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sexta-feira, março 31, 2006

novos evangelhos - cartas de amor # 4 

# 4 – 31 de março de 6006 – hiroshima

à
noite
...........,antes de adormecer
...........,na garganta
,sinto uma corda que
quase me leva o coração do peito e sinto
um prazer enorme......,um inexplicável arrepio
de êxtase – ?és tu
quero tanto acreditar que és tu –
mas depois vem a noite profunda
o silêncio das luas e devagar vou
deixando de sentir os imaginados nós entrelaçados
dos teus dedos a estrangularem-me

reza por mim meu anjo do sétimo selo
com a força violenta da páscoa
..........,nosso enlace –
..........?lembras-te das palavras de lucas
..........:«aqueles que deus uniu…»
reza por mim meu menino ungido pelo santo
senhor
do amor
mestre
dos anjos e dos homens – reza joão
,reza pelo teu antigo amor – JHS

terça-feira, março 28, 2006

novos evangelhos - cartas de amor # 3 

# 3 – 28 de março de 6006 – hiroshima


ontem tive
coragem para ler a
s
terna
s
palavra
s
que sobre mim compuseste – essetextobelo
a que chamaste evangelho – acredita
sei
que o fizeste com todo o amor –
mas não sou essa gata borralheira que tão
amorosamente de mim fizeste
emsímbolos-sinaisevapores

bem sabes que vivo junto do mar –
(:teu corpo recortado
reclinado
nessa linha onde o senhor escreveu a história)

leio-te e constato
que o adulto que és devorou a criança que foste
(eu e tu deitados-nus na areia de belém)
pudesse eu recomeçar a criação do ar
do mar
da terra e de toda a primavera
pudesse ser eu o leão e
rugir a inocência de toda a superfície terrestre
,não posso
:enrolei-me sobre mim próprio
tornei-me português
envenenado de névoas..........,verbos
,pedras.......................,decassílabos
,rimas........................,épicas quimeras
......contadas em verso por desastrados poetas quinhentistas
...............do segundo milénio da encarnação

reescreve a minha história
joão
mas desta vez chama-me inês

domingo, março 26, 2006

novos evangelhos - cartas de amor # 2 

# 2 – 25 de março de 6006 – hiroshima

conheci as cidades e os homens d
as cidades
:os animais
vi anjos banhando-se no céu – cometas
,cornucópias
,nuvens de compota
li os escritos dos estetas
,ouvi o discurso dos poetas e
o gemer das carnes dançantes dos bailarinos
e outros gigantes
tenho conhecido muita gente, meu menino joão,
entrei em tantos cavalos de tróia
apunhalaram-me e apunhalei
tantas
e
tantas
vezes
que se as quisesse contar não chegariam du
as vidas-----------… tantas feridas…
e aqui estou – ainda – por ti – indiscutivelmente vivo
para me lembrar de ti..........,tenho medo joão
medo de quando morrer perder a memória
que guardo de nós
quando se morre prosseguimos um caminho
outro
uma nova constelação – e eu – jesus teu homem
,eu
,cada vez estou mais perto desse momento

já se passaram trinta e três anos
tu ainda és jovem – eu
tenho sessenta e seis anos [seis mil anos depois]
,meu amor
conheci as cidades e os homens das cidades
:os animais
vi anjos banhando-se no céu – cometas
,cornocópias
,nuvens de compota
li os escritos dos estetas
,ouvi o discurso dos poetas e
o gemer das carnes dançantes dos bailarinos
e outros gigantes
andei muito até este lugar onde serei sepultado

tenho medo..........,joão – já-pão
finalmente
tenho medo

terça-feira, março 21, 2006

novos evangelhos - cartas de amor # 1 

I - jesus a joão


# 1 – 17 de março de 6006 - hiroshima

quando me leres q
uerido jo
ão –menino de p
ele tão doce e luz nas mãos douradas
quando
me leres ..........,amor
terei aberto para ti
um sagrado amplexo de beijos
que só
receberás daqui a muitos anos
já desfeitos
nu
ma poeira de rosas sangrando
terás o corpo diferente?
terás perdido a candura da tua adolescência despida?

dentro de mim há um canal
por ond
e flúi um católico odor
correm neste meu corredor interno
palavras e sons e
cores de todas as cores

peço-te – romã – roma do meu corpo incompleto –
que esparjas pelo sopro estas palavras que te dito
agora
que o deserto nos separa ..........,a ..........areia
e as montanhas do sinai são testemunha – decora-as e transmite
-as
assim continuarei a entrar em ti
sobrevoando o espírito de cada ser que abençoares com o
t
eu
alento prateado
:
mãe
nossa
que do céu olhas a nossa morte com paixão –
terceiro milénio – hora final –
abençoa-nos madre – núcleo e átomo
,dá-nos a água e o fogo de cada dia
hoje
e pelos séculos dos séculos
faz de nós
mães
,como tu
iluminadas – que
sobre os nossos ombros recaia a estola pesada
do teu ministério e
ajuda-nos a absorver ,pela boca
espadas e todo o mal –
que no corpo de amantes e
no espírito dos que desconhecem o sabor do amor possível
se enrolem solares
os nossos dedos celestiais

dá-nos o teu corpo
deixa-nos morrer agora

quinta-feira, março 16, 2006

novos evangelhos – cartas de amor 

I
jesus a joão

II
maria a lucas

III
madalena a jesus

IV
tomé a sidharta

terça-feira, março 14, 2006

tratado secreto do teatro # 35-40 

# 36 – cena trigésima sexta

(a e b estão na cama e aí permanecerão até à cena 40.)

a – o telhado já está.
b – três pancadas.
a – quantas toneladas terá aquela esfera?
b – não faço ideia. suficientes para que com um pequeno balanço e três embates consiga demolir toda a cobertura de um prédio.
a – quero chá.
b – não há tempo para aquecer a água.
a – bebe-se água e finge-se que é chá.
b – então finge também a água que finge ser chá.
a – fingimos os dois. §

§ estamos a beber água e esta água é chá. a água morna, chá de perpétuas-roxas. temos de ter a voz clara, não é querido?
b – sim, morna… e nós… chá de sol… perpétuas-roxas… voz clara. visão aberta. pele descoberta.
a – realmente este prédio estava a precisar de ser demolido. olha a humidade no tecto, as vigas a dobrarem-se. quantos anos tem isto?
b – cinquenta, sessenta. podia ser restaurado.
a – não, por mim acho que o melhor é mesmo ir abaixo. limpar este caudal de vidas aqui acontecidas. sabes o que vão pôr aqui?
b – não faço ideia.
a – tenho dores.
b – onde?
a – nas pernas, no peito, na boca, nos dedos, nos olhos.
b – queres ir sangrar à casa de banho?
a – não, quero sangrar aqui, ao pé de ti.
b – então sangra querida. põe-te de lado. volta a boca para o meu peito e deixa que saia. eu recebo-te, beijo-te o sangue… §

§ isso meu tesouro, deita essas dores fora. eu recebo-te. recebo-te e sinto-me belo. feliz por receber este mar-de-mel-vermelho. não pares, não te contenhas, se te contiveres as dores voltarão. é preciso que estejas bem quando aquela esfera celeste entrar por estas paredes para nos levar. §

§ sangue e corpo misturados numa só pele. agora descansa um instante. deito-me sobre ti. aqueço-te. estás melhor?
a – sim. já estou bem. foi qualquer coisa que comi ou bebi. talvez o chá.

