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sábado, abril 30, 2005

o livro das noivas # 10 

# 10 – as jóias

são os planetas que se aproximam são as luzes
as respirações aceleradas dos continentes
em fuga
a peste
os desastres – toda a galáxia em desespero – esperanto – e babel
torres de marfim à espreita estilhaçando-se num colar ao pé de ti
sou eu que fabrico a tua felicidade sou eu tudo
eu-eu o que fabrica
o sol e a tristeza dos pequenos dados rolando sobre o pano verde
damesadejogodocasinoemdiasdefesta
vejo-te dançar dentro de uma redoma – abençoada cápsula
de verniz que te esconde do olhar profanador dos turistas
talvez me engulas
talvez qualquer coisa de útero se fabrique
tu e tudo o que sobra nos céus abaixo de mim
já não tenho poder nos músculos nem nas axilas
sobra-me o terror a homens como tu
e as estrelas desabrochando no assombro
há-de cair uma gota de veneno na tua língua
tenho olhos de tartaruga e vida de anjo com asas de galinha
há-de cair uma gota de cérebro entre os teus dentes
que amei tanto

sexta-feira, abril 29, 2005

o livro das noivas # 9 

# 9 – os bailes

as mãos dele estão cravadas no meu pescoço
tenho os pés levantados do chão – nunca imaginei que
ele pudesse ter uma força assim – já o sangue se
dividiu em dois tubos estanques n
o meu corpo / o líquido que flui dentro do cérebro
é um
o líquido que fluí pelo tronco até ao pés é outro
há um espaço vácuo entre mim cabeça
e o que de mim é corpo – ondulo
tenho espasmos vejo auras azuis em redor dos objectos enquanto
danço
já sem sentir a garganta
espasmos quentes sem dor só movimento
vou desenhado círculos no ar / talvez seja as
sim a centípeda circulação do pólen
o pescoço vai-se alongando à medida que a dança pros
segue – sigo azul até que ele de me deixe cair
sou finalmente duas – voltámos a ser duas querida marta
separei-me em ti ana meu amor
estou já desfeita – tenho os pés tão belos
só há verde e roxo no horizonte

quinta-feira, abril 28, 2005

o livro das noivas # 8 

# 8 – concessões para a felicidade

estendi a tua saia no divã e fiquei a ver o
s bordados a espalharem-se pelas almofadas
tive vontade de me enrolar nela – na saia e
neles – nos bordados / tenho a cabeça a estalar
de agulhas
calcei os teus sapatos brancos e as meias de croché
pus anéis e rímel – cheiro a ti e não sinto nada
nunca mais me sento aqui
nunca mais
ontem deitei o relógio fora hoje vais tu
apetece-me atirar-me contra as paredes do quarto
e deixar marcas de sangue no papel de parede
?já te disse que o cão morreu
pois foi
morreu
e eu não senti nada só a cabeça a estalar
de agulhas
como se me estivessem a sair pelos olhos
comprei um batom – nunca tinha comprado um batom
pus o batom e não senti nada – a
tua saia enoja-me
os teus sapatos e as tuas meias enojam-me
afinal sinto qualquer coisa – nojo
o cão também me enojava – enojo-me a mim próprio
o papel de parede enoja-me – vou
passar a noite assim
vestido de ti a enojar-me
com agulhas a saírem-me pelos olhos

quarta-feira, abril 27, 2005

o livro das noivas # 7 

# 7 – belas artes

ana desenhava letras nas costas brancas de marta
marta desenhava letras nas costas brancas de ana
letras negras suores frios – palavras gregas
cândidas letras com flores enfiadas
marta beijava flores gregas na barriga de ana
carmins-amarelo oxidadas poeiras no cabelo
ana punhas as mãos embebidas em verde nas pernas-língua de marta
e na sola dos pés pincéis dourados a moverem-se
?que idade
?dez
?quinze anos – e deitavam-se ao sol mostrando
colares de lápis-lazúli – horas em fio de mão dada
de boca dada
assim tão pintadas – douradas douradas
?quinze
bocas dadas
cândidas flores dependuradas

terça-feira, abril 26, 2005

o livro das noivas # 6 

# 6 – os livros

abre o caderno querido e diz-
-me se ainda é possível o desejo de me desejares
como invejo os desenhos que imprimes n
as folhas quentes dessas páginas azuis
diz-me qualquer coisa branca um lápis
enquanto te vejo na biblioteca
com o teu amante – meu querido eu não te repreendo –
abre o caderno e diz-me... ainda /
– tenho as mãos quentes às vezes penso que talve
z
gostasses de as sentir nas tuas pernas
mas sei que não
que o desejo não existe s
ó livros o teu caderno de desenho navios e esse fato castanho
que vestes para o teu amante
eu vejo-te a ler-lhe histórias / julio verne / salgari /
tenho até ternura pela forma como o educas
abre o caderno querido diz-me é possível um
a frase redentora
um-mantra-que-resolva-tudo
dá-me um chapéu – tenho as mãos tão quentes
a
m
o
r
e às vezes imagino que talvez gostasses
de as sentir na tua barriga
sei que não
/julio verne / salgari /
a educação esmerada do teu homem na biblioteca
tenho mãos querido e às vezes imagino

