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terça-feira, dezembro 30, 2003

Cascais - como memória de um passeio 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Como memória de um passeio junto ao mar de Cascais, no frio da véspera de Natal, relembrando a aparição inesperada da casa de Mircea Eliade na Rua da Saudade.

"Devaneio entre Cascais e Lisboa. Fui pagar a Cascais uma contribuição do patrão Vasques, de uma casa que tem no Estoril. Gozei antecipadamente o prazer de ir, uma hora para lá, uma hora para cá, vendo os aspectos sempre vários do grande rio e da sua foz atlântica. Na verdade, ao ir, perdi-me em meditações abstractas, vendo sem ver as paisagens aquáticas que me alegrava ir ver, e ao voltar perdi-me na fixação destas sensações. Não seria capaz de descrever o mais pequeno pormenor da viagem, o mais pequeno trecho de visível. Lucrei estas páginas, por olvido e contradição. Não sei se isso é melhor ou pior do que o contrário, que também não sei o que é.
O comboio abranda, é o Cais do Sodré. Cheguei a Lisboa, mas não a uma conclusão."


Bernardo Soares

segunda-feira, dezembro 29, 2003

HORA DO DIABO 44 - Lisboa 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

IMAGEM


...é bom andar em lisboa e recordar as felicidades e os desgostos, ligando-os [re-ligar(e)] a esquinas, jardins, prédios, centros comerciais. é bom olhar o tejo e sentir o gosto de lágrimas antigas. lisboa oferece-nos uma história. a nossa história. nem todas as cidades são assim, por muitos anos que as tenhamos habitado. lisboa é senhora de poderosos sortilégios...

...quando era criança, os cabeleireiros ostentavam maravilhosos secadores de pé, estilo anos 50, sob os quais mulheres de todas as idades cozinhavam as cabeças, previamente espetadas com uns ganchos-agulha prendendo ao cabelo rolos azuis claros, verdes e cor-de-rosa. passei muitas tardes a ver a cabeça de uma criada da minha avó assando em lume brando...

...hoje dei com secador antigo, no lixo, ao pé do arco do cego. belíssimo, um belo naco de nostalgia. aquilo deve valer uma fortuna de dinheiro (claro que os proprietários, nem sonham). mais, vale a memória de toda uma infância vivida nesta cidade...

...ao ver aquele secador perdido no lixo, revivi, frame by frame, momentos inesquecíveis de tagarelice e má língua. revisitei os rostos de todas as criadas das avenidas novas, até lhes senti o cheiro a perfume colonial e sabão desinfectante...

...como desejei ter força para arrastar aquele secador-de-cabeças-e-cabelos-de-criada...

...talvez tenha tido uma infância engraçada a avaliar pelas recordações...

...talvez...







HORA DA FÉNIX 49 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Por favor, não percam a exposição "Tanta Dor/Too Much Time, Women im Prison" de Jane Evelyn Atwood, no Centro Português de Fotografia, Cadeia da Relação-Porto, até 14 de Março de 2004.

domingo, dezembro 28, 2003

HORA DO DIABO 43 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

está quase a passar mais um ano.

neste momento, em milhares de monitores de computador, em milhares de países que se gerem pelo calendário gregoriano, deve estar escrita esta frase, como uma resposta de oráculo, como a verdade inscrita nas cartas.

e que interessa essa passagem? quando chegar esse momento a que chamamos meia-noite, será menos uma hora nos açores e mais uma em espanha. só com os fusos horários podíamos adiar horas a passagem do ano. já me contaram que alguns milionários obscenos (como todos os milionários) andam de avião saltando de país em país a papar festas de ano novo.

tudo o que é importante na vida dorme a essa hora: crianças, animais e mortos. claro que as crianças e os animais acabam por acordar com o barulho histérico dos foguetes municipais, das bebedeiras encomendadas pela agenda da diversão. os mortos não sei se acordam.

em évora, numa dessas noites, uma mulher afogou-se em chamas. auto-combustão. fogo espontâneo no corpo. das tripas para todo o corpo. rebentaram-lhe os intestinos de brasa e foi ardendo até ao cabelo. uma mulher de trinta e cinco anos. juntaram-se bombeiros e ambulâncias, mas nada era possível fazer para roubar o ser às chamas que lhe brotavam do ventre. ainda cheguei a ver os restos de corpo embrulhados num cobertor cinzento. já toda a gente se esqueceu. não interessa lembrar estas coisas. não “lhes” interessa registar na consciência como esta cidade é negra apesar da sua aparência branca, dos raios de luz que vendem em postais eleitorais. mas que a mulher ardeu, ardeu. o cão que vivia com ela dorme agora ao relento na praça do giraldo. um cão enorme, castanho claro.

