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segunda-feira, fevereiro 27, 2006

tratado secreto do teatro # 17 

# 17 – cena décima sétima

b – temos de parar com isto. este confessionário não nos está a levar a lado nenhum. já estou naquele estado em que percebo tudo mas não entendo nada. já faltam poucas horas, se vamos ter de fazer as coisas nós, e assim vai ser, precisamos de energia, de alguma, da que resta. no estado em que estamos, nada pode ser pior que não conseguir levar isto até ao fim. daqui a pouco o sol nasce. já não aguento estes monólogos. estas… sei lá o que é isto. já não te consigo ter aqui ao lado, nem estar aqui sentado, nem levantado, aliás. ou avançamos agora ou…
a – … ou nada. ainda não é o momento. ainda temos de esperar. há coisas que não se podem fazer nem um minuto antes nem um minuto depois.
b – onde está a espada?
a – dentro da mala de chapéus cor-de-rosa, ao pé das roupas quentes que trouxemos. a espada e o cálice. envoltos num manto de veludo vermelho.
b – muito fino. coisa tão sacerdotal… «manto de veludo vermelho»… sim senhor. espada flamejante… cálice… e afinal estamos a falar de uma faca e de uma tigela. ajuda-te este misticismo, este ambiente de dicionário de símbolos?
a – ajuda-me. ajuda-me porque é verdade. é uma faca, pois, mas tem a lamina ondulada como uma chama. qual é o problema de lhe chamar flamejante? tem um punho e guardas. qual é problema de lhe chamar espada? uma tigela? é dourada, tem um pé. olha-se e é evidentemente um recipiente por onde se bebe. um cálice. o veludo protege-os, faz com que não se danifiquem. qual é o problema de tudo isto? que problema tens tu com as palavras? com os termos que uso? é evidente que o que vamos fazer e a forma como o vamos fazer é um acto sacerdotal. se tu conseguisses não estar sempre a agarrar-te às palavras. assim permites que elas te amarrem e dominem. torna-te ainda mais cativo do que já és.
b – mais cativo? – também é um belo termo, muito mais poético que preso –, mais «ca-ti-vo» não posso estar, queridinha. e as palavras tem poder. nem eu me prendo às palavras nem elas a mim. as palavras são sons, vibrações, agem sobre nós. não são inócuas. nem mesmo quando querem ser. não há nada mais poderoso que o som e a vibração das palavras.
a – bem! e eu é que sou a do ambiente místico.
b – que merda de conversa. ainda queres esperar. queres receber indicações lá do teu cavaleiro homem ou mulher, ou masculino ou violeta. queres esperar pela luz cor de laranja, pelo toque do gongo, pela estrela de belém, pelos reis magos. então esperemos. fazemos como tu queres. mas por mim ia buscar a «fa-ca» e a «ti-ge-la» e acabava já com este arrasto.
a – não! tu és livre. tu fazes-te «pre-so», mas és completamente livre. podes sair daqui no exacto momento em que o decidires. a única coisa que te «ca-ti-va» és tu. talvez seja mesmo o poder das palavras que te mantêm preso aqui ou em qualquer outro lado. mas não te iludas, se alguma coisa, nos farrapos de consciência que ainda tens, te diz que este «sacerdotismo» deve ser levado a termo, é porque sentes que assim tem de ser. até já tentaste dar razões e argumentos para aqui te manteres. não é esse amor que vive em ti e te domina que queres exorcizar? não é o limbo que queres abandonar? não foi este o único meio que, no fundo, encontraste para o conseguires? não é esta a tua derradeira tentativa para deixar de habitar esse estado entre vida e não-vida? não me lixes com ironias e considerações sobre as palavras. não há diferença nenhuma entre nós. estamos aqui em pleno pé de igualdade. o que te assusta é que sabes isso tão bem como eu. §

§ b – ainda há cigarros?

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