o livro das noivas # 5 

# 5 – os doentes

marta arrasta-se para a casa de banho e cai
glória ao senhor que te permitiu
vomitar no sitio certo – se ana soubesse
como os teus cabelos estão sujos e perderam o brilho
já lá vai o tempo das flores de amendoeira
das vestes brancas dos lilases cor-de-rosa
o sangue ainda te escorre pelas pernas e a dormência
na barriga é tal e qual um parto – ana onde estás
marta com sangue nas pernas avança uns centímetros
com vomitado no cabelo as mãos fraquejam dentro das
lu
vas
de madrepérola arrastando-se até ao lavatório
partiste o espelho meu amor
obrigado
marta quer lavar-se da febre levantar-se
– ana não ouve
ana não está – ana ana ana
marta penteia o cabelo sujo / marta sangra até aos pés
finalmente levanta-se e beija-se na boca
sente a língua a enrolar-se nos dentes e a saliva a
flutuar na garganta é a luz é a dor fina na barriga
marta está levantada com brincos de madrepérola – deitada

segunda-feira, abril 25, 2005

o livro das noivas # 4 

# 4 – a poesia da vida

tens as pernas ásperas ainda assim os dentes bem lavados
a noite é uma espécie de seara com ruídos de ambulância
e carros do lixo
nos vidros da janela do quarto reflecte-
se uma luz verde – será de um néon
tens as pernas ásperas e os pés doridos
nos vidros reflecte-se uma luz amarela se
rá de um semáforo – se a seguir vier um reflexo vermelho
então
é
nunca tinhas reparado pois não
tens as costas ásperas – o teu corpo é áspero
só dedos não são ásperos nem a boca
mas à tua boca ninguém liga – noiva
vermelho
é um semáforo / quando rebolas nos lençóis a aspereza das costas
prende o algodão – sentes-
-te mal feia/noiva/nova/envergonhada
outra vez verde – ninguém entra
só num quarto com as pernas ásperas – amarelo
a janela dispara com o vento
seara de ambulâncias ao longe e carros do lixo
só mais um esforço alguém há-de vir ao encontro das tuas pernas ásperas

domingo, abril 24, 2005

o livro das noivas # 3 

# 3 – a roupa branca

o nó na garganta a gravata
a secura dos lábios e as camisas de dormir
as pombas voam como lençóis e
tu que foste noiva e por isso não sabes distinguir o bem do mal
torna-
-te engomadeira de aventais e punhais e hóstias consagradas
como goma sob ferros quentes
é preciso que te tornes cega e queimada que os teus de
dos se escaldem de sabão – respira potassa
até os pulmões desatarem a explodir e o fígado a sangrar
e que esse sangue se espalh
e nos lençóis da pomba voadora de asas cortadas na cozinha
há tanta
tanta roupa para lavar
há miríades de deuses que precisam das suas sotainas engomadas pa
ra celebrar orgias no olimpo não há tempo a perder
há punhais véus meias punhos de camisa em renda
pasta para os dentes detergentes inteligentes
espeta espadas no cérebro e aguenta a dor com gritos surdos
gritos surdos como os gritos mudos das baleias

sábado, abril 23, 2005

o livro das noivas # 2 

# 2 – saber ser pobre

contenta-te com a renda e o tricô come a
s agulhas que sabem a chouriço até
talvez
a pão de l
ó reza o terço mulher reza o terço
se abrires a janela vês aviões – traços
horizontais de ouro planando s
obre a tua cabeça sem penteado contenta-
-te com a renda mulher e com o tricô
abre as asas e voa pela janela abaixo
baixa o queixo
fecha a camisa cose-lhe um botão em forma de coração
és como um urso a apanhar salmão
arranhando com as unhas nas paredes do vizinho
bebe água quente com limão – água morna com limão
come a
s agulhas do tricô que sabem a chouriço
vê os aviões pela janela mulherzinha pensa em ouro
lava as mãos usa perfume de palha nos sovacos
lava as mãos
lava as mãos

sexta-feira, abril 22, 2005

o livro das noivas # 1 

# 1 – o casamento



há muitas flores no jardim
um revólver – as noivas sentam-se nos bancos
do jardim como s
e os bancos do jardim fossem os bancos do recreio da escola
e olham o revólver – marta e ana amam o revólver
são noivas num jardim entrecuzando as pernas
como cinzentos brincos-de-princesa na praia
o vé
u descai sobre as ancas de marta o vé
u de ana descai sobre o cabelo de marta – noivas
num jardim com um revólver
marta irá morrer antes das bodas de prata – ana
viúva voltará aos bancos do jardim
deixando cair o vé
u sobre as ancas mortas de marta e disparará
um tiro de revólver sobre a terra
ana envelhecerá sem a coragem dos mártires
com medo e sem marta

quarta-feira, abril 20, 2005

quarenta romances de cavalaria # 40 

# 40 – epílogo

SOU DE UM LUGAR DE ULMEIROS E ACÁCIAS em criança aprendi a encantar-me com os desenhos e as palavras que gente desconhecida havia gravado a canivete na pele branca dessas árvores nessas memórias fundei o que fui promessas de amor vestígios de guerra primeiro desenhei depois escrevi nos ulmeiros da minha infância misturavam-se traços e letras corações e às de amo-te e às de adeus e às de angustia um dia uma doença matou os ulmeiros da minha cidade mais tarde as acácias foram consideradas praga e cortadas pela fonte com o desaparecimento dos ulmeiros e das acácias escoou-se a identidade profunda do meu ser na alameda principal do cemitério do bairro onde nasci há ainda um grande ulmeiro abraçado a uma velha acácia mimosa é para lá que vou rumo à raiz de mim por coincidência alguém baptizou aquele cemitério de forma especial também por isso me dirijo para esse paraíso onde espero reencontrar-me nos ramos de duas tristes árvores de lisboa vagarosamente ocuparei o meu lugar nesse parque onde estão enterrados os meus mortos vagarosamente regressarei ao cemitérios dos prazeres_