# 37 – cena trigésima sétima

a – já está por cima de nós.
b – a seguir é o nosso piso.
a – e as plantas?
b – vão connosco.
a – e a espada e o cálice?
b – voltam ao berço.
a – e esta cama?
b – será pó, como nós. e no pó desta cama estarão sempre vivas as partículas do nosso… de nós… disto. de alguma coisa que tenha a nossa marca inscrita e seja livre da doença. poeiras que não poderão contaminar mais nada.
a – tenho pena que se parta o espelho da casa de banho.
b – os espelhos são eternos. todos os espelhos. multiplicam-se como células. se estilhaças um espelho ficas com dezenas de espelhos.
a – não tens pena de nada do que aqui está e se vai ser destruído?
b – nada. até este estuque e bocados de parede que caem com a trepidação dos embates nos outros andares me faz sentir aliviado.
a – sentes-te aliviado?
b – sim.
a – obrigada por me teres deixado ficar aqui enquanto sangrava. obrigada por me teres recebido no teu peito, no teu rosto, até bebeste este inferno que tenho dentro de mim.
b – nada para agradecer. aqui, sobre ti, sinto-me os poros a abrirem-se de tamanha liberdade.
a – o ruído da maquina abrandou. é o tempo de um recuo da esfera e depois nós.
b – dez minutos. no máximo.
a – lembraste do poema?
b – qual?
a – rilke? o que tinhas escolhido para o último segundo. lembras-te? tens dez minutos para o dizer e partimos.

# 38 – cena trigésima oitava

b – «CAVALGA O CAVALEIRO EM AÇO NEGRO
PARA O MUNDO SUSSURRANTE.
E LÁ FORA HÁ TUDO: DIA E VALE
E AMIGO E INIMIGO E O JANTAR NA SALA
E O MAIO E A DONZELA E O BOSQUE E O GRAAL,
E O PRÓPRIO DEUS SURGE MILHARES DE VEZES
À BEIRA DOS CAMINHOS.

MAS DENTRO DO ARNÊS DO CAVALEIRO,
ATRÁS DOS MAIS ESCUROS ANÉIS,
A MORTE ESPERA ACOCORADA E MEDITA E MEDITA:
– QUANDO SALTARÁ A LÂMINA
POR SOBRE A GRANDE FÉRREA,
A ESTRANHA LÂMINA DA LIBERTAÇÃO,
QUE VENHA BUSCAR-ME DESTE ESCONDERIJO
ONDE PASSO JÁ TANTOS DIAS DOBRADA, –
QUE EU ME POSSA ESTENDER AO COMPRIDO
E BRINCAR
E CANTAR.


Rainer Maria Rilke - «O Cavaleiro»
«O Livro das Imagens» – 1902, tradução de Paulo Quintela


# 39 – cena trigésima nona

a – ainda bem que te conseguiste recordar do poema.
b – não é recordar, ele está dentro de mim desde que decidimos abandonar-nos a esta esfera de salvação… ou mesmo antes, quando soubemos da doença… ou ainda antes, no café, tu me levaste para dentro de ti. se tivéssemos usado a espada e o cálice tê-lo-ia dito antes de me cortar, antes de te cortar. §

§ querida, ouve… é o recuo final da máquina. a bola ganha balanço. faltam uns segundos. deixemos tudo. é preciso estarmos concentrados. enrola-te em mim. vamos também fazer de nós uma esfera. se aquela, de ferro, é celeste, que a dos nossos corpos seja terrestre. §

§ nem mais uma palavra?
a – nem mais uma palavra. um grito?
b – não, o grito seremos nós a conquistar este milagre. a casa ficará vazia. tudo ficará vazio. vão. o grito será a conquista da vacuidade absoluta. o fim da doença. «ele» vai ficar desapontado. imagino a sua pele branca, translúcida, os cabelos e as barbas loiras, como se estivessem a derreter-se. «ele» queria ver-nos no limite. na sombra de nós próprios. mas só haverá luz e o limite não se mede. agora sim, amor, voltamos ao princípio.
a – nem mais uma palavra.
b – enrola-te em mim.

# 40 – cena quadragésima

(sobre a cama, a e b, formam com os corpos uma esfera. a cena passa a ser iluminada apenas por luz negra. a princípio o silêncio é total. a luz apaga-se, escuro absoluto, ouve-se o «sanctus» do requiem de domingos bomtempo.)

fim

rodie ou entendimento dos milagres 

play

sexta-feira, março 10, 2006

tratado secreto do teatro # 30-35 

# 30 – cena trigésima

a – voltamos a estar sozinhos. podemos voltar ao princípio…
b – não. como queres que tudo volte ao princípio. esquecemos tudo o que dissemos, o que passámos? admito que não façamos as coisas pelas nossa próprias mãos. mais. é isso que quero. mas não é possível esquecer. e estás enganada, não estamos sozinhos…
a – … estamos sozinhos, agora, estamos sozinhos. já não precisamos deles… enganada? eu? voltar ao principio não significa esquecer o que seja. cada palavra que dissemos, cada gesto, foi a recompensa pela nossa espera. se as máquinas tivessem vindo quando as esperávamos pouco ou nada tínhamos sabido um do outro. teríamos ficado afundados nestes escombros sem nos revelarmos. não entendes? isto foi uma dádiva extraordinária.
b – uma dádiva? dádiva! quando isto se iniciou, eu trazia comigo uma força, uma torrente de energia para me libertar, contigo, para me libertar de mim, de ti, de tudo, força que agora não tenho. §

§ não se trata de precisarmos «deles» ou não. «eles» estão aqui. sempre. e tens de saber uma coisa…
a – não tenho de saber nada. pelo menos nada de novo… ou de velho, isso que me queres contar eu sei. és tu aquela rapariga que encontrei no café. não fiques com essa cara. sim, sei que tu és a manifestação masculina que sempre pressenti, o esplendor violeta e laranja. sei que tu e… e «ele» se comunicam. sei que ainda há pouco «ele» aqui esteve. agora acabou. estamos aqui os dois, sob esta forma. o resto já tanto faz.
b – dois actores… a contracena…
a – à pois, dois actores, contra a cena, contra o público.

# 31 – cena trigésima primeira

b – … por termos estado aqui fechados? as coisas que dissemos durante estas horas? que revelações fizemos um ao outro? conhecemo-nos melhor? se nos conhecêssemos estaríamos salvos. é disso que se trata, minha menina: salvação.
a – dizes que chegaste aqui com uma força… que a perdeste. não, chegaste aqui alimentado por uma luz e um poder que EU te dava. sempre te alimentaste de mim. estás como sempre estiveste. com as veias empregadas desta doença que ambos temos, nos condena e enlouquece.
b – passas da lucidez para a loucura?
a – lucidez é loucura. fui contaminada quando te bebi, há tantos anos, no café. a velha empregada marília ajudou-nos, sem saber, com aquele acidente da faca. no meu sangue passou a circular esse veneno teu. sabias na altura o que me estavas a fazer? ou por trás daqueles olhos envergonhados de cândida rapariga havia verdadeira inocência? depois no mar, aquela pele branca não fez mais que dominar a doença, a conduzi-la, e levar-me de novo ao teu encontro. estamos os dois contaminados. não sabemos nada, nada um do outro. o único fio que nos liga é este veneno que se transmite em ciclo vicioso de um para o outro… na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte nos separe. e a morte não nos vai separar. não há separação, nem morte sob os ciprestes, ó neófito. tens razão, há vida e não-vida. há o limbo e não és só tu que o habitas. também eu o habito. todos os contaminados do mundo o habitam. §