quando o diabo emerge do chão de mármore da igreja de santo antão, o cão olha-o fixamente. é dos poucos que ousa enfrentá-lo. os outros, os indígenas, fingem que não o vêem, e quando alguns turistas, na presença incendiada do saramago, fogem em corrida desesperada ruas fora, dizem que são loucos, que vêm para cá fazer o que não fazem na terra deles.

está quase a passar mais um ano.

está?

sábado, dezembro 27, 2003

HORA DO DIABO 42 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

a vida tornou-se uma estranha forma de luar. todo o sol que me iluminava se foi transformando em noite. é uma lua sem crescentes que agora habita o meu cérebro. os dias são arrastos de pensamentos, memórias, choques em cadeia, perfumes também. nunca esqueci os odores. nunca esqueço os odores, os odores são parte da minha alma, a minha alma é um odor passado.

a morte já não é o que mais assusta. a minha morte quero dizer. a morte dos outros ainda é um terror insolúvel. uma espinha na garganta. ouço músicas, ouço livros, ouço imagens em ecrãs, procuro descobrir em mim um ponte com o presente.

como é possível viver o aqui e agora como dizem os especialistas na espiritualidade humana? como é isso possível se não nos livrarmos da ilusão do passado, da ilusão do futuro, que são a mesma coisa, são medo e expectativa e terror nocturno?

velas apagadas, de que servem velas apagadas? para as acender? é uma possibilidade, mas interessará a alguém acender uma vela como eu, apagada na claridade?

a rádio promete tantas coisas, entretenimento, sucessos de noticias, há sempre alguém pior que nós, não é isso que nos dizem? podíamos estar presos, podíamos estar no hospital, podíamos estar mortos, até enterrados ou cremados. dizem-nos que nos devíamos consolar com o mal dos outros, antes isso que o uma perna partida. sim. é verdade. devia consolar-me com a desgraça dos outros. pensar em campos de concentração nazis, na sida, no cancro, na eutanásia, nos sem abrigo, eu sei lá. e penso, e penso, e penso. mas que resolve isso? talvez console os beatos da humanidade, felizes os pobres de espírito…

sento-me escrevendo estas palavras como se me pudesse salvar pela oração. e talvez salve. que a oração da escrita é o fogo do coração.


HORA DA FÉNIX 39 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

“… durmo perfeitamente, durmo perfeitamente, como diz a minha mãe, durmo como um anjo…” – durão barroso
“… como diz o povo, o pior cego é aquele que não quer ver…” - antónio costa


quase nove da manhã. acordo com estas frases, ditas pelos próprios, emitidas pela tsf..

estes sínteses do que se diz na politica, frases soltas, postas no seu verdadeiro contexto, é verdadeiramente genial. não imagino quem seja o autor destas peças de oiro da telefonia sem fios. mas quem quer que seja (mesmo que seja mais que um) devia ser beatificado nos nossos corações.

semanas de páginas escritas com comentários jornalísticos, semanas de comentários políticos na televisão, semanas de post’s em dezenas de blogues, valem menos que estes segundos de genialidade criativa, que demonstram por a+b o vazio da prosápia partidária portuguesa. mais, estes segundos de emissão, são o espelho fiel da própria politica nacional, resumida a excitações retóricas, impotentes, mesmo castradas, vindas de frígidos e frígidas deputagens parlamentares. para-lamentares.

viva o re-mix parlamentar dos discurssantes portugueses, pelos extraordinários dj’s da tsf.

numa telefonia perto de sí.

sexta-feira, dezembro 26, 2003

HORA DO DIABO 41 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Escultura de José Pedro Croft, Évora

Agora sim, o frio tornou-se implacável. Évora está soterrada pelo Inverno. Sair de casa é um sacrifico, um sacro-oficio, uma oferenda.

