdos gostam de puxar os cabelos aos mortos
e puxavam, e ficavam com madeixas louras nos dedos
e riam
riam de bondade
“quando é o lanche, irmã?”
o padre azul com seu pequeno terço
de contas esculpidas em ébano
dizia: “papá, papá, papá”

até
que final
mente
ainda antes da noite mais profunda
em pequenos tabuleiros de lata
as freiras serviram os lanches
as bolachas

o chá

nas suas folhas
as crianças de évora
aprenderiam a ler o futuro

Rilke 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


pintura de FMG, 'Retrato de Rilke'

terça-feira, maio 11, 2004

DOL-U-RON Forte # 40 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

sei que não sou um campo de flores
nem uma casa que te possa acolher -
- uma casa-templo –
que te trouxesse a paz do fim da vida
nem sou culpa, nem esquecimento
não sou o animal que tu esperaste
nem o homem que julgaste amar

meus irmãos esqueceram-se do meu aniversário
na realidade
(numa das realidades terrestres que habito)
nunca tive uma data para renascer
uma data para a noção de ser filho
e agora as tardes são curtas e as noites inexistentes

não sou um campo de flores
sou
uma coisa que se anima ao sol
e à passagem das coisas puras pelo corpo

se contasse os ossos do meu corpo
só me faltariam os ossos do coração
sou uma vida quase masculina
a extasiar-se
um espelho de pérolas brancas
um colar de frutos
a transpirar álcool
sou uma ideia , um pedaço de carne a balbuciar palavras de amor

não te posso beijar outra vez
não te sei olhar com a doçura do exemplo
o meu corpo estende-se agora como
uma
força desvairada
de cansaço
a querer-te, impotente, sempre

DOL-U-RON Forte # 39 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

como amanheces belo nessas camas
de ferro e cores forjadas
de mel
quem te conhecerá na loucura dos dias pesados
e te procurará nos extremos do colchão
escrevendo
escrevendo?
bebendo gotas de soro, lendo à luz de pequenas
lâmpadas filiais
adormecido, sentado nas páginas de amor
que perdeste

antes das palavras
seres
papel
antes da tinta
seres
tinta

tudo é outra coisa nestes dias brancos de clinica
não te encontro
na beleza das tardes de prata
já não te sei de cor, minha presa

segunda-feira, maio 10, 2004

Com pedidos de desculpa... 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller


Eles pedem desculpa.

"A Casa deA." 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



fotografia de FMG, "A Casa de A." Fotografias da casa de António Charrua e Maria Alcina Charrua, Ed. Cadernos de Fotografia Saudades de Antero, 2004

DOL-U-RON # 38 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

vejo a pequena colecção de fotografias que me deixaste
vejo como enrolava a cabeça no teu colo e pensava que tudo eras tu
sinto ainda o cheiro da morte impossível nos teus cabelos
sinto o cheiro a terra, a sapatos engraxados
foi o tempo do amor único, dos mergulhos no mar
das flores maternas no meu peito
como te beijava
como amava beijar-te
e correr, subir árvores imaginadas de tanta ferocidade amorosa
ao pé de ti sentia o sangue correr
ainda sentia o sangue correr
ainda via as luzes e as estrelas do mar a gritar pela salvação da noite
e como tu corrias para as salvar
tinhas o olhar da insurreição
latejava em ti, ainda, o desejo de te abrires ao mar
tinhas em ti, ainda, o mar a abrir-te
algas a percorrer a tua vontade de subir rochas
de ser peixe
e casa
e mergulho
tinhas ainda vida nos lábios e nos dedos e na pele
tinhas ainda o sangue das mulheres
os olhos da raiva e passos tranquilos na areia
tu eras praia
e tudo isso foi ainda antes de tudo
estas fotografias foi o que me deixaste
e não está lá nada que me salve
hoje
desta pedra-morada
deste lugar terrifico que é o meu corpo
hoje és desistência e pó e terra podre
és um mar sem cor
és um cinzento açoriano, uma espécie de évora
a arrastar memórias de uma infância errada
és andar sem passos
corpo sem pele a arder dentro das tuas roupas novas

és eu

sábado, maio 08, 2004

Anatomie... 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller



num cinema, infelizmente, longe de si

sexta-feira, maio 07, 2004

irmãos 


DOL-U-RON Forte # 37 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

um repuxo de dálias
no jardim
usa-me o coração
e eu – só eu –
ouço as palavras mortais
as clarabóias
ouço crianças adultas a agarrar nas mãos de mães adoptivas

os gritos escorrem pelas paredes de sal oxidado
o sal escorre pelas paredes de pedra
a luz é cal mínima
amarela
triangular

neste jardim de coisas enormes
não caibo na terra nem nos poços de sangue
onde os meus irmãos-meninas brincam com barcos de papel
e
laços