§ contaminados de todo o mundo uni-vos!
b – a doença deu-nos uma visão clara das coisas. quando me elevo à minha existência etérea – tu sabes que é verdade – não há doença, nem limbo, nem vida, nem não-vida. é aí que a morte habita. tu pressentiste-me assim, elevado, estando eu fechado neste corpo. tu adivinhaste-me… a mim não… adivinhaste a morte. sentiste cheiro a rato. o odor verde da morte.
a – tu não trazes nada em ti. tudo te é exterior. dizes a verdade porque estás convencido dela. a verdade é um horror porque é só uma questão de convencimento. és simplesmente um actor só. só de sozinho. só de lágrimas. só de sangue, só de seiva, só de líquido preso sob a pele. até o teu suor está contaminado por essa verdade doente. enfermas tudo o que te rodeia. há quantos anos? falas-me dessa vida que oferendaste – escolhes belas palavras, são assim os poetas, aprendem depressa o uso maléfico da etimologia – o que te corrói foi também teres contaminado com esta puta desta doença esse «amor». não oferendaste nada a ninguém, nem vida, nem a alma. tiraste tudo… mentira, oferendaste o teu sangue e sabias que ele, o sangue, destruiria propositadamente tudo à tua volta. não é do limbo de que te queres libertar é do peso da contaminação que representas.
b – e tu? não contaminaste ninguém?
a – ah, sim. já o disse. estamos aqui em plena igualdade. sozinhos e iguais. felizmente a um passo de terminar com esta «união de facto».
b – tu é que eras a serpente. a que se enrola e morde a própria cauda. és tu o ciclo vicioso. o réptil que eterniza tudo, que impede o advento da morte. dizes que a lucidez é a loucura. estamos então loucos. isso torna tudo mais fácil. quando aquela bola de ferro rebentar com esta casa, connosco, serão apenas dois reles loucos a dissipar-se entre os escombros. e olha que não há dúvida, estamos completamente lúcidos, portanto loucos.
a – ámen!

# 32 – cena trigésima segunda

b – do que disseste aceito quase tudo. quiseste esconder a palavra culpa. mas era isso que querias dizer, ou não? claro que era! e era isso só isso que interessava dizer. é a culpa que aqui nos retém. o verdadeiro veneno que nos consome é a culpa. a mim e a ti. talvez eu queira fugir dela… mas foi a culpa que nos uniu. nos breves momentos em que consigo sair do meu corpo e ver, coberto de um violeta clarividente, embrenhado num laranja de oceano, olho-nos e é só culpa que vejo. estás suja. asquerosa de culpa. e o homem loiro que te possuiu nas águas, o salvador do mundo, o alfa e o ómega, não tem feito mais que usar a tua culpa para nos manter juntos. §

§ fui poeta, pois fui. tudo isto são só palavras. foi o que aprendi. se «ele» nos tivesse levado para esse céu prometido, se ele tivesse honrado o seu testamento de sacrifício, estaríamos já na palestina solar, a terra prometida. o lugar onde as chamas e o gelo se mesclam em glória. sol e lua. mas não, é assim que ele nos mantém. culpados de tudo. neste existir, este vão de energia… na saúde e na doença, na alegria e na tristeza… mas não haverá morte que nos separe. a morte é uma dádiva individual e aqueles que deus uniu o homem não pode separar.

# 33 – cena trigésima terceira

b – o que estás a fazer aí de cócoras atrás da cama?
a – penso.
b – pensas?
a – sim penso.
b – vais para trás da cama, pões-te nessa posição para pensar?
a – sim.
b – em quê?
a – numa oração. em miúda decorei um missal inteiro.
b – e foste pôr-te de cócoras atrás da cama a pensar no missal?
a – não.
b – então no quê?
a – numa oração.
b – em miúda decoraste um missal inteiro. agora vais para trás da cama acocorada a pensar numa única oração. enquanto isto a máquina começou a içar o guindaste com a bola de ferro.
a – na «oração para o fim».
b – na oração para o fim.
a – sim, na «oração para o fim». é como o nome da oração.
b – bem, diz lá a oração. pode ser que assim saias daí.
a – queres?
b – sei lá o que quero. olha, quero-te fora daí. a bola já vai no segundo andar. pura ascensão divina. não vai rumo ao céu mas vai rumo ao telhado.
a – Ó benigno Senhor, que não faltando às vossas promessas, enviastes o Espírito sobre os discípulos, e sobre Madalena Santíssima! Senhor, por ele vos peço que derrameis sobre a minha alma as divinas luzes, com que possa conhecer o horror do pecado, e seja sempre sensível às inspirações do Divino Espírito. Ó Sábio, que plantada a vossa Igreja com o vosso Leite, a quiseste plantar por todo o mundo para glória vossa, e de Madalena Santíssima! Madalena a quem poderemos chamar João. João a quem poderemos chamar Maria. Maria a quem poderemos chamar Madalena, porque todos os nomes são de um só corpo e esse corpo é a ti que pertence! Senhor, por esses santos nomes e um só corpo, vos peço, que me ensineis a ser fiel à vossa vontade, para ser membro perfeito da Igreja, que adquiriste com o vosso precioso Leite.

Santíssima e indivisa trindade: Tu, Madalena ou Maria e João, eu vos dou muitas graças pelos benefícios que me concedeste. Atendei, Senhor, ao quanto Ele padeceu para salvar-me: atendei também às Dores de Madalena, Maria Santíssima e João, minha Mãe e Senhora, para que vos digneis conceder-me o que humildemente vos pedi, por sua intercessão.

Dignai-vos, Senhor, perdoar-me as distracções e negligências com que assisti a este Santo Sacrifício, pelo qual vos peço me concedais os benefícios que vos fiz em obséquio do meu próximo, com tanto que seja honra e glória vossa e salvação das nossas almas. Ámen
.
b – a bola acaba de passar o nosso andar. dentro em breve ouviremos e sentiremos o primeiro embate. é já certo que começarão pelo telhado. não vai demorar mais de uma hora.

# 34 – cena trigésima quarta

b – também eu sei uma oração.
a – vem para aqui. encosta-te aqui comigo. aquece-me.
b – só a aprendi em adulto. ouvi-a uma vez e decorei-a. numa igreja. uma mulher chorava muito junto à sacristia e eu aproximei-me para ouvir a conversa. sei que o padre, não sei se era padre não estava paramentado, mas falava-lhe com essa mistura de carinho e autoridade que eles aprendem. é uma forma mecânica de falar que resulta com todos os aflitos e bem dispõe ainda mais os alegres. sei que ele lhe pediu para se ajoelhar e dizer em voz baixa «o acto de contrição». ela ajoelhou-se e disse: Senhor meu, Homem verdadeiro, Criador e Redentor meu, meu sumo Bem: pesa-me, Senhor, pesa-me, Homem meu, no íntimo do coração, de tantas e execrandas ofensas que contra vós tenho cometido, por serdes quem sois, infinitamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas. Prometo, Senhor, firmemente, meu Homem, ajudado pela vossa graça, nunca mais pecar, e antes perder a vida, do que tornar a ofender-vos. Espero que na vossa misericórdia me haveis de perdoar, pelos merecimentos infinitos das vossas preciosíssimas lágrimas, e pela vossa sacratíssima Morte e Paixão. Ámen.
a – e a mulher?
b – serenou. beijou a mão ao homem e serenou. secou o choro.
a – sangue, leite, lágrimas… todos estarão contaminados nos seus «sacratíssimos» líquidos?
b – já não importa.
a – estamos aqui os dois. já só existimos os dois. é assim não é? só nós dois. e uma gigantesca bola de ferro que nos expulsará o veneno. seremos escombros reais, já que até aqui temos sido escombros de carne e osso. sangue, leite, lágrimas.

# 35 – cena trigésima quinta

(a e b mantêm-se no mesmo lugar, acocorados atrás da cama. quando se dá inicio à demolição do edifício não se ouve qualquer ruído, nem deve haver qualquer mudança cenográfica. aparentemente só a e b são sensíveis ao som e aos embates da grande bola de ferro)

b – meu amor… começou.
a – sim. começou. começámos.