quinta-feira, dezembro 25, 2003

HORA DA FÉNIX 38 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes


MAIS PALAVRAS QUE CHEGAM NO DESABAFO NATALÍCIO, SÃO DO JORNALISTA PAULO NOBRE,
Para ti um abraço,

"Está o Frederico a queixar-se com a barriguinha cheia. Ora experimente um dia destes - pense nisso primeiro, faça contas depois, convém até falar com a companheira pois ela pode não achar graça nenhuma e não vale a pena estar a fanar a lamela das pílulas -, mas dizia, experimente um dia destes alargar a famelga.
Depois do acto consumado, de ter a certeza que o atraso é-hipótese-mais-que-provável, dirija-se ao ginecologista. Aí à segunda ou terceira ecografia em lugar de um pauzinho tá lá um buraco.
Deixe passar uns anitos. Não precisa de agitar. A coisa actua de modo natural, mais tarde ou mais cedo. Adiante.
Está o meu amigo sentado frente ao teclado meditando cheio de Saudades de Antero e aparece ela, solicitando preciosa ajuda ao pai, armada de Barbies (é mesmo com "s" no fim) e Nenucos (o meu amigo até é bem capaz de não saber o que são Nenucos, o que é uma sorte, devo confessar-lhe) numa mão. Na outra, pequenos trapos de muitas cores, incluindo aquela cor monocromática simbolizando o sarro, sinónimo de múltiplas utilizações - e disto o meu amigo percebe mais que eu.
Levanta os olhos do teclado, desvia-os do monitor, olha admirado por cima dos óculos, testa franzida e ouve com atenção de pai a sacramental pergunta da piquena: "Pai-podes-ajudar-me-a-vestir-as-meninas-que-eu-não-sou-capaz?"
Pois meu caro. Estou desejoso que o meu filho cresça e me peça para dar uns chutos na bola em plena relva do parque infantil. Posso não acertar na ba-li-za, já que faço parte desse clube de azelhas que você não menciona, mas do qual se nota ser membro. Não queira saber a satisfação que me vai dar falhar a ba-li-za. Ou, prefeitamente plausível, mesmo a bola. É mais reconfortante que agarrar num molho de vestidos e enfiá-los pela cabeça abaixo de uma boneca mercantilista que na última contagem já eram em número de catorze na prateleira do lado direito à entrada do quarto das brincadeiras aquela mesmo por cima dos cinco ou seis Nenucos junto do caixote com trezentos pratos, vinte e cinco bules, setecentas facas, garfos e colheres onde diariamente são confecionadas as papas alimentícias para aquela gente toda em cozinhas de plástico onde até os fogões parecem debitar chamas.
Um grande abraço e aproveita para comprar uma bola nova ao puto. Essa é de borracha, está velha e não tem piada nenhuma. Daqui a um mês, depois de passada a parvoice das prendas, aproveita e compra umas chuteiras. Não é concebível umas luvas e uma bola nova não terem direito a um par de botas.
Sinto-me enjoado de bonecas. Sinto saudades de dar um pontapé na bola. Ardo em desejo de ser confrontado com a obrigatoriedade de comprar uma bola, umas luvas, umas botas "com pitons, pai, daqueles que se desenroscam, não te esqueças"... Só espero que a cervejola das seis não leve a barriga a proibir as pernas de se moverem.

Um abraço

Paulo Nobre"

quarta-feira, dezembro 24, 2003

HORA DA FÉNIX 37 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

DOS MURMURIOS DO SILÊNCIO ESTAS SÁBIAS PALAVRAS DE TIAGO BARBOSA RIBEIRO

Amigos/as,

É Dezembro. Altura de ser bom, diz-nos Gedeão. Para lá dos muros de pobreza e esquecimento, é uma época em que as cidades são invadidas por cheiros fortes, sólidos, burgueses. A identidade religiosa é uma mera reminiscência simbólica: é uma noite de consenso e isso basta. Nos vãos dos deserdados, as ruas e a fome são mais largas. O frio do Norte, a maior das densidades. Porque o natal de uns poucos continua a ser a celebração da miséria para tantos outros: para demasiados outros. Nos sulcos dos despojos, sejamos a memória desse esquecimento. E a parte que permanece em falta na construção de um mundo mais justo e igualitário.
Votos de um natal solidário e progressista,

Tiago Barbosa Ribeiro

«Natal de 1971

Natal de quê? De quem?
[...] Natal de liberdade
Num mundo de oprimidos?
Natal de uma justiça
Roubada sempre a todos?
[...] Natal de caridade,
Quando a fome ainda mata?
Natal de qual esperança
Num mundo todo bombas?
Natal de honesta fé,
Com gente que é traição,
Vil ódio, mesquinhez,
E até Natal de amor?
Natal de quê? De quem?
Daqueles que o não têm? [...]»

|| Jorge de Sena, «Natal de 1971»

terça-feira, dezembro 23, 2003

HORA DA FÉNIX 36 - HORA DO DIABO 40, LISBOA 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

...amo-te tanto cidade. as ruas conhecidas, o frio-de-rio-e-mar, a baixa e as luzes douradas. os carros, os fumos coloridos da noite, as mulheres e os homens e as crianças e os cães e as flores e as motas e as borboletas - que também as há – as moscas e os autocarros e os estudantes e os bancários e os empregados de seguros retornando às suas casas celulares. amo-te cidade das tristezas e das mortes. amo-te cidade santa dos martírios. amo-te tanto, tanto, tanto. amo-te minha mortalha de betão...