terça-feira, abril 19, 2005

quarenta romances de cavalaria # 39 

# 39 – domingo

RESTA-ME ASSINAR ESTE documento que vos envio sem esperar resposta faço-o consciente de nele ter inscrito toda a verdade tudo o que sob os céus até agora foi oculto será finalmente revelado eis-me entregue por vós terminou a viagem da fé e da filosofia acabarão os mistérios da salvação findarão os milagres e as coisas maravilhosas em breve secarão as flores e as árvores e o teatro épico não se voltarão a escrever romances nem poemas nem contos nem testamentos nem se assinarão cheques o dinheiro deixará de ser ferramenta de troca não se cozerá mais pão não se voltará a comer porco nem vaca nem borrego nem vegetais chegou a noite sem estrelas o fim do sol e dos planetas desde sempre que o homem pediu o conhecimento da verdade pois bem chegou o momento e não haverá regresso uma vez aberto o cofre não há chave que o possa trancar de novo talvez os homens que nas suas preces pediram a revelação da verdade absoluta o não fizessem de coração aberto acreditando que no fundo tal nunca pudesse acontecer se assim foi caíram na armadilha há um velho ditado que avisa os incautos de forma clara cuidado com o que pedes nas tuas orações porque os teus desejos podem realizar-se coube-me a mim divulgar a toda a humanidade a sua essência aqui estará diante dos vossos olhos o nó umbilical que vos liga à morte que julgais ser vida e à vida que julgais ser morte aqueles que esperavam a vacuidade como vibração libertadora do ser serão dizimados pela desilusão aqueles que esperavam a eternidade do paraíso serão dizimados pela desilusão aqueles que esperavam a eternidade do inferno serão dizimados pela desilusão aqueles que esperavam a imensidão do que está para além da paz e da felicidade o incomensurável nirvana serão dizimados pela desilusão aqueles que não acreditam na desilusão por nunca se terem achado iludidos serão dizimados por si próprios e será o pior dos tormentos mesmo que tentem ignorar esta revelação mesmo que me queimem e aos meus papeis nada vos salvará estamos a um minuto do último minuto por isso pergunto-vos há alguma coisa que desejem fazer enquanto ainda são ingénuos se sim têm um minuto para isso ainda vos resta um minuto para acreditar em deus nos homens na fraternidade universal ou na igualdade se assim o assim o desejarem podem até gastar esse tempo a soletrar a palavra liberdade mas acreditem passados esses sessenta segundos o véu cairá e todas as palavras que definiam a aparência e o fundo das coisas estará para sempre condenada assim seja_

segunda-feira, abril 18, 2005

quarenta romances de cavalaria # 38 

# 38 – sábado

NÃO SEI SE É HOJE QUE TERMINA TUDO dizem que sabemos quando fim se aproxima mas ao que parece é impossível determinar o momento exacto em que tudo cessa esta noite tive um sonho e no sonho algo me avisava de que poderia ser desenhado hoje o último recorte da minha vida foi o anúncio onírico da entrada no lugar dos anjos e dos demónios do fogo e dos grandes mares claro que os sonhos não são coisas certas não os podemos levar à letra mas a tentação é grande no sonho caminhava numa grande avenida de paris à noite e sozinho e dava de caras com um tigre gigante das neves um tigre mutante que me devorava quando fui criança vivia no jardim zoológico um grande tigre mutante apesar de nascido em cativeiro e no século XX a sua aparência recuava a milhares de anos o animal ainda sobreviveu três anos estava numa jaula à parte de todos os outros tigres e tinha pendurado ao pescoço um cartaz que dizia grande tigre mutante trinta anos depois no meu sonho esse mesmo tigre devorou-me numa avenida de paris tenho passado o dia à espera de algo imprevisto que me ponha termo à existência durante a manhã pensei várias vezes na hipótese de ser atropelado ao almoço que a comida estivesse envenenada mas até agora nada ainda assim a sensação perdura é quase impossível de explicar isto sinto as artérias contraídas pelo corpo todo o cérebro anormalmente lúcido vejo melhor ao longe e ao perto então nem se fala sou capaz de ouvir vozes a uma distância considerável o mais leve olor afoga-me como se tivesse caído num caldeirão de perfume ou de excrementos li uma vez que antes da morte os sentidos se exaltam e se alcançam vidências extraordinárias bate tudo certo o mais estranho é que no caminho para casa me cruzei com o tigre mutante das neves e ele ignorou-me completamente nem um olhar de soslaio me deitou cruzou-se comigo e foi como se eu não existisse e nesse momento não estava a sonhar ou penso que não estava racionalmente não podia ter sido o mesmo tigre do zoológico esse já morreu há trinta anos podia ter-me aparecido em sonhos mas na realidade acho que não será que é outro só se não morreu terá ele fugido do jardim e espalharam a notícia de que tinha morrido só para não alarmar as pessoas não sei nada e se já tiver chegado o fim quer dizer falando sem rodeios e se já tiver morrido e não souber também já li muitas histórias assim se bem que isso não explique porque me devorou um grande tigre mutante em sonho e quando me cruzei com ele na realidade nem miou não sei interpretar sinais passei demasiado tempo de volta dos símbolos pensando que os símbolos eram tudo que continham tudo e afinal de que me serve agora a simbologia se ao surgir um sinal nada em mim se ilumina de uma forma ou de outra o que mais me inquieta ainda mais do que me saber vivo ou morto é saber se este será o último texto ou será que este texto nem sequer foi escrito_