(a e b mantém-se imóveis e em silêncio até ao final da cena.)




tratado secreto do teatro 

quarta parte

quarta-feira, março 08, 2006

tratado secreto do teatro # 29 

# 29 – cena vigésima nona

(a tira de dentro do cálice um pequeno envelope, um mínimo papel dobrado em quatro e lê.)

a – (lendo o rosto do envelope) Correio de Jerusalém
Testamento do Salvador (desdobra o pequeno papel)

Querida Alma,

Na véspera da minha morte quero dizer-te porque morro, quero entregar-te o meu Testamento, e quero fazer-te um pedido. Ouve o teu coração aberto, para receberes as minhas últimas confidências.
Eras tu que devias morrer na Cruz, para expiares os tormentos da tua vida; mas eu ofereci-me para sofrer e morrer em teu lugar. Quando me vires pregado na Cruz, dize comigo: «O amor do Salvador por mim é tanto que deu a vida pela minha salvação. Como devo eu amá-lo!»
Sabes que um pai deixa aos filhos em testamento o melhor que tem. Eu deixo-te o meu corpo, o meu sangue, a minha alma e a minha divindade. Crê bem alma querida, que apesar de Eu ser teu Salvador não posso deixar-te um dom mais precioso. Mas deixo-te esse dom de forma que te será bem acessível: oculto-me sob as espécies do pão e do sumo da uva para que possas unir-te a mim recebendo-me na comunhão sacramental. esta é a suprema prova do amor que Eu tenho por ti.
Peço-te, à hora da minha morte, que não me esqueças; que durante toda a vida te lembres do amor que te manifestei morrendo por ti, e deixando-te o meu corpo e sangue para alimento da tua alma. Amo-a divinamente, apesar de todas as tuas imperfeições. É à hora da minha morte que Eu te faço este pedido: não me esqueças; vive sempre no meu amor; alimenta a tua vida com a comunhão do meu corpo e sangue, que junto de ti ficam sob as aparências do pão e vinho consagrados. No reino do céu gozarás até que atinjas o sublime estado de Graça..

O teu Redent…

b … espera! não ouves?
a – por favor! não, não ouço nada. sabes que agora que iniciámos a invocação não a podemos interromper.
b – podemos sim. deixa-me ir à janela… anda ver! larga tudo. ainda estamos a tempo. chegaram as máquinas. chegaram as máquinas querida.
a – não mintas mais. anda cumprir…
b – …merda, anda ver, vê tu…
a – (pousa o cálice e a carta, levanta-se e dirige-se à janela)… são as máquinas! o prédio vai ser demolido. acreditas agora que não te estava a enganar. foi só um erro de horas. os homens esperaram pelo nascer do dia. trazem a bola de ferro. a demolição vai ser mais rápida do que supúnhamos. agora sim, tudo está certo e perfeito, tudo como me tinha anunciado o cavaleiro.
b – ouve querida, deixa-me revelar-te uma coisa sobre essa «presença» que sentes, com quem falas, esse ser… deixa-me revelar-te uma verdade que… deixa, amor. tens razão. agora sim. tudo está certo e perfeito. a cruz abater-se-á sobre nós e a nós apenas caberá o serviço da imobilidade.
a – o que fosse que me ias contar já não serve de nada. nem em mim há espaço para as tuas revelações e verdades. agradeço-te o silêncio. fomos apanhados pela surpresa da beleza. saibamos ao menos ser gratos. ser silenciosos. uns minutos que sejam.
fim da terceira parte

tratado secreto do teatro # 28 

# 28 – cena vigésima oitava

a – ele esteve aqui?
b – quem?
a – aliás, «eles» estiveram aqui, diz-me a verdade, estiveram não estiveram?
b – minha querida, só cá estive eu. aqui, ao teu lado. e «eles» quem são «eles», há mais alguma «presença» para além do teu «coisa-violeta»? nem ouve uma linha de luz laranja.
a – já te falei dele. do mar. esteve aqui. eu sinto-o dentro de mim.
b – o diabo?
a – estiveram eu sei.
b – só as minhas mãos passearam o teu corpo.
a – entraste em mim enquanto dormia?
b – sim.
a – porco!
b – entrei em ti pelos poros, pela pele, pela respiração.
a – porco, eu sinto que entraste em mim.
b – não dessa maneira. não eu.
a – então foi «ele».
b – mas «ele» quem, já não te entendo. o diabo? o cavaleiro? a fada? quem?
a – o diabo, sim, gostas tanto de ouvir essa palavra, pois ouve DI-A-BO!
b – querida, não dormiste mais de quinze minutos. eu estive sempre acordado. aqui ao teu lado, e a única coisa que fiz foi acariciar-te o corpo. olhar para ti. ouvir-te a respirar. sonhaste outra vez com a cena da praia?
a – acabou. não confio numa palavra tua. tu disseste-me que não confiavas em mim. estamos na mesma situação. não penses que me inibes de continuar…
b – …eu quero continuar.
a – ora ainda bem. vai buscar a espada. o cálice será segurado por mim. executaremos o corte gutural, verteremos a oferenda no cálice, quando as nossas gargantas estiverem abertas, também o limo que nos agarra ao fundo do fundo será cortado. o que escorrer para o cálice será a nossa oferenda ao mundo que fica. quem o beber também se salvará. acabou a espera. é a hora. assim como eu o farei, faz cumpre tu o teu trabalho.
b – assim seja.
a – pega na espada de fogo.
b – aqui está.
a – vou buscar o cálice… vê como brilha, como espera pelo que de nós chorará.
b – sentemo-nos no chão. frente a frente. tu serás a primeira, depois eu.
a – aqui estamos. ainda bem que sinto o corpo assim penetrado e a pele invisivelmente marcada. tenhas sido tu ou não. perdi a segurança, a confiança, mas esta dor fina que sinto por dentro é a força que precisava para este momento.
b – diz as palavras, faz a invocação. já não estamos no mundo profano, deixámos tudo à porta do tempo, ergamos a espada e o cálice em sacrifício.

tratado secreto do teatro # 27 

# 27 – cena vigésima sétima

(a cena passa-se em escuro total. ouvem-se ruídos abafados e palavras incompreensíveis, uma aparente conversa. o tempo de duração desta cena deve experimentar o limite de permanência em escuro total na sala e capacidade dos actores gerirem o momento. não se trata de um hiato. o público deve ter a percepção de que estão a acontecer coisas a que não tem acesso nem pela visão da acção, nem pela compreensão dos sons e palavras. podem ser utilizados sons deslocados do contexto. a cena deve terminar com a voz das baleias.)

terça-feira, março 07, 2006

tratado secreto do teatro # 26 

# 26 – cena vigésima sexta

(c fuma o cigarro junto da janela. a luz laranja dissipa-se à medida que uma luz branca, florescente, domina o ambiente. c mantém a cor violeta, mas mais ténue. c ouve a voz feminina de d mas não o vê. a dorme.)

c – escusavas de a ter feito passar por aquilo.
d – ela confia demasiado em ti.
c – confia nela. é forte. e é disso que tens medo.
d – pois talvez e o medo faz-me ser cauteloso. fazê-la reviver o nosso primeiro encontro trouxe-a de volta à insegurança. até se aproximou de ti. confessa que não esperavas. já não julgavas possível que ela voltasse a aninhar-se no teu peito, adormecer com as tuas carícias. és capaz de negar que gostaste? eu sei que sim. como sei que adoraste limpá-la. fizeste-o com a doçura de um verdadeiro amante.
c – ela não tinha sangue nenhum.
d – vá. então? não vais fraquejar agora, tens ido tão bem. és um actor em ascensão. os teus poderes são maravilhosos. és um cavaleiro! não a vais desiludir agora. enquanto assumires essa forma estarás eternamente dentro dela. conseguiste uma coisa maravilhosa, pela primeira vez ela sentiu a tua presença etérea estando tu a usar o outro corpo. já falta tão pouco…
c – é a ela ou a mim que queres?
d – eu? mas eu não vos quero para nada. cito-te: «é o teatro que me interessa». estou-me nas tintas para as vossas almas. é realmente o teatro que me interessa.