segunda-feira, dezembro 22, 2003

HORA DA FÉNIX 35 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Há dias em que a bênção do sol nos preenche de tal forma que nos sentimos, por fim, em paz. Esta manhã foi uma dessas gloriosas manhãs de Inverno. Sentado no jardim público, observando o meu filho a jogar à bola, senti um vulto a aproximar-se de mim. “Não tenha medo, sou uma pessoa”. Era um menino de nove anos, talvez, com a cara toda cheia de cicatrizes de queimaduras. As mãos também. Sentou-se ao meu lado com um saco cheio de gomas.

domingo, dezembro 21, 2003

HORA DO DIABO 39 - O NATAL É... 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Se acha que o Natal é AMOR, clique ali
Se acha que o natal é POESIA, clique ali
Se acha que o Natal é LIBERDADE, clique ali


sábado, dezembro 20, 2003

HORA DO DIABO 38 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

O CORTE
"Que emoção -
O meu polegar em vez da cebola.
A cabeça foi quase toda,
Apenas presa por um fio

De pele
Como a dobra de um chapéu,
De um branco de morte.
E depois aquele vermelho pujante.

Meu pequeno peregrino,
Os índios arrancaram-te o escalpe.
A tua crista de peru
É um tapete desenrolado

A partir do coração.
Tropeço nele.
Agarrada à minha garrafa
De rosé espumoso.

Uma comemoração, é o que isto é.
Saídos da vala
Correm milhares de soldados.
De casaca vermelha, todos.

Estão do lado de quem?
Ó meu
Homúnculo, estou doente.
Tomei um comprimido para matar

A fina dor
De um corte de papel.
Sabotador,
Kamikaze -

A mancha na tua
Máscara Ku Klux Klan
Babushka
Escurece e alastra e quando

A polpa
Arredondada do teu coração
Enfrenta o seu pequeno
Moinho de silêncio

Como saltas -
Estropiado veterano,
Rapariga impura,
Coto de polegar."


Sylvia Plath

HORA DA FÉNIX 34 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Todos sabemos que pai que joga à bola é uma grande alegria para o filho. Na verdade alegria, alegria, é o pai jogar à bola mas mal. Assim, eles podem regozijar-se com as magnificas performances que a velhice proporciona e sentirem-se verdadeiros pélés – é melhor arranjar um mais novo – verdadeiros ruis costas.

Mas uma coisa pode correr mal na vida das crianças. Algo que lhes pode estragar a vida e remeter os seus corpos, quando adultos, para o divã do psicanalista: o pai não joga bem à bola; o pai não joga mal à bola; O PAI NÃO JOGA À BOLA. É o meu caso!

Esta manhã o meu filho levou-me ao parque infantil. Dentro de um saco de plástico (do pingo doce!!! Anda um pai a criar um filho…) levava uma bola e umas luvas de guarda redes. Eu já ia desconfiado, as luvas, a bola, estão a ver? um chuta outro defende… hã? Dois..ele…eu. EU?????????????

Bem, eu já tinha chutado umas bolas, há… há… vinte anos? Viiinte cinco…? Ai!

Já tinha “brincado” com uma bola com o menino, na praia, neste parque, etc. Mas agora a coisa não é brincar, é jogar à bola, e ele toma-se de um profissionalismo no alto dos seus oito anos, que…

Não me deu espaço para grandes súplicas, dei por mim e já lá estava a chutar no esférico, sobre o relvado do parque, direito ao meio de umas traves, duas horizontais uma verti… não duas verticais e uma horizontal, acho que é isso, chamam-lhe b-a-l-i-z-a. BALIZA, aprendam: ba-li-za!

Como ao fim de vinte minutos não conseguia alinhar o trajecto da bola, ela ia-me para todos os lados, com excepção da ba-li-za. O petiz veio ter comigo, e ali mesmo, encetou o seu papel de tutor de homens com retardamentos físicos, experiências adolescentes em atraso, eu sei lá.

Ao fim de uma hora de dissertações sobre a temática do foot-ball, quer dizer, do futebol, deu-se o rapaz por satisfeito, e com alguma tolerância para com o seu pai diferente, disse: “Tu até jogas bem”.

Fiquei uns momentos calado, com o sorriso no canto da orelha, e saiu-me pela boca o mais baixo dos golpes sujos. É o arrependimento por essa atitude repugnante, que escrevo estas linhas. É que antes de abandonarmos o campo da abada, disse-lhe: “Vamos embora que tens de ir fazer os trabalhos de casa”.

Foi.

Estou arrependido, sim, mas não fiquem a pensar que a coisa ficou sem resposta: “Até parece que aquilo [os trabalhos de casa] custam alguma coisa!”