domingo, abril 17, 2005

quarenta romances de cavalaria # 37 

# 37 – sexta-feira

SAPIENTÍSSIMA PEDRA à beira do lago a ti me dirijo em oração depois da sesta se aceitares a minha confissão ficar-te-ei grato por muitas décadas a contar de agora um dois três macaquinho do chinês meu senhor eu pequei a pedra responde diz confessa-te solta os teus pecados abre o cofre deixa sair o mal que te envenena o sangue obrigado sapientíssima pedra à beira do lago por mais esta oportunidade de servir o povo de deus através de ti expiando a minha culpa através de ti tornar-me-ei santo e puro e renunciarei ao diabo a todos os anjos caídos vou começar um dois três macaquinho do chinês o meu maior pecado é não ser um nem dois nem três são tantos os pecados que me cometi que já nem me sinto pecador mas um profissional do mal vou contar-te sim no outro dia por exemplo vomitei vês que coisa pior pode um homem cometer vomitei vês como sou como posso eu viver se todos os dias cometo coisas como estas deus deu-me a comida e santificou o meu pão e eu vomitei-o no dia a seguir defequei deus misericordioso deu-me a comida e santificou-me o pão e eu defequei-o é tudo assim na minha vida deus dá e o meu corpo regurgita as mais sublimes dádivas pelo vómito pela defecação pelo suor pelo sangue pelo sémen pelas lágrimas sapientíssima pedra à beira do lago sou um passador nada do que deus me dá em mim se retém até a sua gloriosa voz me entra por um ouvido e me sai por outro salva-me mãe calhau desta tortura ainda hoje tomei a hóstia e logo a seguir lavei os dentes porque tinha um bocado do santo corpo de cristo na placa ainda e o pior é que a cuspi para o lavatório ouve-me só mais um sapientíssima pedra à beira do lago envés do vinho bendito o sangue de cristo durante a missa bebi chá ainda por cima preto diz-me tenho salvação não não tens salvação mas podes fazer-me um favor e talvez deus interfira por ti junto do pai o avô de cristo para que envés do inferno te seja dado o limbo queres sim quero aceito tudo para escapar às chamas do inferno então depois da minha contagem dá-me a felicidade e que felicidade queres atira-me à água do lago para que depois destes três biliões de anos em que aqui me encontro possa finalmente nadar só isso só isso está bem eu empurro-te então vamos um dois três macaquinho do chinês zás splach sapientíssima pedra dentro do lago confio em ti resignado esperarei pelos lençóis do limbo obrigado_

sábado, abril 16, 2005

quarenta romances de cavalaria # 35 

# 36 – quinta-feira

TEMOS QUE ESPERAR PELAS PALAVRAS tentar não desesperar enquanto elas não aparecem se entramos em pânico está tudo perdido é um processo lento se soubermos respeitar o silêncio entre cada letra a palavra surgirá basta um sinal de nervoso e perde-se tudo a primeira palavra contém sempre a semente da segunda e a segunda a semente da terceira e a terceira a semente da quarta e a quarta a semente da quinta a primeira palavra contém a semente da última não é preciso fazer nada é uma questão de calma gradualmente as sílabas formam-se as ideias espalham-se e sobre a terra vai-se formando o texto e então serão gritos e nuvens de algodão a entornarem-se no papel o medo esvai-se as flores ganham cheiro os corpos luz as cores deixam de ter nome e os animais família um romance é um advento mágico ou um fracasso primordial um poema é sempre um fracasso um conto é sempre um advento mágico há uma membrana de trevas entre nós e o desenho do texto que só é possível romper se mantivermos a calma e discernimento a ansiedade um mínimo tremor deitará ao vento todo o sonho de composição e geometria possíveis de encontrar numa narrativa o ideal é sofrer muito ter o coração despedaçado e as lágrimas já secas se possível o corpo doente e a alma perdida isso consegue-se é um objectivo como outro qualquer se engendramos alegrias e felicidade as palavras não comparecerão e o texto será dado como nado morto se for preciso podem cortar-se as veias e enquanto o sangue não sai todo e não se cai na dormência pré-mortal do suicídio pega-se na caneta e escreve-se muito depressa por esse meio todo um romance terá que ser escrito em segundos é possível fazê-lo pode-se tomar veneno e enquanto o fígado se destrói em pedaços aproveitam-se as dores para um primeiro verso com o veneno há mais tempo e bem gerido consegue-se escrever um poema inteiro desde que se prescinda das vírgulas e dos pontos mas é como já disse o ideal é já ter sofrido muito ter acumulado uma dor tão grande que as palavras emergem mesmo que as não queiramos é uma ciência não é uma arte depois é deixar que o deliro da derrota nos embale e tudo terá valido a pena_