(c perde lentamente a sua coloração violeta, retoma o corpo de b. a luz branca torna-se intensa, como um imenso frigorifico, luz gelada, ambiente gelado)

b – e não chega já?
d – não. é preciso limite. quero ver o limite. nem tu nem ela chegaram ao limite. ainda. há quase vinte e quatro horas que estão no limiar desse limite, mas ainda lá não chegaram. será preciso repetir minha besta, quero assistir ao teatro da vossa desagregação. ao momento sem retorno em que já não possam voltar atrás no corpo decomposto, na alma desfeita. no fim quero acender as luzes da plateia, ver, os rostos patéticos deste público, enojado com a vossa flagelação. não te esqueças nunca: eu sou o princípio e o fim. o alfa e o ómega. a cruz da salvação. o anjo caído. o céu às arrecuas. volta para o lado dela. beija-a enquanto dorme. faz-lhe o que nunca tiveste coragem de fazer. faz-lhe o que nunca tiveste coragem de lhe pedir. garanto-te ela não acordará enquanto eu não a despertar. já. assalta-a. consome-a perante o pai e mãe de todas as coisas que existiram, existem e existirão. quando ela activar apenas se lembrará do «sonho com o diabo». tudo o que fizeres e deixar marcas ela só relacionará comigo. o salvador. verás como aquele homem branco e loiro que a contaminou naquele dia estará presente em cada dor, em cada ferida, interior ou exterior. e tu, tu meu querido, serás novamente o colo quente que ela tanto precisará. não é o teu desejo supremo? vai agora. é a hora do supremo sacro-ofício. confia e para ti acabará o limbo. está tudo nas tuas mãos.

(b aproxima-se da cama. retira a manta deixando a completamente vulnerável. deita-se sobre ela. a luz apaga-se com o estrondo de uma lâmpada a fundir-se. no escuro b grita.)

tratado secreto do teatro # 25 

# 25 – cena vigésima quinta

b – querida, não tens sangue nenhum. acalma-te.

(a coloca a mão nas pernas e mostra a b a mão vermelha de sangue.)

a – vês?
b – não querida, não vejo nada. estás descontrolada, é só isso. estás cheia de febre. não devias ter contado esta história. perturbou-te demasiado…
a – vê, merda! olha o colchão, passa a mão pelo meu corpo…

(a agarra na mão de b e obriga-o a percorrer-lhe as pernas. o corpo de a vai ficando sujo de vermelho-sangue à medida que a mão de b o percorre.)

b – querida, não tens nada. abraça-me, deixa-me adormecer-te. encosta-te a mim. tens de dormir. tens de te recompor. que estupidez esta história…
a – mas tu não vês mesmo? estás a querer pôr-me ainda mais louca?… não vale a pena… §

§ …estupidez? foste tu que me levaste outra vez para aquela praia, para «ele»…
b – pára. tenta dormir. se queres que diga que vejo o teu sangue eu digo. eu vejo. eu digo e vejo. vejo o que for preciso. vejo-te sangrar, vejo-te a ser possuída pelo diabo. se quiseres agarro-te enquanto o diabo te possui, mas por favor, acalma-te. diz-me o que devo fazer, ajuda-me a ajudar-te, a adormecer-te. pensa que será a última vez que te adormeço como antigamente, abraçada a mim, até as pálpebras te caírem de sono e tranquilidade.
a – negas tudo, principalmente o que vês. negas-me a mim. estás com pena é? pena de mim ou pena da tua incapacidade para ver o que tens em frente? negas tudo, sempre. é repugnante… estou com febre, sim. estou com espasmos que não consigo controlar, sim. e tenho SANGUE a escorrer de dentro de mim, um sangue antigo, putrefacto, TENHO SANGUE A SAIR DE MIM! §

§ eu adormeço, é assim que resolvemos tudo, não é verdade? a culpa é minha. há bocado foi a minha vez. adormeci-te para te trazer de novo aos carris desta tarefa que vamos realizar. agora é a tua vez. é a contracena. sempre a contra-cena. então? põe lá a minha cabeça no teu peito, «como antigamente». faz-me lá as festas. hipnotiza-me. leva-me para o teu limbozinho. apaga-me. amarra-me à tua negação, à tua providencial cegueira… até já está a dar efeito… és poderoso! isso, branqueia tudo o que te rodeia. uma e outra vez.
b – fica em silêncio, aquieta essa luta. não estou a fazer-te nada. só quero que descanses.
a – já estou a descansar… descansadíssima. repara nas minhas pálpebras, hã? a fecharem-se sobre o teu peito. §

§ é melhor silêncio, sim. é insuportável ouvir-te. é insuportável ouvir-me.

(a e b ficam em silêncio durante bastante tempo. a adormece com as festas calmas de b. b deixa cair o corpo de a sobre a cama. com um pedaço de pano e água do garrafão, limpa-lhe o sangue das pernas e das coxas. não fica uma marca daquele vermelho. tapa-a com o xaile. b levanta-se da cama, dirige-se à janela, acende um cigarro. a luz do quarto torna-se laranja. o corpo de b toma uma forte cor violeta.)

tratado secreto do teatro # 24 

# 24 – cena vigésima quarta cena

a – é mais simples se te disser que foi um sonho. quando contamos alguma coisa assim… simplifica-se tudo se dissermos que foi um sonho…
b – mas não foi?
a – foi.
b – foi um sonho. e como foi?
a – queres saber como foi o sonho ou como era o diabo?
b – não vai dar ao mesmo?
a – não, porque a princípio o sonho… no sonho… não havia diabo.
b – tu achas que o diabo existe, assim mesmo, sendo aquilo que o comum dos crentes pensa que é?
a – como é que o comum dos crentes pensa que o diabo é?
b – a grande força do mal. o anjo revoltado. aquele que foi expulso por deus e jurou vingança. o que possui as pessoas e lhes tira a alma para se alimentar e crescer em força e poder. aquele que toma várias formas, que aparece ao santos e os tenta. essas coisas.
a – sim. sei. existe.
b – mas foi só um sonho. ou não foi só um sonho?
a – foi um sonho. mas sei.
b – sabes como? não basta sonhar… talvez baste… que sei eu destas coisas. e de todas. conta-me então. o sonho e o diabo, ou o diabo e o sonho. conta o que quiseres.
a – há dias em que tudo é tão perfeito que nos tornamos vulneráveis, benignamente vulneráveis, às coisas mais simples. dias em que acordamos com o sol em nós. dias em que o sol acorda connosco dentro dele. dias de luz perfeita. dias em que a harmonia do corpo é máxima, não o sentimos, percebes. não sentir o corpo é sublime. como se tivéssemos tomado uma droga muito poderosa que nos provocasse a mais excelsa das sensações. são dias raros estes. ainda os haverá? às vezes penso que não somos só nós que nos estamos a desagregar desta maneira tremenda. mas pode ser, pode ser que reste alguém a quem estes dias ainda aconteçam. num desses dias resplandecentes de vida, sonhei que tinha fugido da redacção do jornal para ir para a praia. gozar. ter prazer. dar-me ao prazer. simplesmente estar ali. era inverno no sonho. praia deserta. ninguém à volta. ninguém no mar. só eu e os anjos. despi-me e fiquei a sentir a areia na pele. sem frio nem calor. puro deleite. puro deleite na eternidade do tempo dos sonhos.
b – tenho a certeza que não foi sonho. viveste isso tudo não foi?
a – vivi. um sonho. um sonho!
b – um sonho… não duvido…
a – … passou um barco ao longe que depois ficou perto e ainda mais perto, tão perto que de repente estava no barco e a areia é que estava longe. um barco sem ninguém. nem marinheiros, nem pescadores, nem rumo. andava aos círculos. círculos perfeitos. sentia-me completamente a levitar. levada a um céu só meu. ficou verão, um sol muito forte, senti a pele a queimar, na areia da praia ficou repleta de gente. o barco sempre às voltas. bruscamente o idílio em que tinha estado começou a desfazer-se. comecei a sentir-me enjoada com os círculos do barco. do calor na pele passei a sentir um frio tremendo. queria tapar-me vestir-me, mas não havia nada com que me pudesse aquecer. o barco tornou-se feio. perdeu a cor. perdeu o tamanho. desapareceu. fiquei só, numa água lodosa. via toda aquela gente ao longe mas não me saía um som da garganta. tentei nadar mas como o barco só produzia movimentos circulares.. não saía do sítio… §§§