Há manhãs em que um pai não deve sair à rua com um filho com bola!

HORA DO DIABO 37 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

DO APOCALIPSE DE SÃO JOÃO

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(JERUSALÉM CELESTE):

Ap 21,1-22,5

21,1. E vi um novo céu e uma nova terra. Porque já se foram o primeiro céu e a primeira terra, e o mar já não existe.

21,2. E vi a santa cidade, a nova Jerusalém, que descia do céu da parte de Deus, pronta como uma esposa preparada para o seu marido.

21,3. E ouvi uma grande voz, vinda do trono, que dizia:

"Eis que o tabernáculo de Deus

está com os homens,

pois com eles habitará,

e eles serão o seu povo,

e Deus mesmo estará com eles.

21,4. Ele enxugará de seus olhos toda lágrima;

e não haverá mais morte,

nem haverá mais pranto,

nem lamento, nem dor;

porque já as primeiras coisas são passadas."

21,5. E o que estava assentado sobre o trono disse:

"Eis que faço novas todas as coisas."

E acrescentou:

"Escreve; porque estas palavras

são fiéis e verdadeiras."

21,6. Disse-me ainda:

"está REALIZADO (10):

Eu sou o Alfa e o Ómega,

o princípio e o fim.

A quem tiver sede,

de graça lhe darei a beber

da fonte da água da vida.

21,7. Aquele que vencer herdará estas coisas;

e eu serei seu Deus, e ele será meu filho.

21,8. Mas, quanto aos medrosos, e aos incrédulos,

e aos abomináveis, e aos homicidas,

e aos adúlteros, e aos feiticeiros,

e aos idólatras, e a todos os mentirosos,

a sua parte será no lago ardente de fogo

e enxofre, que é a segunda morte."

21,9. E veio um dos sete anjos que tinham as sete taças cheias das sete últimas pragas, e falou comigo, dizendo: Vem, mostrar-te-ei a esposa, a mulher do CORDEIRO.

21,10. E levou-me em espírito a um grande e alto monte, e mostrou- me a santa cidade de Jerusalém, que descia do céu da parte de Deus,

21,11. tendo a glória de Deus; e o seu brilho era semelhante a uma pedra preciosíssima, como se fosse jaspe cristalino;

21,12. e tinha um grande e alto muro com doze portas, e nas portas doze anjos, e nomes escritos sobre elas, que são os nomes das doze tribos dos filhos de Israel.

21,13. Ao oriente havia três portas, ao norte três portas, ao sul três portas, e ao ocidente três portas.

21,14. O muro da cidade tinha doze fundamentos, e neles estavam os nomes dos doze apóstolos do CORDEIRO.

21,15. E aquele que falava comigo (um dos sete anjos das sete taças cheias com as úlyimas pragas) tinha por medida uma cana de ouro, para medir a cidade, as suas portas e o seu muro.

21,16. A cidade era quadrangular; e o seu comprimento era igual à sua largura. E mediu a cidade com a cana e tinha ela doze mil estádios; e o seu cumprimento, largura e altura eram iguais.

21,17. Também mediu o seu muro, e era de cento e quarenta e quatro côvados, segundo a medida de homem, isto é, de anjo.

21,18. O muro era construído de jaspe, e a cidade era de ouro puro, semelhante a vidro límpido.

21,19. Os fundamentos do muro da cidade estavam adornados de toda espécie de pedras preciosas. O primeiro fundamento era de jaspe; o segundo, de safira; o terceiro, de calcedônia; o quarto, de esmeralda;

21,20. o quinto, de sardônica; o sexto, de sárdio; o sétimo, de crisólito; o oitavo, de berilo; o nono, de topázio; o décimo, de crisópraso; o undécimo, de jacinto; o duodécimo, de ametista.

21,21. As doze portas eram doze pérolas: cada uma das portas era de uma só pérola; e a praça da cidade era de ouro puro, transparente como vidro.

21,22. Nela não vi santuário, porque o seu santuário é o Senhor Deus TODO-PODEROSO, e o CORDEIRO.

21,23. A cidade não necessita nem do sol, nem da lua, para que nela resplandeçam, porém a glória de Deus a tem alumiado, e o CORDEIRO é a sua lâmpada.

21,24. As nações andarão à sua luz; e os reis da terra trarão para ela a sua glória.

21,25. As suas portas não se fecharão de dia, e noite ali não haverá;

21,26. e a ela trarão a glória e a honra das nações.

21,27. E não entrará nela coisa alguma impura, nem o que pratica abominação ou mentira; mas somente os que estão inscritos no livro da vida do CORDEIRO.