coloco a mitra na cabeça
e deixo-me abençoar

évora não pára 

desde a maravilhosa sessão de autógrafos que josé saramago, tão generosamente, concedeu durante a sua paragem em évora a caminho de badajoz que não éramos brindados com tamanha grandeza: amália, o arrebatador musical de filipe la féria, ganhador de prémios de oriente a ocidente, com o seu maravilhoso elenco de múmias paralíticas e jovens mancebas a tentar dar nas vistas, com os sucessivos recordes de utilização de microfones emissores em rede simultânea, enfim, com todo o esplendor de uma aida, de uma madona, de uma… de uma… de uma… eu sei lá, vai pousar no teatro municipal garcia de resende. é uma alegria tão grande, uma emoção tão profunda. filipe la féria confidenciou que talvez, talvez, no final de cada espectáculo, aproveitando as folgas do ‘my fair lady’, joel branco brinde o público com uma nova versão de ‘algodão doce’, esse imortal clássico de merda que habita os nossos sonhos mais privados. como estamos em évora ‘algodão doce’ será cantado à capela.
já o ouço: “o mundo é uma bola de algodão… na tua mão… lá, lá”.

aqueles que já desesperavam com a triste situação teatral desta cidade, têm agora razões para se animar com o advento deste maravilhoso acto de cultura.

entretanto, enquanto não estreia o nosso ‘amália’, com a nossa ‘alexandra’ , podem espreitar o baile para defuntos e um actor (ausente), encenado pelo piérre étiéne ainemane, na sala ao lado.

quinta-feira, maio 06, 2004

Lugar Efémero 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

Lugar Efémero mudou de 'morada'.


DOL-U-RON Forte # 36 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

sento-me aqui a sonhar a partir do meu corpo
a cobrir-me sob este tecto de rosas
a espetar-me em lábios de dedos
esta casa não é uma casa, nunca aqui vivi
é uma casa sem infância
é uma desolação furibunda de flores
é um ossário perpétuo, uma campânula de morte
de putrefacção
é uma casa parasita, um prego de lembranças
e depois este candeeiro terno
o sofá azul
a cama longa e estreita –
o desejo de uma rosácea ou de uma varanda

há uma lagoa no meu peito a esvaziar
uma espécie de não dormir a abrir os meus olhos
pérolas espalhadas no peito
cigarros
bordados começados em teares
e finos fios de lã presos a agulhas caídas sobre os meus joelhos
como pêndulos

resta-me olhar os laços pintados no tecto e
vê-los barcos, ou espelhos, a respirar



quarta-feira, maio 05, 2004

A Rádio Perfeita!? 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

A Rádio Perfeita!????

CROMOS TSF/José Pedro Gomes

É a hora! 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

lua cheia, eclipse total.
eis a hora porque tanto esperámos.
o paradoxo.

segunda-feira, maio 03, 2004

DOL-U-RON Forte # 35 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

eu sei que queres o meu silêncio e a minha
angustia furiosa, o meu arrependimento furioso
que queres que me afogue nas tuas mãos
e sinta o ardor da cegueira de ser mãe
de ser lua e ser crucificada, sanguínea
incorpórea
e doce
e acabada
eu sei – e isso basta-me – que ainda me amas
que ainda transformas as lágrimas em especiarias
por mim
que ainda choras pela minha morte no teu coração
que desenhas em oferenda círculos num papel branco
e acendes velas
e incensos e comes frutas tropicais à noite invocando
o
calor
e ele vem, comparece à tua lembrança
e eu, talvez, não morra tanto
porque me abrigas junto às flores que caças aos sábados
porque me vestes de lâmpadas
porque fazes de mim marés de lava a subir montanhas
e ainda há a sombra da ternura tresloucada de um peixe
verde
de um peixe-azul
de um peixe-lápis-dourado
e há as vozes de quando éramos meninos num colégio
e as dores do corpo de nos batermos em êxtases de circo
e os olhos de um pato no jardim
ainda me dás a mão, tanto
e trazes ratos como presentes para dentro da casa
- pássaros mortos que conquistas caídos dos ninhos -
todas as noites te relembro a sangrar em mim
todas as noites te faço abrir um poço debaixo da cama
para que possa, eu, cair
todas as noites são relampagos excelentes
sabendo que me recordas
e transportas
para aquele lugar precioso
onde até as rãs dormem aninhadas

domingo, maio 02, 2004

DOL-U-RON Forte # 34 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

as minhas mãos ainda mergulham nas tuas costas
e o cheiro das laranjas leva-me para uns olhos
para umas cores em jacto
em dor
em água crescente
há uma vibração de mim na tua pele, ainda
uma lonjura um pedaço do que ficou
a
sangrar
a
beber
e uma noite e outra e tantos olhos
espalhados na cama e no ar profundo

tiro o meu sangue com um conta-gotas para te alimentar
para que me saibas
corto-me desprendo-me da carne
em conta-gotas
e espalho-me
e prendo-me
e há uma espécie de porta a abrir-se sobre mim
como um tecto sobre um berço
como um céu sobre o sol
um céu a cair
a içar voo
a desmembrar-se

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