sexta-feira, abril 15, 2005

quarenta romances de cavalaria # 34 

# 35 – quarta-feira

NÃO CONSIGO VER NADA ATRAVÉS DESTA BOLA DE CRISTAL segui todos os passos com plena concentração queimei incensos raros vesti-me de negro li as invocações todas que vinham no livrinho de instruções esperei por uma noite de lua nova que é hoje e nada não se vê nada na bola de cristal nem uma cor um fumo nada e pensar que nem jantei com medo de perder a lunação precisa o momento da invocação dos anjos se calhar é por isso que não acontece nada só consigo pensar na fome com que estou mas então isso devia vir explicado nas instruções ou se calhar eles partem do princípio que os magos comem antes destas sessões sei lá não percebo nada e a bola ainda foi cara tem garantia e tudo ainda pensei em chamar cá um técnico para instalar isto e acompanhar a primeira invocação mas era mais cara a deslocação do homem que o estojo completo quer dizer a caixa que incluía a bola um pano preto para a cobrir quando está de folga um anel oferta especial de rubi e ouro de catorze quilates mais um pêndulo em bronze com uma corrente de prata de lei e um disco com a gravação de músicas transcendentais transmitidas por extraterrestres a médiuns espíritas da coreia do norte para mais o vendedor disse-me que a instalação era muito fácil e que eu até ficaria espantado com a rapidez com que tudo iria funcionar na perfeição em menos de um quê nada e já não posso ouvir aqueles sons dos extraterrestres e também porque raio não encomendaram eles uma música a espíritas europeus e foram trazer aquilo da coreia quem me garante a qualidade espiritual de um extraterrestre que se comunica com um coreano do norte fui enganado é o que é e agora não tenho lata de ir reclamar à loja a bem dizer a bola parece mais um abafador de berlindes que uma verdadeira bola de cristal é realmente muito feia mas nas demonstrações parece tudo tão perfeito não é fácil ser mago ainda não é meia noite talvez ainda consiga apanhar um restaurante aberto e jantar não se perderá tudo pelo menos não vou para a cama em jejum_

quinta-feira, abril 14, 2005

quarenta romances de cavalaria em imagem 



sonhar os sonhos 22
de cristina tavares
no ar líquido 2

quarenta romances de cavalaria # 34 

# 34 – terça-feira

CHEGUEI TARDE ao cais apesar de ter corrido o mais que pude quando me abeirei do rio já não havia nada a fazer a jangada tinha partido como um herói que se atrasa para a vitória fiquei preso nesta ilha com um cão um rato e todos os projectos de viagem os mais belos planos de vida os desejos mais íntimos tudo ancorado em terra o rato mal viu que não tinha barco desertou o cão olhou-me com um desprezo máximo como se eu não passasse de uma mosca na verdade não passo de uma mosca mas sem asas que se as tivesse voaria até à outra margem e encontrar-me-ia com os meus sonhos com a beleza infinita das plantações de jasmim e rosas de santa teresinha naquele cais nem mosca mereço ser apesar disso o cão como é cão ficou mas com os olhos baixos de vergonha e desapontamento só não me abandona por piedade canina mas juro que daqui não saio quero lá saber do cão e do que ele pensa secarei à beira d'água se não posso alcançar a outra margem com o corpo alcanço-a com os olhos sim porque daqui vejo-a e talvez isso me baste vejo aqueles guindastes os poços de petróleo os aviões a aterrar e levantar voo a imaginação preencherá o resto inventarei os passeios que não darei pelos claustros da grande fábrica de pesticida criarei tardes de verão para adormecer na relva daqui não saio o rato foi-se portanto não lhe terei que dar explicações de nada o cão não me fala pois então que se afogue na sua arrogância talvez até tenha sido melhor assim deus escreve direito por linhas tortas quem sabe se não seriam só desilusões se tivesse chegado a tempo de embarcar na jangada e posto os pés do outro lado deus escreve direito por linhas tortas aqui estarei a salvo de todas as desilusões até que seque à beira d'água dormirei sobre o imaculado leito da beleza das plantações de jasmim e rosas de santa teresinha_

quarta-feira, abril 13, 2005

quarenta romances de cavalaria # 33 

# 33 – segunda-feira

HAVERÁ NO MUNDO coisa mais detestável que uma valsa o locutor com a voz melosa e arrastada das horas mortas diz que vamos ouvir mais uma gravação histórica do cavaleiro da rosa de strauss tenho pena destes locutores imagino-os a suar colados ao microfone com as cabeças ligadas à electricidade para se manterem acordados há duas horas que ouço gravações históricas de valsas esta foi a última é a vez de um pianista um tal friedrich qualquer coisa são dezanove horas e cinco minutos temos que ir a correr para o rol de livros vem ao microfone uma senhora com uma voz de setenta anos ainda que tenha vinte e cinco fala de um dicionário analítico de literatura medieval escrito evidentemente pelos mais reputados especialistas do mundo não percebi se o dicionário era bom ou mau só o que disse é que o índice onomástico não prestava porque nem todas as entradas estavam sob a regra da colocação dos nomes pelos apelidos sem pausa ou silêncio volta o locutor da voz arrastada com um discurso sobre o papa nicolau segundo que decretou em mil e cinquenta e nove que só os cardeais poderiam escolher o sumo pontífice tudo isto para pôr no ar um coro a cantar louvores ao tal nicolau fico contente ao menos acabaram-se as valsas as duas longas horas do pior que a humanidade produziu para os ouvidos não voltarão até um friedrich qualquer coisa é melhor que valsas aleluia e o coro foi-se a musica foi-se agora é altura de dar bilhetes para o teatro já é quase noite é quase impossível sobreviver o nosso quotidiano é uma valsa permanente paciente esperarei até ao fim por um momento de radical dissonância de turbulência absoluta de total rompimento das membranas de unto que temos coladas ao corpo a vida não pode ser só isto a morte é uma esperança mas não é certa_

terça-feira, abril 12, 2005

quarenta romances de cavalaria # 32 

# 32 – domingo

GOSTAS de ouvir os sinos perguntou o menino ao pastor que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de azinheiras perguntou o pastor ao menino que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de morangos perguntou o cão ao pastor que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de caramelos perguntou o menino ao cão que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de deixar pegadas na terra perguntou o pastor ao cão que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de ouvir sinos perguntou o pastor ao cão que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de azinheiras perguntou o cão ao pastor que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de morangos perguntou o menino ao pastor que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de caramelos perguntou o pastor ao menino que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostas de deixar pegadas na terra perguntou o pastor ao menino que não lhe respondeu e continuaram a caminhar gostam do mar perguntou-lhes um melro o que é o mar perguntaram respondendo silencioso o melro continuou a nadar_