22,1. E (o anjo das sete taças) mostrou-me o rio da água da vida, claro como cristal, que procedia do trono de Deus e do CORDEIRO.

22,2. No meio da sua praça, e de ambos os lados do rio, estava a árvore da vida, que produz doze frutos, dando seu fruto de mês em mês; e as folhas da árvore são para a cura das nações.

22,3. Ali não haverá jamais maldição. Nela estará o trono de Deus e do CORDEIRO, e os seus servos o servirão,

22,4. e verão a sua face; e nas suas frontes estará o seu nome.

22,5. E ali não haverá mais noite, e não necessitarão de luz de lâmpada nem de luz do sol, porque o Senhor Deus os alumiará; e reinarão pelos séculos dos séculos.

sexta-feira, dezembro 19, 2003

HORA DO DIABO 36 - O NATAL MATA 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

o natal mata-nos, tortura-nos, é a alma e o símbolo do sofrimento. o natal é uma finta ao amor, à compaixão e à sensibilidade. todos os que já morreram com o natal, e os que vão ainda morrer, um dia se levantarão das covas e vos amaldiçoarão, a vós, impotentes desertores da humanidade, que no último suspiro dos vossos vícios, levam atrás os que são esmagados pela ânsia apopléctica de ser ovelha no rebanho. afinal que vos importa que alguém sofra? uma criança que seja, uma, e já seria o bastante para vos emendardes. mas não, preferis, bizarros sugadores de almas curvadas, beber até à última gota, o sangue dos que são esquecidos…
…do tormento que hoje causais aos povos com os vossos actos, nascerá, um dia, uma flor de pólen dourado, e tão habituados estais vós a seguir o ouro, que vos deixarei inebriar pelo perfume mortal da flor. será da semente que hoje plantais que nascerá o odor da vossa morte...
…vós, medíocres espiritualistas, que procurais com as vossas estóriazinhas, invocar as fadas e os gnomos, para dar sentido ao terror da consoada; vós, medíocres paganistas, que invocais os festejos do solstício, para esconder a vossa ânsia desmedida de espezinhar os corações cativos; vós, escritores, que empestais as páginas da prensa, com os vossos $continhos$ de reis, esperando o dízimo do leitor, tão prontos estão sempre a encher a vossa pança de pestanas queimadas; vós, mães que levais vossos filhos ao baptismo, para depois os corromperem com bolos, sujando com vossos beijos as faces puras do estado de graça; vós, ridículos meninos jesus, que em todo o mundo deixais beijar vossos pés; e vós, correntes de fraternidade, que fechais as portas à hora do peru, para que pobres bocas de fome não os possam trincar, interrompendo-vos a digestão; vós, cegos que desejais ver, surdos que desejais ouvir, mudos que desejais falar, paralíticos que desejais andar, vós imundos, que sujeitos ao vosso desejo, desejais ser normal e consoar andando e vendo e falando e ouvindo; e vós, músicos de telefonia, que vendeis notas de música em papel de euro; e vós, cães e gatos e sapatos, todos por igual enroscados na fímbria do roupão dos vossos donos, pais, maridos, mulheres, cadelas, gatas…
…vós todos que acinzentais os céus em cheiros de fritas e bolos de natal: bolos de rei, vós todos, um dia, tereis consciência de que hoje despedaçais corações e será em vão. esse homem que hoje utilizais para mascarar a vossa sede de terror, não vos convocará para a ceia do senhor, não vos reconhecerá na noite do juízo, não saberá onde repousam os vossos restos…
… vós que hoje desprezais os esquecidos nesta data, enfeitiçados pelo deve ser e pelo assim se faz, mergulhareis nas trevas do para sempre, mas conscientes, conscientes de que a vossa vez será a vez do esquecimento.

assim seja!


quarta-feira, dezembro 17, 2003

HORA DO DIABO 35 - LISBOA 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

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...hoje foi um desses dias em que o céu nos aperta contra o chão. depois chove e abra-se uma janela no corpo, respira-se...

...lisboa, fluída e orgânica escorre. só há rio e nuvens de mar...

...no metro milhares de almas molhadas apertam-se, empurram-se, transpiram, correm, tiram bilhetes, adormecem, enlatadas nas suas pequenas celas de espaço. quando chegarem a casa não vão estar mais confortáveis e, provavelmente, as pessoas com quem irão jantar não lhes serão mais conhecidas que os vizinhos de banco no metropolitano....

...lisboa e muito mais, num entardecer escuro e aquático...

...lisboa suicidada, aponta ao tejo a bóia que já não a salvará...

HORA DA FÉNIX 33 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

"Sinto-me um observador dos céus
quando um novo planeta entra no seu campo;
ou o audaz Cortez mirando com olhos de águia
o Pacífico - e todos os seus homens
se entreolhando com tremendo espanto -
em silêncio, num cume de Darien."


