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quinta-feira, junho 29, 2006

primeiros poemas # 1 

# 1

fiquei sem lábios na tua presença
e a voz foi como uma andorinha a morrer num telhado
dizem que o sol nasce
..........está bem..........,eu acredito
dizem que a luz tem o poder de comandar as marés e
o humor dos homens e
as dores de parto
..........está bem..........,aceito

mas é-me indiferente o nascimento do sol e o poder da lua

estive ao teu lado e o nosso momento foi como uma pedra
(nem podia ser de outra maneira)
nós já só somos uma pedra nos momentos lado a lado

!vá
!aconselhem-me
:«repara na natureza e nas flores dependuradas nas árvores
e nas árvores dependuradas na terra – pensa...........,pensa
pensa...........,que tudo
...........um dia
...........vai ser belo»

mas é-me indiferente a beleza que vai ser o tudo que vou ver amanhã

não vou esperar a primavera
nem pelas outras estações
nem por nada do que a natureza faz rodar

não quero cá estar
é só

que fiquem impressos os meus versos como
uma pedra fica impressa nos nossos momentos lado a lado

primeiros poemas 

frederico mira george

primeiros poemas

40 poemas

terça-feira, junho 20, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor - fim 


II - novos evangelhos - cartas de amor # 20 

# 20 – 19 de junho de 6006 – tchernobyl

contudo
,agradeço esta minha simplicidade mística de não pensar

frente a um relvado de húmus sacrificado
serenamente consagro
o pão e o sumo de uva –
esta noite chamarei a morte ao meu amplexo
crucificando-me sem ruído na cruz que já não pertence a ninguém
suicido-me..........,sim
e no alto ouvir-se-á um requiem de borboletas
suicido-me..........,sim
,marta
,discípula de jesus
,aprendiza de cristo
:amante do cálice onde o sangue da salvação eterna se perdeu

ITE MISSA EST

II - novos evangelhos - cartas de amor # 19 

# 19 – 19 de junho de 6006 – tchernobyl

fim

? que outra palavra pode trazer a um coração a fechar-se
uma intimidade tão brutal e bela e tão próxima da morte
como esta sílaba terminal

já não receberás esta carta
há cartas que se escrevem porque têm de se escrever
mas que nunca serão recebidas
nem enviadas porque as palavras que se inscrevem nelas
não são palavras
nem estrelas
nem réstias de amor
nem a flor-de-lis que representa tudo o que há de celeste no mundo

fim

? que outro nome pode ser mais precioso
que o nome que segue este ritual de enterro
maternal e religioso todo ele folhas de acácia
de um ouro triste e deitado a uma fogueira de espinhos
e garfos reluzindo por dentro do amor

já não receberás esta carta
há cartas que se escrevem porque o poema se impõe
pelas veias como o sangue se impõe pelas veias
mas o sangue que se impõe pelas veias
como o poema se impõe pelas palavras da carta
não pode seguir até ao coração que morto
renasce proscrito em qualquer parte

resta
,pois
– arimateia –
:fim
e rosas

domingo, junho 18, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 18 

# 18 – 18 de junho de 6006 – tchernobyl

a história é um ruído de guizos
à roda do pescoço de pensamentos contentes
a história são filosofias inacabadas
como uma trovoada seca seguida de incêndios
nas matas do corpo
a história não tem estrada..........,é
um comboio sem inocência
não me interessa a história
nenhuma história
não há narrativa no mundo que me interesse
mais que um olhar rasteiro a um cão cego
flanando junto aos muros para urinar

diz-me..........,arimateia – ? que sabia jesus de história
................!nada
? quantas vezes nos falou ele do passado
................!nunca
? quantas vezes nos falou ele das causas quando nos ensinava sobre os efeitos
........não sei…
........não tenho memória
........não me interessa a história
nenhuma história – nem a das pessoas que se amaram em viagem
nem me interessam as pessoas de um amor a viajar

quem me dera um cesto de figos secos

II - novos evangelhos - cartas de amor # 17 

# 17 – 18 de junho de 6006 – tchernobyl

? e tu porque choras

II - novos evangelhos - cartas de amor # 16 

# 16 – 17 de junho de 6006 – tchernobyl

? porque há-de alguém amar-me
! que artifício..........,esta coisa
de sermos amados por alguém que nos ame