segunda-feira, abril 11, 2005

quarenta romances de cavalaria # 31 

# 31 – sábado

HÁ UM PEQUENO MAR de verdes enormes onde navegam antigos bacalhoeiros tripulados por princesas de cabelos negros e cãs recém nascidas navios fantasma escorrendo-me pelos dedos como se ouvisse mozart numa lagoa e tu à procura do sol na praia há muitos anos num lugar mais ao sul de encarnados enormes pela serra como se chovessem lírios de azuis enormes usámos palavras e não devíamos ter usado vimos sereias e não devíamos ter visto quem se lembrará que existiram rosas e porque não podemos nós existir tal como éramos voando em círculos de amarelos enormes à borda de água com ventos calmos porque se terá perdido a beleza dos dias tristes de pretos enormes ficou a cor das tuas mãos à deriva como um velho bacalhoeiro lá onde um imenso mar de verdes enormes nos espera para sempre_

domingo, abril 10, 2005

quarenta romances de cavalaria # 30 

# 30 – sexta-feira

AS ESTRADAS SÃO todas iguais e não levam nem deixam de levar a algum lugar mudamos de estrada e são as mesmas árvores que estão junto de uma que estão junto a outra se numa está um cão atropelado na via na outra é o mesmo cão que está atropelado na via talvez seja errado dizer que todas as estradas são iguais o certo é dizer que todas as estradas são a mesma se a caminho de roma nos cruzamos com um carro branco com faróis azuis de nevoeiro a caminho da bogotá um carro branco com faróis azuis de nevoeiro que se cruze connosco será o mesmo carro com que nos cruzaríamos a caminho de roma é indiferente ir para norte ou para sul para oriente ou ocidente só há uma estrada o destino é sempre o mesmo o ponto de partida igual saímos de onde estamos para nos deslocarmos para longe e o longe é o mesmo sítio de onde partimos a caminho de roma vemos um boi a caminho de bogotá vemos um avião dizemos que as estradas são outras é errado a caminho de roma olhámos para a esquerda vimos um boi se tivéssemos olhado para a direita teríamos visto um avião a caminho de bogotá olhámos para a direita e vimos um avião se tivéssemos olhado para a esquerda teríamos visto um boi a caminho de bogotá seria o mesmo boi que veríamos a caminho de roma a caminho de roma o seria o mesmo avião que teríamos visto se fôssemos a caminho de bogotá se partíssemos de roma a caminho de bogotá pensaríamos que à chegada estaríamos em bogotá e não estaríamos em roma e partindo de bogotá a caminho de roma à chegada certamente acreditaríamos estar em roma e não estaríamos em bogotá e ao mesmo tempo em budapeste helsíquia marraquexe turim tóquio ou angra do heroísmo a única coisa que se altera é a posição do pescoço_

sexta-feira, abril 08, 2005

quarenta romances de cavalaria # 29 

# 29 – quinta-feira

A TERRA MOVE-SE DISSE galileu depois de copérnico e eu pergunto se realmente se move não creio move-se em torno do sol disse galileu depois de copérnico a mim parece-me evidente a paralisia terrena o astro envelhece no mesmo sítio desde tempos sem começo o vaticano tinha razão por uma vez a inquisição tinha razão e da única vez que tiveram razão pediram desculpa não se percebe para mim é claro como água a terra é imóvel no cosmos galileu depois de copérnico observou outros astros a moverem-se e julgou que era a terra que se movia a inquisição estava mesmo certa não sei se ele declarou esta falsidade propositadamente ou se foi inocência ou infantilidade vai dar ao mesmo ou mentindo ou cego julgou a terra parte do sistema solar mas a terra está-se nas tintas para o sol e para a lua e para tudo a terra não faz parte de nada a terra é uma pedra no sapato do universo é um amontoado de poeiras humanas e é tudo nem para trás nem para a frente a terra é um embuste diabólico um acto falhado no plano da criação uma aventura perdida um desastre na auto estrada com os anos os biliões de anos que foram passando a terra ganhou humidades bolor microorganismos vários e de bactéria em bactéria chegou ao homem e de homem em homem chegou a copérnico e de copérnico em copérnico chegou a galileu e de galileu em galileu chegou à inquisição e de inquisição em inquisição chegámos aqui a esta mudez que um dia o sol deixará de iluminar e a lua de abençoar a terra não se move e sol está cansado de tanto girar à volta deste magma de miasmas_

quinta-feira, abril 07, 2005

quarenta romances de cavalaria # 28 

# 28 – quarta-feira

RADIOTERAPIA RÓMULO de carvalho telegrafo jerónimos açores planta dos pés olor jardins suspensos telegrafia caracteres ossatura botões de punho auricular autocolante automóvel autoquieto aeródromo aguardente sobreiro cão azeite corrida lago loiça lápis lacre jacaré caldeirada cinzeiro caneta reumatismo pregos secretária lamento jorge artrite ambulância assento agudo dor perna peito peitoril casca de ovo caixa de óculos almirante cavaleiro monumento colónia marraquexe lisboa atlante pernas poço lírio azul-da-prússia tabaco autocarro suicídio pânico agulha toque polifónico harmonia advento do sétimo dia paralisia cerebral recibos verdes análises pagamentos décimo terceiro mês subsídio de refeição anestesia sindical trombose revolucionária praça da canção adriano correia de oliveira ali jazz técnica mista sem título carvalhal melides porto côvo almansil acupunctura pêndulo válium ovelhas freiras conversas pirâmides cidades queimadas mário cesariny de vasconcelos sophia de mello breyner andresen camões jesus josé mário branco pintado num buraco casa havaneza arroios intendente martim moniz praça da figueira física nuclear menina do mar clavícula de salomão coito círculo dentes-de-leão salmão faisão neve no egipto colégio cardinalício puré sopa de abóbora e alface eis uma breve enciclopédia de jogos florais_