John Keats



terça-feira, dezembro 16, 2003

HORA DA FÉNIX 32 - HORA DO DIABO 34, LISBOA 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

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A maneira como os execráveis hipócritas, desses ditos movimentos pela vida, enchem a boca para condenar as mulheres que recorrem ao aborto, consegue ser ainda mais execrável que os seus focinhos. Tão ignorantes e arrogantes, sentem-se no direito de falar em nome de deus, em nome do povo, em nome das mulheres – normalmente são homens a falar – acham-se no direito de tudo, de condenar e punir, julgar e prender.

Ao ver estes debates televisivos cheios de engravatados ursos de extrema-direita, vomitando ódio, prontos a deitar à fogueira tudo e todas, sinto nojo e vergonha do meu país. Portugal, apesar de tudo, tem oportunidade de ser qualquer coisa de asseado, e dar o passo de civilização que representa, de uma vez por todas, compreender que o que está em causa na despenalização da interrupção voluntária da gravidez, é a dignidade de milhares e milhares de mulheres que, nas condições mais sórdidas, se vêem a braços com a humilhação extrema, com a precariedade da sua saúdem e com o medo.

HORA DO DIABO 33 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

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«Sei que, na minha obra , as melhores coisas são as que aconteceram por acaso - as imagens que eram capturadas de um momento para o outro e que eu não havia antecipado. Não sabemos o que é o inconsciente, mas, por vezes, acontece qualquer coisa despontar em nós mesmos. Parece um pouco pomposo falar agora de inconsciente, por isso talvez seja melhor falar de "acaso". Acredito na existência de um caos profundamente organizado e na importância do acaso. Só posso esperar que o meu instinto me faça fazer o que é preciso, porque não posso apagar o que fiz.»

FRANCIS BACON

segunda-feira, dezembro 15, 2003

HORA DA FÉNIX 31 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

“O dia cai. Uma grande quietação se estabelece nas pobres almas fatigadas pelos labores do dia; e os seus pensamentos tomam agora as cores macias e indecisas do crepúsculo.

No entanto, do alto da montanha chega à minha varanda, através das brumas transparentes da tarde, uma gritaria, composta dum tropel de gritos discordantes, que o espaço transforma em lúgubre harmonia, como a da maré que sobre ou a duma tempestade que começa.
Quem são os infelizes que a tarde não acalma, e que tomam, como os mochos, a vinda da noite como um sinal de sabbat?”


Charles Baudelaire
“O Crepúsculo da tarde”
“O Spleen de Paris


domingo, dezembro 14, 2003

HORA DO DIABO 32 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

"Tu és o apátrida furtivo
que não encontrou lugar no mundo:
demasiado grande e pesado para ser usado.

Brames na tempestade. És como harpa
cujas cordas despedaçam o tocador."

RILKE

sábado, dezembro 13, 2003

HORA DA FÉNIX 30 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Pela última vez, STAND-UP TRAGEDY

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Mais um comentário e não falo mais nisto.

Há dois elementos neste espectáculo que me têm assaltado o espírito de forma recorrente: o momento da ruptura do espectáculo – a mulher gorda – e o microfone na mão de Ricardo Magalhães. Dois elementos explosivos.

A mulher gorda. O fim do espectáculo. O início do espectáculo.

Não é um momento qualquer. Se é verdade que o espectáculo acaba ali, é igualmente verdade que o espectáculo começa ali. Confuso? Quando estamos sentados no Maria Matos e batemos com os cornos na paralisação da personagem arriscamos tudo. É o momento em que o maple que ocupamos na plateia se transforma em cadeira. De pau. O risco para o actor é também grande, o risco do actor é deixar de ser o Ricardo Magalhães para ser o Tiago Rodrigues, o que seria uma merda. O risco que o público corre é muito maior, é imenso, é immmmmmeeeeeennnnssssso. É muito estranho sentirmo-nos indesejados e é isso que se sente. Como estamos habituados à ideia de que nos devem agradecer uma ida ao teatro, só de pensar que não estamos ali a fazer nada deixa-nos fora de nós. Pensamos, quem é que este gajo pensa que é, este tipo tá-me a gozar. Claro que não estamos ali a mais, acho eu, mas não nos sentimos queridos, sentimos calafrios. Uma gaja gorda, o gajo tá a falar de mim? É um momento lixado para o espectador. Se é.