quero lá saber da alma e do espírito que se eleva
depois do juízo final e da grande
trovoada da revelação
já só quero cuidar da minha santa cruz
lavá-la com óleo de cedro
fazer escorrer pelos nós da madeira cera líquida
como se fosse de novo jesus a escorrer
pelos nós da madeira (tenho cuidado tanto
desta santa cruz como se jesus ainda escorresse
como cera líquida pelos nós da madeira…)

quero lá saber o que deus pensa de mim se eu não penso nada dele
tenho
ou tive
..........acho que sim
que tenho
..........cristo
na boca
quando canto
e a crença absurda de que nos dias quentes da páscoa
tu te lembras do meu vestido redondo
manchado do sol de pregos da judeia

isto basta-me

se não me for conferida a graça da morte
viverei sem ti cuidando do lenho que trouxe para este templo sem sinos
onde nenhum mistério se esconde

II - novos evangelhos - cartas de amor # 15 

# 15 – 16 de junho de 6006 – tchernobyl

? quem crê que os anjos se ajoelham
aos pés de deus ao sabor da inconsciente invocação
sacerdotal de alguém de cabelos longos
e quase brancos como os meus

os anjos não sabem o que fazem
nem sabem para o que nascem
os anjos são anjos ,se viessem a todo o instante
ajoelhar-se aos pés de deus
de cada vez que na missa uma mulher inválida
de tantas incapacidades os invoca
não seriam anjos...............,seriam
animais obedientes a cumprir ordens estúpidas
de gente enlouquecida pela falta de amor

quando hoje voltei ao teatro e de cálice
erguido à altura dos olhos
invoquei raphael para que me ajudasse
a salvar as almas dos penitentes
senti-me tão profundamente eu
tão profundamente
ridícula de tanto eu
senti-me a própria impotência do espírito santo
a impedir o contacto dos homens
com cristo – mesmo assim raphael veio
com um sorriso límpido e irónico
pronto para consagrar pelas minhas mãos
a hóstia que tenho no cérebro
e que hei-de pôr na língua desta gente católica
sem reino nem crença

hoje vi raphael humano a velar por mim
a obedecer como um animal ao meu chamado
ajoelhando-se aos pés de deus
e ainda assim sorrindo e perdoando-me

não...............,os anjos não são anjos
nem deuses nem poetas nem artistas
nem seres nem animais obedientes
apesar de fazerem de deuses e de poetas e de artistas
apesar de se deformarem até que os seus rostos
se afocinhem em bestiais criações de bosh

os anjos são exactamente aquilo que os filósofos dizem deles
os anjos são sensações tal como os filósofos as descrevem
os anjos são o riso de um cão quando o seu dono chega de uma longa ausência
os anjos são um ar que passa pelas paredes betonadas dos edifícios imitando o vento
os anjos são um piano com asas nos pedais e sinos nos martelos

II - novos evangelhos - cartas de amor # 14 

# 14 – 15 de junho de 6006 – tchernobyl

devo despedir-me de ti
e fazê-lo claramente – como o pássaro
se despediu do olhar do primeiro homem
que olhou um pássaro à face da terra –
tenho de me despedir de ti como uma respiração
deixar-te ir e adormecer – que saudades de adormecer
em lençóis do fino linho de áfrica
,que saudades de adormecer na distância
repleta de espíritos da minha cama de
menina embrulhada em cabelos

despeço-me de ti porque o amor
se despede do amor quando não é amado
e recordar o amor é amar como um relógio parado
..........tristes relógios parados que ocupam
..........os meus corações doentes e as minhas
..........cabeças frias –
… que saudades de me encostar
em fronhas de flanela nas noites
siberianas da judeia – que saudades
de me despedir de ti meu santo essénio
salvador de magos e ilusionistas

– não sinto tristeza nem amargura
:não sou poeta – só dor pelo corpo
coberto da lã negra com que me revisto

tudo há-de murchar no meu minúsculo ventre pejado de universo

quinta-feira, junho 15, 2006

novos evangelhos - cartas de amor 



«Eu sou o Alfa e o Ómega. O Primeiro e o Último; aquele que vive. Estive morto; mas como vês, estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da Morte e do Abismo!»