b – estás bem, o que tens? não consegues contar o resto? não contes. abraça-te a mim. estás tão quente. tens febre?
a - … desisti de nadar. pensei na felicidade que seria afogar-me. preparei-me para me afogar. apesar de tudo ainda sentia alguma daquela paz benigna do inicio. foi aí que uma força contrária começou a tomar conta de mim. se me tivesse afogado ter-me-ia afogado ainda com alguns resquícios de harmonia. mas não, o meu corpo foi puxado para cima. fiquei na vertical. contra a gravidade, contra a força da água. como se estivesse de pé. olhei para a areia e estava tudo deserto. outra vez inverno. senti alguém atrás de mim. falava muito baixo. quase em surdina: «o teu tempo não acaba aqui. a tua condenação não acaba aqui». consegui voltar-me e ver-lhe o rosto. era pálido, com os cabelos pelos ombros, muito loiro, muito branco, uma barba ainda mais loira. sorria e era um sorriso doce. tomou-me contra ele. percorreu o meu corpo com as mãos. as pernas. entrou em mim. enquanto ele me tinha a água tornava-se cada vez mais gelada e o corpo dele cada a arder. voltou a repetir agora em voz muito alta: «o teu tempo ainda não acabou. a tua condenação ainda não acabou». senti-me empurrada, cuspida do mar. dei por mim na areia. absolutamente serena. como se nada se tivesse passado. só um fio de sangue que me escorria pelas pernas testemunhava aquele encontro. tudo parecia igual, mas já não era a benignidade de antes que me habitava. o contrário. sentia uma corrente de luz negra a percorrer-me a espinha. §

§ acordei. não há mais nada para contar.
b – mesmo que houvesse… deixa-me agarrar-te bem, estás toda a tremer. tens que te acalmar. tu mesmo me disseste, foi um sonho.
a – vê querido, olha para as minhas pernas, vê como voltou a escorrer de mim o sangue daquele dia.

segunda-feira, março 06, 2006

tratado secreto do teatro # 23 

# 23 – cena vigésima terceira


b – com que idade começaste a escrever?
a – a escrever? aprender? ou nos jornais?
b – nos jornais, claro. ou mesmo antes, a sério… tu percebes o que estou a perguntar.
a – tinha um diário. sempre tive. com quinze ou dezasseis anos, punha-me à janela e descrevia as coisas absolutamente extraordinárias que aconteciam num salão de jogos mesmo em frente da minha casa. foram esses textos que um dia reescrevi e apresentei ao director do jornal onde comecei a trabalhar. deve ter gostado.
b – salão de jogos?
a – sabes como são os salões de jogos, passa-se de tudo. vende-se tudo. troca-se tudo. são os centros comerciais mais espantosos das cidades. a janela do meu quarto dava para a rua, mesmo em frente do salão. primeiro andar. a «janela indiscreta», tal e qual. fechava a luz para não me verem, tinha uns binóculos do exército soviético que um namorado me tinha comprado na feira da ladra. com aquilo quase conseguia ver a íris dos olhos daquela fauna. sempre à noite, pois, durante o dia aquilo era normal, iam crianças andar nos simuladores de carros e essas coisas. depois das onze misturava-se tudo. polícias, pequenos traficantes a cair de podre, mais drogados que traficantes. os polícias iam lá vender a heroína apreendida, alguns comprar coca para eles mesmos. de vez em quando, para justificar a presença de fardas no salão, lá ia uma puta presa, coisa mais ou menos combinada com os chulos. levavam a que estava a fazer menos dinheiro. punham as sirenes da ramona a gritar e aquilo dava ar de que a bófia andava em cima, «a cumprir o se dever». ouvia-se muito lá no bairro: «se não fosse a polícia ir lá todas as noites nem se podia dormir descansado». eles sabem fazer estas coisas. se lá estivessem pretos também lá ia um ou outro dentro. o dono daquilo tinha sido guarda prisional não sei onde. tinha heroína e pastilhas garantidas a preços de caca, sempre fornecida pelos bófias. produto gamado durante as queimas dos apreendidos. nem imaginas como circula bem o cavalo apreendido pela bófia. imaginas. toda a gente sabe. mas finge não ouvir. não dá jeito falar nisso. se os gajos apanham quinhentos quilos de cavalo, queimam cem e põem quatrocentos a circular. nos fornos da bófia é queimado de tudo: farinha, pó de gesso, bicarbonato, aspirinas. é preciso é que faça peso nas balanças do controlo. eu ia vendo aquelas coisas, no escuro do quarto e depois escrevia. todos os dias uma pequena história. já quando era jornalista propus várias vezes fazer uma reportagem à séria sobre o trafico feito pela bófia, mas nunca houve um cabrão de um jornal que me autorizasse a avançar.
b – e por tua conta, nunca pensaste nisso?
a – claro que pensei. era o que fazia quando era miúda. mas, para além de não servir para nada, por não haver quem me publicasse a história, é um risco descomunal ir assim sozinha, de cabeça, para uma cena dessas. nem tinha dinheiro para isso. não basta descrever. é preciso provar. comprar, subornar, ter fotografias, gravações, identificar os gajos. não se trabalha sozinho numa coisa assim. limpavam-me o sebo em menos de um ai. limpavam-me o sebo de todas as maneiras, se só me matassem seria uma sorte.
b – e que mais?
a – mais?
b – o que é que se passava mais, lá no «chopingue-center»
a – queres ainda mais!... os casais gay não podiam sequer aproximar-se. se quisessem «comprar» tinham de esconder que eram namorados ou namoradas. se dessem nas vistas eram logo caçados e faziam-lhes tudo. fechavam as portas do salão. cá de fora só se ouviam os gritos, misturados com musica em altos berros e aqueles sons infernais das máquinas electrónicas. no fim da «festa» chegava sempre um carro da polícia para os levar para a esquadra. depois de lhes fazerem tudo, saíam verdadeiras bolas de sangue. o dono fazia uma queixa, com testemunhas e tudo. para todos os efeitos eles ou elas é que tinham armado uma confusão qualquer. na esquadra a «festa» devia continuar. palpita-me. no entanto, se algum gajo com massa quisesse um rapazito, ou uma miúda, bastava combinar com o senhor-ex-guarda-prisonal, parava o carro à porta e o miúdo entrava, vindo do nada. aquilo devia ter outras portas… sei lá. arranjavam miúdos novos e vendiam-nos. com dinheiro a «paneleirice» já não lhes fazia confusão nenhuma. os pretos também não entravam. ficavam à porta desde que fossem «comprar» ou «venderem-se». havia muita procura de pretos para o engate. as putas também entravam por outro lado qualquer e só se viam quando havia cliente. foi ali que vi as primeiras reuniões de skins, armados até aos dentes, tudo material vendido pela polícia. tenho mais de sessenta cadernos com estas histórias. apesar de ser uma miúda acho que contei aquilo tudo com alguma qualidade de escrita. um dia o dono foi encontrado morto à porta da padaria. prenderam uma desgraçada, completamente pedrada e bêbeda, desmaiada com um revolver na mão. o salão fechou. agora é uma vídeo-clube. quem ali passa deve achar que aquele lugar sempre foi uma capelinha das aparições.
b – foi aí que viste o diabo?
a – o diabo?
b – sim, ainda há pouco disseste que a minha história das criadas tinha qualquer coisa de diabólico. já viste o diabo?
a – já… §

