sábado, fevereiro 11, 2006
tratado secreto da cidade # 40
40 – décima noite – 40 de dezembro – évora
2h00
regresso ao quarto de hotel onde um crucifixo fixa o centro da cama. a um lado – esquerdo –jesus e o seu sagrado coração em prantos de ouro. a outro – direito – maria despida de véus mostra um semelhante relógio como uma rosa. (na cómoda. um cartão. de visita. florescentes letras verdes: bem vindo à muralha de elsinore.) há velas acesas. almofadas no chão para o sexo ou a oração. há gemidos na rua, punhais em acção. espadas abrindo braços flamejantes, uma lua ausente. e em mim está buda e a sua pequena semente a fecundar. renascer indiferente à matéria onde oxidados os meus olhos cegam. estou na cidade – há sirenes de ambulância, portanto estou na cidade –, o metropolitano faz tremer o quarto. todos os meus mortos aparecem oferendando-me hóstias e cálices cheios de terra. hamlet, orpheu, medeia. minha pobre mãe sem pé. tenho um ovo a tremer nas mãos e as veias a entupir. quero fugir para a rua, quero encontrar esses milhões de pessoas que apregoam existir. alguém há-de me amar. quero entrar em urinóis ou em restaurantes. reconhecer no peito a humanidade cordial que beijará o sangue do cristo que sou, se me deixarem. não quero aprender mais nada. quero ficar só no meio da rua à espera de encontrar. não quero voltar a ler. quero detestar a beleza e toda a sabedoria do universo. quero cair para o lado como os cães ou ladrar de vento em poupa. abusar do meu corpo e do corpo dos outros. engolir árvores. pernoitar em camas desconhecidas com gentes desconhecidas. quero abrir o tesouro dos meus dentes e distribuir dentadas a todos os amantes que ainda existem
.....ou não,
.....ou ser feliz, abrir os poros, cair em pequenas partículas num mar de imensas e depuradas romãs. sangrá-las, reduzir a pó toda a dor. ter alguém dentro de mim para sempre. quebrar as rédeas da saliva que me falta como me falta o teu beijo. os campos não perdoam não julgam. são pura seiva relembrando juventude. tudo foi um peixe dentro de um sonho de facas e chicotes. quero arder como um livro em alexandria
.....mas onde estou?
.....num quarto de hotel junto a um cesto de maçãs sob um crucifixo marcando o centro da cama. estarei sozinho na eternidade nocturna. sou um vaso a quem não foi dada a água e o êxtase de ser tocado. deixo-vos o clamor da minha despedida num poema ou numa flor-mesa onde escrevo as primeiras palavras de um novo evangelho: buda em mim abrindo-se na cruz sacerdotal que me foi imposta. hei-de consumir todo o líquido que os corpos possuem, esta noite, neste quarto, sou uma pérola inteligente que há-de rolar como uma cabeça cortada sobre o colo virgem do amor
.....que
.....contenho
.....no útero deste último fôlego.
2h00
regresso ao quarto de hotel onde um crucifixo fixa o centro da cama. a um lado – esquerdo –jesus e o seu sagrado coração em prantos de ouro. a outro – direito – maria despida de véus mostra um semelhante relógio como uma rosa. (na cómoda. um cartão. de visita. florescentes letras verdes: bem vindo à muralha de elsinore.) há velas acesas. almofadas no chão para o sexo ou a oração. há gemidos na rua, punhais em acção. espadas abrindo braços flamejantes, uma lua ausente. e em mim está buda e a sua pequena semente a fecundar. renascer indiferente à matéria onde oxidados os meus olhos cegam. estou na cidade – há sirenes de ambulância, portanto estou na cidade –, o metropolitano faz tremer o quarto. todos os meus mortos aparecem oferendando-me hóstias e cálices cheios de terra. hamlet, orpheu, medeia. minha pobre mãe sem pé. tenho um ovo a tremer nas mãos e as veias a entupir. quero fugir para a rua, quero encontrar esses milhões de pessoas que apregoam existir. alguém há-de me amar. quero entrar em urinóis ou em restaurantes. reconhecer no peito a humanidade cordial que beijará o sangue do cristo que sou, se me deixarem. não quero aprender mais nada. quero ficar só no meio da rua à espera de encontrar. não quero voltar a ler. quero detestar a beleza e toda a sabedoria do universo. quero cair para o lado como os cães ou ladrar de vento em poupa. abusar do meu corpo e do corpo dos outros. engolir árvores. pernoitar em camas desconhecidas com gentes desconhecidas. quero abrir o tesouro dos meus dentes e distribuir dentadas a todos os amantes que ainda existem
.....ou não,
.....ou ser feliz, abrir os poros, cair em pequenas partículas num mar de imensas e depuradas romãs. sangrá-las, reduzir a pó toda a dor. ter alguém dentro de mim para sempre. quebrar as rédeas da saliva que me falta como me falta o teu beijo. os campos não perdoam não julgam. são pura seiva relembrando juventude. tudo foi um peixe dentro de um sonho de facas e chicotes. quero arder como um livro em alexandria
.....mas onde estou?
.....num quarto de hotel junto a um cesto de maçãs sob um crucifixo marcando o centro da cama. estarei sozinho na eternidade nocturna. sou um vaso a quem não foi dada a água e o êxtase de ser tocado. deixo-vos o clamor da minha despedida num poema ou numa flor-mesa onde escrevo as primeiras palavras de um novo evangelho: buda em mim abrindo-se na cruz sacerdotal que me foi imposta. hei-de consumir todo o líquido que os corpos possuem, esta noite, neste quarto, sou uma pérola inteligente que há-de rolar como uma cabeça cortada sobre o colo virgem do amor
.....que
.....contenho
.....no útero deste último fôlego.