Jesus a João, «Livro da Revelação - Apocalipse»


quarta-feira, junho 14, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 13 

# 13 – 14 de junho de 6006 – tchernobyl

quero que saibas que estou a chegar ao fim das letras
quero que saibas que
todas as orações deixaram de colher flores
e que tudo no meu corpo está perto de parar no silêncio
crucificado de uma azinheira junto à estrada

mas ainda te escreverei – amor

depois voltarei ao cuidado que devo ao santo lenho
à atenção presbiteriana aos fiéis
aos cânticos finais
..........decorados
..........repetidos
..........feridos

ainda te escreverei – arimateia

quero que saibas que os relâmpagos
que esta noite caíram sobre tchernobyl
me despertaram uma consciência lúcida
tão lúcida como a lucidez de uma túlipa que se levanta num
campo de rosas e se sabe cisne entre todas as rosas-pato

depois da ultima epístola não
ouvirás uma linha mais por mim caligrafada
esta trovoada que hoje me despertou
trouxe-me a doença terminal do corpo
e a iluminação total e irreversível do espírito
isto se é que há corpo
isto se é que há espírito
isto
se há doenças terminais
isto
se há
realmente
trovoadas como a trovoada desta noite

escrevo-te estas palavras – arimateia
e da janela vejo a multidão a empurrar-se em passos
quadrados encostados a um meio-dia
que nunca se tornará meia-noite
escrevo-te porque escrevendo-te me minto
com toda a verdade com que em verdade te amo

terça-feira, junho 13, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 12 

# 12 – 13 de junho de 6006 – tchernobyl

os dias não começam
os dias morrem logo de manhã
os dias morrem como um abraço morre depois de morrer o abraço
os dias morrem como morre um beijo depois de morrer o beijo
os dias não têm glória porque não há glória na terra
os dias são demasiado humanos para respirar
os dias não podem ser cantados porque ninguém os ouviu
os dias são um jogo de poetas a interrogarem-se
os dias são um jorro de palavras não proscritas
os dias são aquilo que podia ter sido se tivesse sido
os dias são como uma carta escrita que não chega
os dias são uma carta escrita cheia de amor a um amor que a não quer receber
os dias são um menino jesus morto num presépio
os dias são todas as coisas que nunca foram

penso nisto e não fico menos feliz

são coisas que sei
só coisas que sei
simples coisas que sei e de as saber tanto sei que as sei
não é a ausência da aurora que me arrebata a felicidade
não é a impossibilidade do içar do astro que me adoece
o que me conduz à febre
,à condição irreversível de criatura
,é saber-te perdido no ouro escuro do luar
julgando que nada mais existe no céu a contemplar-te
que os solares raios de deus e a
ilusão de que os deuses te saúdam

amo-te
como nenhuma pomba celeste seria capaz de te amar
e poderia até voar até aos teus lábios
se tivesses lábios – amo-te sabendo
que de tanto guardares o sangue do cálice
com o sangue das tuas veias
perdeste a memória das naves que te levaram
a vida e a força e beleza – amo-te ainda mais por isso

amo-te porque sei que não sabes amar-me

penso nisto e não fico menos feliz

afinal os dias não começam
os dias morrem logo de manhã
e é bela a noite que fica

segunda-feira, junho 12, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 11 

# 11 – 12 de junho de 6006 – tchernobyl

a tristeza que sinto em mim
saúda todas as criaturas – as lá-
-grimas e o suor nítido do adormecer
são dedicatórias à paz
fluida das imagens nascidas
para a novidade dos espantos

tenho mais sentidos despertos que
todos os seres do universo
e não uso um único desses
sentidos porque se os usasse teria que pensar
nas razões porque existo
e no amor que me foi vedado
mas que sinto como se pusesse esconder
pétalas de uma flor morta entre as páginas
de uma pesada bíblia

a tristeza que sinto em mim
é a tristeza que um muro sente nele
e um muro também ama
e sente as trepadeiras a florir
talvez até pense que deus existe
quando há trovoada

quando adoecer e a minha morte for um
quadro de vermmer e puder voltar a ser menina
ao sol
de olhos fechados de calor
estarei pronta para não pensar na tristeza
de me teres deixado de amar amando-me tanto

quando morrer não deixarei
testamentos nem palavras codificadas
em evangelhos longos
com símbolos azuis e vermelhos

não tenho nenhum sentimento nos meus sentimentos

o amor não é um sentimento
por isso nunca se desocultou aos homens

a minha única riqueza é ser cega
eu
cega
e saber
que nada
– jamais – me resgatará