§ …mas não foi ali.

sábado, março 04, 2006

tratado secreto do teatro # 22 

# 22 – cena vigésima segunda

b – até à adolescência a minha vida foi inundada pelo universo das criadas da minha família… estás a ouvir-me?
a – estou, diz.
b – preferes dormir?
a – não, diz lá. estou a ouvir.
b – as criadas já não existem. agora há empregadas domésticas. gente que trabalha como qualquer outra num emprego como qualquer outro. eu ainda apanhei o tempo das criadas. vinham servir – é como se dizia: «vir servir» –, chegavam ainda crianças, oito, nove anos. eram submetidas aos trabalhos mais duros. lavavam, engomavam, esfregavam, limpavam a porcaria das casas de banho. só cozinhar é que era reservado às mais velhas. dormiam em esconsos, sem janela, só tinham uma pia e era raro nessa altura serem autorizadas a tomar banho mais que uma vez por semana. geralmente ao domingo, para irem confessar-se e assistir à missa, em pé. cá atrás. à medida que iam crescendo iam-se tornando seres estranhos. com cabeças maquiavélicas, resultado de todas as coisas porque tinham passado. raras eram aquelas que também não vinham servir o patrão, ou mesmo mais do que um. e até as patroas. tornavam-se seres estranhíssimos. hoje é quase impossível entender este processo todo. lá pela meia idade tornavam-se más, ressabiadas, capazes de fazer coisas grotescas… é isso, grotescas. nisso é que elas se tornavam. frustradas. imersas num sofrimento profundo. e eu adorava. atraído por esse grotesco humano. essência da perversão e do martírio católico romano. adorava respirá-las. desesperadas. viradas do avesso. acossadas.
a – nunca vivi nada assim. nunca assisti a tais enfermidades.
b – dizes isso com ar de riso mas olha que era mesmo assim.
a – acredito. mas dá-me vontade de sorrir. foi tudo tão diferente comigo.
b – quando chegavam a velhas, o normal era serem recambiadas para a terra. mas em velhas ou já tinham normalizado, quer dizer, resignado, ou se tornavam bêbedas. uma ou outra lá casava. com um polícia de preferência, era muito costume. eu já só as apanhei dos cinquenta anos para cima. uma delas gostava que vestisse a roupa dela. roupa que ela roubava aos patrões. meias de vidro – sabes o que isso é? antes de haver collants, nylon e a assim. sabes, claro – e eu estremecia de prazer por vestir-me assim. ligas, cintos de renda, saias justas de cores garridas, lenços ao pescoço. gostava de me ver ao espelho, gostava de perder a noção do sexo que tinha. tornava-me um genuíno andrógino. aparente mulher, rapaz de corpo, na cabeça tanto me fazia. gostava que ela me vestisse e despisse. também gostava que ela me lavasse e de a lavar, porque ela pedia-me para a lavar. tudo às escondidas, mas nem era preciso dizer que era segredo, era evidente, estava implícito o segredo naquele estranho contacto. hoje quando penso nisto, acho curioso que apesar de toda esta mistura nunca tenha havido sombra de intimidade. nem sequer afecto. eram jogos secretos, perversos. pré-versos, que é como a palavra se devia escrever. a intimidade foi coisa que só descobri muito mais tarde. a intimidade só o amor confere. e disso já te falei. do meu encontro com a intimidade e o amor, da vida que doei, da vida que não voltou. agora esta história das criadas… estas coisas ficam. nunca mais nos saem da cabeça. nem do corpo. mesmo agora quando me olho ao espelho, muitas vezes, envés da imagem esperada, é aquela outra, adornada de criada, que vejo. naquela altura foi-me conferido um sexo primordial. nem masculino nem feminino a que depois renunciei. como talvez tenha acontecido contigo, renunciando à tua existência réptil, rastejante, ovípara. §


§ será que uma renuncia é realmente definitiva? não estarei, por exemplo neste dia, a voltar a esse estado primordial? a essa animalidade sem género? isso sim seria uma profunda bênção…
a – não te sei responder, mas faz sentido. enquanto me contavas isso, pensava justamente se não estaria, aqui, a regressar à reptilização do meu estado físico. mas mentalmente acho que a renuncia a que fui obrigada se tornou irreversivelmente humana. essa é a tragédia que sinto desde sempre. mas tu… tu talvez… neste pouco tempo que nos resta aos dois… antes da cruz… tu… sim… talvez consigas recuperar esse estado de graça. agora ainda mais puro, já sem a perversidade da presença diabólica das criadas.
b – diabólica?

tratado secreto do teatro # 21 

# 21 – cena vigésima primeira

b – ainda te lembras do teu nome?
a – não, mas escrevi-o num papel. o meu e o teu. não os recordo. tive foi a sensação de que um dia, numa outra circunstância, quando despertarmos, teremos a necessidade de os relembrar.
b – despertar?
a – sim.
b – sim o quê?
a – despertar.
b – despertar de quê, a onde, estás a falar de quê? outra circunstância?
a – acho que depois da transformação, habitaremos um outro espaço e uma vez despertos, nesse outro espaço, ser-nos-á concedido um breve período para recordar o que ficou para trás.
b – tu é que andas para trás. primeiro queres um fim, um ponto. agora dizes-me que vais despertar noutro lugar. só se fores tu, mais o teu homenzinho das luzes violeta e laranja, ou mulher ou coisa. eu não quero despertar em lado nenhum. quero ver o sol pela ultima vez, quero que a lua desapareça para sempre da minha frente. nem quero que me expliques mais teorias. fiz-te uma pergunta simples. primeiro: não me lembro do meu nome. segundo: não me lembro do teu nome. perguntei: «ainda te lembras do teu nome?» – porra. tens os nomes escritos num papelinho, não é isto verdade? pois então, será que podes ir ver os nossos nomes ao papelinho e dizer-mos? simplesmente. fulano de tal, fulana de tal. sem mais merdas.
a – não.
b – não podes, não queres, não sabes onde tens o papel ou há uma razão imensamente oculta e espiritual para que eles não possam ser revelados?
a – não.
b – mas qual é o problema de um simples «actorzeco» como eu, prestes a pôr a cabeça no cepo saber o seu nome? e já agora o teu. aliás, a minha cabeça e a tua. ainda por cima o cepo sou eu. cepo e verdugo, qual é o problema?
a – será por acaso que das nossas memórias foi limpa a referência à nossa identidade?
b – é pá, eu sei lá. já te disse, por favor, guarda as tuas maravilhosas explicações para o teu serzinho violeta quando ele estiver resplandecendo no contraste da luz cor de laranja e…
a – … como é que tu sabes que é assim que ele me aparece?
b – porque tu me disseste.
a – não disse.
b – disseste sim. não fizeste tu outra coisa. detalhadamente.
a – não. falei-te nele, na sua presença, falei-te nas cores, falei-te dessas coisas todas mas não da forma como ele se manifesta.
b – falaste sim. não vamos agora discutir isso. a menos que também tenhas um gravador a registar as nossas palavras todas e queiras ir ouvir as nossas conversas palavrinha por palavrinha.
a – não, não tenho nenhum gravador. tenho a ideia de não te ter falado desse pormenor. mas mesmo que o tenha feito, a maneira como o disseste…
b – … começou a chover. não temos mais de duas horas. o céu pôs-se em tempestades azuis. o rio está a exaltar-se. já sei que tens os nossos nomes escritos num lado qualquer. não me lembro deles, não tenho a certeza de que tu não te lembres também, mas adiante. sabes perfeitamente como tenho danificada a memória, danificado o corpo. antes que continues com as tuas histórias, pergunto-te novamente, simplesmente, sem mais: quero reaprender os nossos nomes, poderás fazer a gentileza de mos ensinar?
a – não.
b – obrigado. agora peço-te outra coisa, poderás poupar-me a mais conversas dessas, cheias de significados e combinações secretas, aparições, destinos a cumprir?
a – não.
b – podemos ao menos deitar-nos por uns minutos. guardar o silêncio possível?
a – sim… talvez…
b – ainda bem. então vamos para a cama. abraça-me se puderes. ou talvez seja melhor não. ficamos só ao pé um do outro e se o silêncio for impossível que as palavras durante esse curto espaço de tempo possam ser palavras banais. palavras de carne e osso. fazes isso por mim? ao menos isso.
a – claro que sim. mas se me quiseres abraçar…

