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segunda-feira, fevereiro 13, 2006

tratado secreto do teatro #2 

# 2 – cena segunda

b – ainda preciso tanto de te beijar e cheirar o corpo…
a – um dia comi um cão. num restaurante chinês, clandestino. fomos ao canil nas traseiras e escolhemos um. não tinha um olho mas era encorpado. o olho não fazia falta… iam cozinhá-lo. soube-me bem. depois tive medo de ficar envenenada. mas não fiquei o cão era sudável.
b – …preciso ainda de te tocar os braços, as pernas. entrar nelas. porque é que não me não me deixas cheirar-te? entrar, em ti, no teu cheiro. sorri-me.
a – …sabia a frango. hoje em dia sabe tudo a frango. então nos restaurantes chineses sabe ainda mais. até o arroz sabe a frango.
b – não tens vontade de mim?
a – não te sei responder. não interessa responder-te. mas podes tocar-me, nunca disse que não podias tocar-me. podes cheirar-me. nunca disse que não me podias cheirar. podes até beijar-me. nunca te disse que não me podias beijar.
b – porque é que me estás a contar a história do cão, agora que estamos os dois aqui deitados, tão perto, tão próximos?
a – porque estou a tentar lembrar-me de coisas que senti. de outras coisas que senti. de coisas que não senti contigo. especialmente de coisas que não senti contigo. não me quero lembrar de ti dentro de mim. sei que me hei-de lembrar para sempre. é impossível esquecer não é? mas agora… e a história do cão foi uma história importante para mim. nesse dia senti um poder máximo sobre outro ser. um poder malévolo. escolhi-o e mandei-o matar e cozinhar e comi-o e soube-me bem. nunca mais vivi uma brutalidade assim. esse cão está mais dentro de mim que qualquer outro ser na minha vida.
b – assustas-me tanto. vou buscar leite. os lençóis estão encharcados em suor. eu estou encharcado em suor. não sei se meu se teu. é insuportável de qualquer das maneiras. queres leite?
a – não. traz bolachas, se ainda houver.
b – ESTUPIDEZ! NÃO HÁ LEITE, NEM BOLACHAS, NEM NADA. DEIXÁMOS ACABAR TUDO, NÃO TE LEMBRAS? PARA NÃO TERMOS DE…
a – não grites, vem para aqui…
b – queres que vá à rua caçar um cão? podias metê-lo na cama. fazer amor com ele e depois comê-lo cru ou cozinhado. ou eu. eu também podia fazer amor com ele e comê-lo contigo ou sozinho.
a – não, não quero que vás caçar um cão. pelo menos para mim. tu lá saberás o queres para ti. faz amor com o que quiseres, come o que quiseres.
b – ontem quando ia apanhar o barco para o barreiro dei com umas trinta pessoas de luto. a maioria crianças. não choravam. será que iam para um enterro ou vinham de um enterro? já não há diferença entre ir e vir. talvez nunca tenha havido. especialmente quando se está de luto. é impressionante ver trinta pessoas de assim de negro carregado. a maioria crianças, a entrar para um barco. no barreiro seguiram em fila. não sei que horas eram. há muitos anos que ninguém acerta o relógio «reguladora» da estação. no barreiro são sempre três e vinte cinco. da tarde ou da manhã. depois fui até ao esqueleto da fábrica. gosto de olhar para um rapaz que está sempre sentado com o olhar parado, virado para o esgoto do rio. gosto de ficar a vê-lo e imaginar que és tu. vejo nele os teus cabelos. têm o mesmo cruzar de pernas sabes? tem sempre um garfo na mão. um garfo de plástico. castanho de porcaria. não fala. não sei se ouve. não sei vê. imagino-o despido, como tu estás agora aqui na cama. imagino que o acaricio e ele responde às minhas carícias espetando-me o garfo. estão sempre cães vadios por lá. podia ter-te trazido um. um especial.
a – podias ter trazido o rapaz. tiveste medo? quiseste-o só para ti?
b – não, se o quisesse só para mim não te estava a contar que vou ao barreiro para ver aquele rapaz.
a – não encontras um rapaz parecido mais perto. poupavas a viagem.
b – faz-me bem atravessar o rio. além disso, já te disse, és tu que vejo nele e nunca encontrei ninguém tão tu ao meu olhar como aquele rapaz.
a – agora estás aqui. podes olhar para mim, já despida, e quem sabe imaginar o rapaz. podes fazer tudo ao contrário. imagina que eu sou o rapaz do barreiro e que tenho um garfo sujo de plástico para espetar na tua pele.
b – talvez faça isso, sim. porque não.
a – então olha-me bem. procura em cada pedacinho de mim o rapaz do barreiro.
b – sabes que não consigo só olhar-te. ou se te olho a minha cabeça enche-se de um vazio de lágrimas e eu não quero chorar porque sei que tu já não sentes as minhas lágrimas.
a – fala-me do rapaz.
b – já falei. procuro nele a pele que agora em ti é intocável. imagino nele o amor e os beijos. as conversas longas no sofá…
a – mas como é ele?
b – fisicamente?
a – sim, fisicamente.
b – nunca o fixei. só o imagino, à distância. fixei o garfo porque é insólito. mas de resto o que me interessa é que quando o olho te vejo a ti e nesses momentos tudo volta a ser como dantes. percebo que não errei em nada. que tu não erraste em nada. que é o inevitável que nos engole até desaparecermos um do outro. não fixo nada nele. vejo-o mas não o quero conhecer. quero tê-lo. dormir com ele para dormir contigo. imagino-me a adormecer abraçado a ele como se estivesse abraçado a ti, a adormecer.
a – percebo. deixa-me abraçar-te. e enquanto te abraço pensa nele. imagina que me estás a ter através dele apesar de ser o meu corpo que te abraça. o meu corpo que já não tens. talvez assim possas voltar a tê-lo, a ter-me. à minha pele, mas através da invocação desse rapaz do barreiro.
b – sim abraça-me, meu rapaz, meu tu. nesta cama. junto à velha fábrica.

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