II - novos evangelhos - cartas de amor # 10 

# 10 – 8 de junho de 6006 – tchernobyl

se pudesse ter um gato
mesmo deformado..........,de
olhos velados e riso cortado
adormeceria quente
ajoelhada
erguida e despida nesta neve de barro
gelada de tanta força – um gato
uma sílaba – um acorde e uma corda
que me dependurasse nesta cruz de
ébano inventado e sangue
a escorrer-me pelas costas
se pudesse…
um gato…
uma corda…
… quente…
ajoelhada cruz… eu
quente
dependurada
rosa e sangue
comigo erguida
despida
nesta neve de barro… adormeceria
seria
verão nos meus braços
e lábios talvez se rosassem

quarta-feira, junho 07, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 9 

# 9 – 4 de junho de 6006 – tchernobyl

não tenho cortinas nas janelas
nem roupas para os dias de calor
quero lá saber da metafísica e das horas certas
tive uns chinelos de quarto que morreram de velhice
e sei enrolar tabaco de onça só com uma mão
..........a esquerda
usando
sempre
mortalhas sem cola
gosto de fumar tabaco de enrolar
dantes
fumava cachimbo mas agora
com os dentes que tenho…..........,nem aguento
o quente do fumo na língua

tenho um menino jesus nu tatuado nas pernas
um menino jesus que nunca conheceu deus
nem os anjos
nem santos como tu ou pedro ou tiago –
o meu menino jesus nu
tatuado nas pernas
é deus e os anjos e os santos
– santos como tu –
,magos..........,flores
e toda a miríade de iluminados fugitivos dos céus
para brincar na terra onde nunca chegaram a ser felizes –
o meu jesus menino nu
tem um piano belo
tatuado nas pernas

domingo, junho 04, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 8 

# 8 – 3 de junho de 6006 – tchernobyl

cansava-me de brincar
– quando era criança brincava até me cansar
e é tão estranho uma criança cansar-se de brincar

não conheci as ciências
não estudei as letras com que se compuseram
os livros da tora ou os versos de cesário
..........fui uma criança que
..........estranhamente
..........se cansava de brincar
..........ou brincava até se cansar

quando vi jesus pela primeira vez
..........na tarde em que minha irmã maria
..........lhe ungiu os pés lavando-os e
secando-os com os cabelos
tornei-me uma mulher cansada de brincar

jesus teve sempre um rosto triste
um olhar doente
..........uma pele doente
mas a voz entrava brutalmente pelos meus ouvidos
e levava-me à frente de todos os mistérios
instigando-me a brincar até me cansar

jesus levou-me até ti...........,josé de arimateia
..........que conheceste as ciências
..........e estudaste as letras com que se compuseram
..........os livros da tora e os versos de cesário e ainda assim
guardavas no andar a normalidade
de uma oração

sou a guardiã da cruz – a mulher cansada
que todos os dias recita a eucaristia
numa cidade fechada à chave
nos esconsos de um velho teatro
sou a guardiã cansada
de brincar a amar-te
transformando vinho em sangue
ao invés de ti que fazes do sangue vinho

sou a guardiã da cruz
recitando a eucaristia até estar cansada

sábado, junho 03, 2006

Ensaio, edições 2006 

Frederico Mira George

O Princípio do Caminho
Budismo, a Arte da Ética

Publicações Dom Quixote, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 7 

# 7 – 2 de junho de 6006 – tchernobyl

como um arquitecto que desenha uma linha
na abstracção material do desenho
sabendo que nada
..........muito menos uma linha
vai dar a lado algum –
sinto-me um argonauta
de desenhos rectos fingindo que te
posso tocar aí aonde estás e não sei onde é

as estrelas fingem que são estrelas
no inicio suado da noite
estou num oriente onde o sol não nasce
e naturalmente
amo-te
sem esforço
como um arquitecto que desenha uma linha
na abstracção material do desenho
sabendo que nada
.........muito menos o amor sem esforço
pode amar sem esforço