tratado secreto do teatro 

terceira parte

sexta-feira, março 03, 2006

tratado secreto do teatro # 20 

# 20 – cena vigésima

a – estamos a um passo de reviver. tens razão. este é o meu tratado secreto do teatro. é verdade. é tudo verdade. a encenação. a crucificação. os passos da paixão. o violeta da manta e a coroa de espinhos, os meus trinta e três anos. tudo foi meticulosamente preparado: chá de perpétuas-roxas, lençóis, cama. a janela invisível onde podemos ver o queremos mas só vemos o que está determinado. o que eu determinei. só erras quando dizes que não és actor. claro que és actor. és mais do que isso, és cúmplice. ser actor é ser cúmplice de tudo, co-autor. há um momento em que a criatura de mescla com o criador. um actor nunca é manipulado. mesmo que pense que é. nem uma marioneta é manipulada. sabes tão bem como eu que um títere tem uma autonomia imensa, que ultrapassa em tanto, tanto, a vontade daquele que lhe puxa os fios. também é verdade que contracenas comigo desde o inicio. mas repara bem nessa palavra: contracenar, contra-cenar: estar contra a cena. impedi-la de passar. se um de nós avança o outro é uma barreira, um muro invisível de poder e palavra. a cada passo, o nosso trabalho é abater essa barreira. contra a cena. esperar a réplica. o público olha-nos. sabe. escuta. tem medo. o público tem sempre medo. o público vem ao teatro para ter medo. em que plano estamos nós em relação a eles? será que podemos sair daqui e tocar-lhes e bater-lhes e beijá-los? será que neste preciso momento, público e nós habitamos a mesma bolha de espaço? é possível, não se sabe. nem sequer o tempo. nós e o publico vivemos no mesmo tempo? temos a mesma hora no relógio? não saberemos nunca. e o público somos nós ou são eles? quem é o público? quem são os actores? onde estão? onde estamos? nem os vemos. sentimo-los? sim, sentimo-los, mas sentimos tantas coisas, tantos milhares de biliões de coisas, sentir o público é só mais uma coisa. não somos nada. nada que interesse. o público não é nada. é uma amalgama de carnes e banhas e ossos e olhos. e nós, os actores, tão iguais. sacerdotes? seria bom. nem carne, nem banha, nem osso. meu amor, nós só somos uma imagem, a diferença é que morreremos aqui. se tivermos sorte. se tu mantiveres esse vigor e essa febre vibrante. que a cruz se abata sobre nós. que as nossas gargantas se abram e em jorro o veneno que nos enferma verta sobre o cálice por onde gerações e gerações de público e de actores beberão, graal teatral, pelos séculos dos séculos, ámen… ou… §

§ … talvez seja tudo ilusão. nada disto tenha sido planeado. talvez eu pense que criei este espectáculo… a verdade? pois, e se não é isto? pode não ser. pode ser verdade o que disse antes. pode ser verdade o que não sei dizer. pode ser tudo. já não tenho consciência. trinta e três anos? será mesmo? não te posso jurar nada. nem que estamos em agosto, talvez ainda nem tenha chegado abril. nem sei se… sei lá se faço mesmo anos em abril. tenho a memória dessa data. lembro-me das festas de aniversário em criança. lembro-me, mas lembrar significa que aconteceu? não sei. não me interessa saber. quero escorrer. não sei a verdade. nem a mentira. nem a ilusão. desejo. desejo imensamente que esta cruz caia sobre nós e as nossas gargantas se rasguem. mais nada.
fim da segunda parte

quinta-feira, março 02, 2006

tratado secreto do teatro # 19 

# 19 – décima nona cena

b – quando é que fizeste anos?
a – em abril.
b – e quantos?
c – trinta e três.
b – e em que mês estamos?
a – agosto.
b – bem, bem. tens a idade de cristo crucificado e estamos no mês em que alguns estudiosos dizem que ele nasceu, outros que morreu. estamos em agosto é o que interessa. o mês em que o santinho ou nasceu ou morreu.
a – e o que é que isso interessa?
b – interessa-me o teatro minha querida. esta estupenda encenação, não desfazendo, que tu arranjaste. tudo ao pormenor. até deves ter um diário de bordo. trataste de tudo, de tudo, com uma perfeição rigorosa. até a tua idade. escolheste os actores, marcaste as cenas, construíste o cenário, arranjaste adereços – olhós! ali, todos, à espera do momento – é extraordinária a insignificância de um adereço antes e depois do segundo em que é usada. já o cenário está cá sempre, omnisciente, omnipotente. sim, senhor. iluminação natural, a morte à espreita sem nunca mais vir e a vida que já cá não está, actores sempre às voltas. eu falo e tu respondes… está a ir tão bem não está? tu falas eu respondo. ora agora eu, ora agora tu, mais o velho truque do chá de perpétuas-roxas em cena para não cansar a voz e sobre nós uma imensa cruz prepara-se ao olhos do público para nos esborrachar. inventaste o tratado secreto do teatro minha querida. é isso que me interessa. até a janela é uma invenção genial. nós vamos lá e vemos o que quisermos. não temos de provar nada, o publico apanha com isto de lado. dizemos: «olha o rio»! e pumba! o rio está lá, ou os carros, ou as pessoas, urinóis, gatos, borboletas, sapatarias, cornudos, engates, carros da polícia, ambulâncias, motorizadas. vamos ali e podemos ver o que quisermos que o público engole tudo. sim, porque tu até público arranjaste para isto. sem sequer faltar uma pitada de mistério e fantástico. um ser violeta, que agora é homem mas já foi uma gaja normal que partia os cigarros ao meio e queria deixar de fumar. e efeitos. sim, luz cor de laranja e vozes que parecem vir do céu mas é um gajo lá dentro com um microfone. vá, diz-me se estou a inventar. diz-me que não encenaste, montaste, dirigiste, escreveste e estás a representar esta merda toda? diz-me que é mentira. que não estamos aqui os dois a contracenar tal e qual os teus planos, os teus projectos. e eu? e eu hã? estou a fazer as coisinhas bem? ou não estou? olha-me e diz-me nos lhos que esta história das máquinas e da demolição não foi toda inventada, desmente-me, vá, porra! assume que criaste um espectáculo ao milímetro, que tens tudo sob controlo, que me tens sob controlo. eu que não sendo actor nem devia saber reconhecer os teus gestos de direcção e pensar que tudo isto é real: esta cama, estes lençóis sujos. diz-me por uma vez a verdade. eu admito que este quarto cheira a rato. claro que cheira. mas foste tu que empestaste isto com, ou não foi? até essência de rato deves ter trazido num frasquinho. só para eu negar. para eu cheirar e sentir e ver-me obrigado a mentir-ME para guardar a minha pouca força. porquê? se fores capaz de me dizer que tudo isto que passámos, isto que vivemos os dois e nos trouxe até aqui é o teu tratado secreto do teatro, juro-te, juro-te, que sem pestanejar, com todo o vigor que tu exiges, usarei a espada que flameja nas nossas gargantas, farei verter o líquido que nos envenena para o cálice, e, como um cordeiro, voluntariamente, deixarei que se abata sobre nós, sem resistência, a cruz que nos ensombra.
a – meu amor, estás finalmente tão maravilhosamente preparado. tão gloriosamente febril. amo-te.

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