terça-feira, abril 05, 2005

quarenta romances de cavalaria # 27 

# 27 – terça-feira

DESDE A MORTE DO MEU AMO faz agora quatrocentos anos que tenho vivido descansado na ilusão de que com ele tinham morrido os romances de cavalaria têm sido séculos calmos gradualmente voltei aos meus afazeres quotidianos apesar de há muito ter deixando esse lugar da mancha cujo nome não quero recordar vivo num pequeno apartamento de duas assoalhadas mais casa de banho e cozinha nos arredores de lisboa tenho uma razoável colecção de selos e bilhetes de autocarro com números capicua e gostava que a minha vida pudesse terminar sem grandes sobressaltos pelo menos que não voltasse tudo para trás que não tivesse que me confrontar de novo com a peste dos romances de cavalaria há quatrocentos anos desde a morte do meu amo que fujo dessa peçonha como deus fugiria de um irmão gémeo quando chegaram às minhas mãos estas novas páginas perfeitamente capazes de inspirar a juventude aos mais funestos actos de nobreza cavalheiresca todo eu tremi e talvez tenha envelhecido mais neste último mês que em quatro séculos de vida esta madrugada resgatei de um caixão escondido na garagem do prédio a lança o elmo e as barbas do meu amo que desgraçadamente contra a vontade da santa igreja o excomungado miguel perpetuou naquele imundo folhetim contra o qual nem eu nem a divina providencia podemos erguer as nossas espadas tal não foram as audiências a fama a celebridade que aquele diabo conseguiu fazer projectar sobre as suas páginas de mentiras e calúnias não estranhem que fale tanto da morte do meu amo mas é do fundo do meu coração que vos digo que a noite do seu estertor foi o momento mais feliz da minha vida no entanto apesar da alegria que senti com a sua morte por causa daquela estuporada novela vi-me obrigado a emigrar tive que refazer a minha vida do nada como motorista de praça e pouco a pouco conduzir os meus dias a uma quase normalidade consegui esbater a minha pronúncia castelhana e só alguém com um ouvido excepcional notará algum acento diferenciado na minha fala e julgo que no máximo pensará que sou galego ou transmontano era já quase manhã e ainda estava sentado na sala de jantar com as alfaias de cavaleiro e as barbas do meu defunto amo depositadas sobre a mesa da santa ceia e entre os meus dedos a inundar-me o coração de negro o envelope sem remetente contendo estes quarenta novos romances de cavalaria não imagino quem está por detrás disto nem como podem ter descoberto a minha verdadeira identidade e local de residência o facto é que alguém que não se acusa recomeçou o processo e não se esqueceu de atormentar os últimos dias da minha velhice sem um pingo de compaixão já é noite e continuo aqui encharcado de pânico sabendo que não vale a pena destruir esta velha lança e elmo nem queimar estas barbas ao fogo porque mais tarde ou mais cedo outra lança seria forjada outro elmo esculpido outras barbas cresceriam no focinho de outro amo mais uma vez serei repescado para a tortura das torturas podem chamar-lhe intuição mas aposto a cabeça dos meus filhos em como depois deste sinal dado alguém vindo não se sabe de onde me baterá à porta para me obrigar outra vez ao lugar de escudeiro mas não conseguirão quando essa sombra escura e diabólica chegar já terei arrancado a cabeça e se o resto do corpo tiver forças ainda a espetará na ponta da velha lança para que saibam da minha revolta_

segunda-feira, abril 04, 2005

quarenta romances de cavalaria # 26 

# 26 – segunda-feira

TENHO MEDO QUE esta laje sob a qual estou aninhado separado e protegido seja levantada e sem nenhuma defesa o que ainda resta dos meus ossos e cabelos seja exposto aos desumanos ataques da bondade e do encorajamento tenho medo de tudo e odeio os corajosos a nobreza operária odeio o olhar canino dos mártires quero que me protejam para sempre preciso que rezem por mim que acendam velas e queimem incenso em minha memória antes que morra recusar-me-ei sempre a ser o leão da profecia debaixo desta pedra de xisto lutarei com a força que tiver para que possa continuar um rato castanho do campo enterrado na lama longe dos pintores dos escritores dos religiosos dos que estão em estado de graça quero rastejar cego como as toupeiras fugir do sol da luz dos homens bons agarro esta pedra pelas pontas e puxo-as sobre a cabeça como as crianças fazem com os lençóis acredito que se tivermos a cabeça submersa em lama todos anjos que me queiram injectar animo e confiança e saúde não terão coragem de me atacar o meu único desejo é que morra a esperança que possa enfim deixar-me paralisar perder de respiração que cada dia seja menos um e perder a inteligência o olhar o poder das mãos a expressão do rosto preciso que me protejam que rezem por mim acendam velas e queimem incenso em minha memória antes que morra neste incógnito lugar junto aos sobreiros escondo-me de todos à espera de alguém o paradoxo da minha pobreza é querer tudo uma morte sossegada e um beijo antes de dormir por isso tenho medo que levantem esta laje e sem me protegerem me deixem exposto à luz do sol obrigando-me a reagir a rugir a caçar como gostaria de ser alimentado com aquelas rações para hamsteres todos os dia numa dose menor até que os ossos deixassem de engordar e depois começassem a emagrecer e o cabelo fosse caindo e um dia já só fosse um pó uma casca desidratada de cortiça_