sexta-feira, junho 02, 2006

Poesia - Edições 2006 

Frederico Mira George

Caixa Negra - 1º Vol.
Edições QUASI,2006



















Frederico Mira George

Quarenta Romances de Cavalaria e Outros Poemas
Publicações Dom Quixote, 2006

II - novos evangelhos - cartas de amor # 6 

# 6 – 1 de junho de 6006 – tchernobyl

conheci uma intimidade
que me fez não acreditar em deus
que nunca ouvi
mas viver um deus que está em todos
os lugares da minha intimidade

estou agora deitada com os pés cruzados
a olhar o tecto..........,mas não penso nisso
,sinto a tua presença santa
como se uma andorinha descesse
sobre mim como um falcão
certeiro a um rato e imagino que me levas
em silêncio ou em ruído

sei –
a verdade não está na cruz que guardo
nem no cálice que conduzes
sei –
estou deitada e oiço um comboio
e olho o tecto..........,mas não penso nisso
sei –
a exactidão está na intimidade
que me ensinaste e não há mistério em nada

há simplesmente coisas com existência
e é-me indiferente a continuidade da humanidade

tristes almas humanas e animais
que precisam de pernas para andar
quando na realidade todos desejam asas
sabendo que jamais terão asas
e por isso invejam os anjos – que invejam
os homens e os animais porque os homens e
os animais têm pernas para andar – pobres anjos
que invejam as caminhadas primaveris dos burros
e dos cavalos
e o cacarejo das galinhas num dia de sol –
pobres todos os que pensam num depois
de amanhã pressupondo sempre que haverá
amanhã e que esse amanhã poderá ser
conquistado e ultrapassado –
pobres os que pensam na passagem dos dias

estou deitada a olhar o tecto..........,mas não penso nisso

tenho os pés cruzados
e toda a minha intimidade se perderá ainda esta noite
porque a minha intimidade é tua
e tu não descerás sobre mim como uma andorinha-falcão
para me levar no silêncio ou no ruído

nos dez anos da morte de mário viegas 

nos dez anos da morte de mário viegas



um dia vi-te e
dei por mim
a deixar de ter o cérebro dormente

o luar
essa coisa que não pensa
mas é
saía-te pelos dentes
e pelos dedos
e pelos gritos..........,pelo
odor
a álcool
eu
..........que não sou homem
..........nem mulher
..........nem nada de intermédio que o sol possa contemplar com dignidade
amei-te como uma bolha de ar a descobrir-se
a erguer-se no ar que nesse dia
respirámos
lacrimosamente
num teatro onde tu foste morte e deus
e madeira e tecto e vassoura
e o mistério de todas as coisas
que fazem das casas teatros e dos teatros casas

contigo as coisas não tinham significação
tu eras uma borboleta de asas paradas na cor
uma voz que se expandia na pele
e arrancava a perfeição que na vida torna
tudo
imperfeito –
o sol tem um leve cheiro animal
mas tu eras além do sol
e da matéria animal
e do teatro
e dos homens
e das borboletas

senti entrar em mim o sangue e a saliva
que desprendias
celebrando que nada
de ordenado há
na natureza – pela tua boca
finalmente
deixei de estar em mim

nos teatros onde excomungavas os restos
de gente que atavas e desatavas como
um menino ata e desata as cordas de um baloiço
a uma árvore
eu
..........que não sou homem
..........nem mulher
..........nem nada de intermédio que o sol possa contemplar com dignidade
amei-te até se acabar o milagre
até me sentir humano dos pés à cabeça
como um garfo se sente garfo dos pés à cabeça
como uma faca se sente faca quando se espeta
no coração de um menino que ata e desata
cordas
numa árvore na esperança brutal
de existir num baloiço a baloiçar

morreste e isso basta-me
não preciso de te invocar
não estás presente.........,desconheço a ausência
das coisas
de cada vez que fumo um cigarro lembro-me dos
teus dedos a fumar um cigarro
– é verdade
guardo memórias
..........dos teus cigarros
..........do fumo
..........e do pó do último camarim

e depois de morreres instalou-se um silêncio
doce e tudo o que sei de ti é de ouvir contar

eu
..........que não sou homem
..........nem mulher
..........nem nada de intermédio que o sol possa contemplar com dignidade
vou agora dormir imaginando-te ícaro
a sonhar num dia de chuva
um ícaro a aproximar-se com asas de cera
de um cigarro de prata

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