domingo, abril 03, 2005

quarenta romances de cavalaria # 25 

# 25 – domingo

PRIMEIRA BÊNÇÃO URBI ET ORBI abre-se o ovo nasce a galinha junto do pai cai uma agulha e roda a carapinha na cabeça sumo pontificada de um avião suado já perto do sol a fazer fumo primeiro encontro não tenhais medo abri as portas do galinheiro ainda se notam as patinhas em casco dos porcos numa circular poça de lama ruído de inveja afinal deus não tem barbas é quase hora de jantar na alemanha dá-se uísque às crianças no ruanda e aparelham-se duas grandes cabeças de gorila a um carro de ataque e a palestina agradece só mais um beijo avati puopolo avanti cerram-se os dentes flores a desabrochar na lua enquanto se dorme na china não tenhais medo abri as portas da gaveta onde estão as escrituras e os papas de aveia a alpista e o desodorizante com aroma de goiaba o sol não presta assim ao perto é muito mais pequeno do que se imagina é só uma bolinha amarela fabricada na tailândia nem sequer tem aeroporto o sol é muito mais pequeno que os açores e afinal é todo electrificado o pinto voa o pinto afinal voa dizem que os pintos não voam este voou sobre as casas os que não voam não querem ou lhes cortaram as asas e a palestina agradece por este rio acima os barcos vão pintados de muitas pinturas atracam em ítaca e homero não sabe de ulisses irmãos e irmãs voltemo-nos para o forro dos nossos casacos purpurados nefretite não tinha papeira tutancamon apetite já minha avó me dizia olha que a sopa arrefece e a palestina agradece fecha-se de novo o ovo com tampa de ouro e tudo recomeça num voo que vem do sol made in capela sistina forja-se o anel e a palestina agradece cai uma chuva amanteigada nas estradas juntam-se os peregrinos o avião aterra roda a carapinha na cabeça sumo pontificada de uma lagosta habemos papem_

sábado, abril 02, 2005

quarenta romances de cavalaria # 24 

# 24 – sábado

A PRIMEIRA FRASE ou o tom do romance o meu amigo confessou-me que tinha encontrado a voz do seu próximo romance já ontem tinha lido numa entrevista um outro romancista dizendo que acabara de encontrar o tom do seu novo romance e muitos outros romancistas fizeram esta declaração de audiovidência parece então um dado adquirido que os romancistas pressentem uma voz que precede a redacção da primeira palavra de um romance os teólogos são peremptórios ao afirmar que a audiovidência é um dos sinais da santidade se isto é verdade os romancistas são potenciais doutores da igreja dos sentidos contrariamente os poetas são rodeados por um tenebroso silêncio antes do poema e depois do poema não existe durante no poema há o antes há o poema e há o depois o único sentido que é despertado antes do poema é o olfacto pois durante o momento em que reina esse silêncio sepulcral sente-se um intenso odor a borboletas amarelas mais nada nem um sopro uma luz uma música uma vibração que seja exterior à morte do poeta antes do poema o poeta morre transformando-se num insecto com enormes asas de que prescinde para apenas rastejar na tinta alimentado por um pólen que não entra nele que não está para além dele que não existe porém há depois do poema podem registar-se poderosas temperaturas astrais movimentos brutais no magma marítimo a crosta terrestre pode romper-se o sol expandir-se a lua tornar-se masculina podem registar-se fenómenos de toda a espécie inomináveis e inconcebíveis pode dar-se tudo mas depois do poema nada abalará o silêncio dos poetas que os levará ao próximo poema_

sexta-feira, abril 01, 2005

quarenta romances de cavalaria # 23 

# 23 – sexta-feira

NÃO TENHO SENSIBILIDADE NOS LÁBIOS poderia espetar-lhes um garfo até sangrar que não sentiria nada não tenho sensibilidade na ponta dos dedos poderia tocar na chapa de um fogão que não sentiria nada não tenho sensibilidade na planta dos pés poderia calçar uns sapatos com pregos por dentro que não sentiria nada não tenho sensibilidade nas costas poderiam atirar-me dardos à pele que nada sentiria estou definitivamente preparado para enfrentar o meu maior objectivo o maior sonho da minha vida ser faquir só não me sinto habilitado para executar aqueles maravilhosos números de enfardamento de lâmpadas ou cacos de vidro mas tenho a certeza que será apenas uma questão de tempo treino e muita paciência até hoje tenho vivido amargurado por uma profissão que não escolhi e que me causa náuseas de morte apesar de todo o sucesso e do dinheiro que ganhei não voltarei a tocar piano há dezoito anos que sou pianista eu que não sinto absolutamente nada na ponta dos dedos dezoitos anos de completa insensibilidade ensaio a ensaio concerto a concerto tenho sido louvado por todos como se fosse um génio é como se tivesse algo de mágico na ponta dos dedos disse uma vez um crítico pois bem a magia é não sentir um nada que seja nas mãos nem que seja no mais pobre circo do mundo ainda antes do final da próxima semana estarei vestido com um fato de tigre a assumir a minha verdadeira vocação no centro de uma arena ainda antes do final da próxima semana um público finalmente ruidoso poderá assistir extasiado à minha primeira caminhada triunfal de pés descalços sobre tições em brasa_

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