Uma das coisas maravilhosas que o teatro nos oferece (o que raramente acontece, infelizmente), é a possibilidade de irmos ao palco e, no limite, dar uma bofetada nos actores e vice versa. Quando a personagem paralisa frente à mulher gorda, põe-se essa hipótese. O Ricardo Magalhães está a esbofetear-nos, ora, nós também podíamos lá ir e…

Se o actor não arrebata o público, corre mesmo o risco de levar na tromba, o Tiago Rodrigues corre esse risco. E isso é extraordinário.

O microfone.

Podem-me chamar picoinhas. Já vimos milhares de comediantes a utilizar microfones na mão para se apoiarem, para fazer qualquer coisa com as mãos, até para amplificar a voz. Ali, para além dessas coisas todas, é muito mais. É o ponto da nossa concentração. São batidas de coração. Respiração. Desenho. Escrita.

Quando Ricardo Magalhães pousa o microfone para beber água, respiramos de alívio de regresso ao maple. São momentos de paz, de amplidão. Mal ele re-pega no microfone, o teatro volta a ficar minúsculo. Voltamos à cadeira no cubículo. Voltamos ao combate.

Na verdade SUT têm duas personagens, o Ricardo e o microfone. Se um falha o outro enterra-se pelo chão. Um é o electrocardiograma do outro. E no ritmo desse coração inquieto , mais uma vez, arriscamos o enfarte.

Obrigado

HORA DO DIABO 31 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

O ENFORCADO

Pela raiz dos meus cabelos algum deus me agarrou.
Crepitei nos seus vóltios azuis como um profeta do deserto.

As noites fecharam-se de repente como a pálpebra de um lagarto:
Um mundo de dias brancos e monótonos, numa cova sem sombra.

Um aborrecimento de abutre pregou-me aqui a esta árvore.
Se ele fosse eu, faria o que eu fiz.


Sylvia Plath

sexta-feira, dezembro 12, 2003

JPP, TOP 100 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

no ABRUPTO:

"19:41 (JPP)
BLOGOSFERA PORTUGUESA NO TECHNORATI

Há, neste momento, três blogues portugueses na lista do Top 100 da
Technorati: o Abrupto em 69, o Gato Fedorento em 75 e O Meu Pipi em 100. É um acontecimento muito significativo , se se tiver em conta que são
acompanhados 1.359.000 blogues e as limitações do espaço da Internet em
língua portuguesa. Penso que não tem precedentes para nenhum endereço
português."


Caro José Pacheco Pereira,

Começo pedindo desculpa por não fazer ideia nenhuma do que é a TECHNORATI (devia saber, claro!) e por até hoje nunca ter visitado o "GATO FEDORENTO" e "O MEU PIPI" (o blogue).

Acabei de visitar os dois blogues, mas ainda não sei o que é a TECHNORATI.
Mas imagino.

O seu "post" deixa transparecer uma certa alegria pelo facto de, segundo
parece, endereços portugueses estarem marcados numa tabela de audiências
internacional. Com efeito, é obra. A razão porque isso acontece é que me
deixa a pensar. Permita-me que lhe diga que você está bem acompanhado!

Lá que a coisa é significativa, como você diz, não há dúvida. Mas será
motivo de regozijo ou de consternação?

Lendo "O Meu Pipi", imagino os milhares de seres que, falando português,
visitam esse Blogue. Devem ser maravilhosamente interessantes.

Cito:
"Quinta-feira, Dezembro 11, 2003
LICENCIATURA EM FODA

1º ano
Introdução às bordas da cona
Teoria da foda
Metodologia do caralho científico
Informática na óptica do fodilhão
Punheta clássica
Pachacha portuguesa I
Pachacha inglesa I
Pachacha francesa I
[...]
Realço a "Didáctica do chucha-na-tola", fundamental para, mais tarde, poder
ensinar as gajas a executar um broche competente, bem como a "Sematologia da
foda", tão necessária para conhecer a fundo o vocabulário fodangal.

posted by Pipi 3:21 AM Há caralhadas como o caralho!(370)


Que bom! "O Gato Fedorento" também nos presenteia com a inteligência
desperta dos poetas:

"No outro dia assisti a esta conversa:

- O senhor condutor viu que fez uma manobra perigosa?
- Ó shôr guarda, desculpa lá, mas é que estou com pressa.
- Pois, mas esta manobra dá direito a três meses sem carta.
- Três meses? Não pode ser, shôr guarda. Eu preciso do carro para trabalhar!
Faço o que for preciso...
- O que é isto? O senhor condutor está a tentar subornar-me?
- Não, não! As notas caíram-me da carteira. Mas podemos pensar noutra coisa
qualquer que eu possa fazer...
- Que o senhor possa fazer? Mas afinal, quem é que é o agente da autoridade?
Quem pode ou não pode fazer o que quer que seja sou eu!
- Claro! Tem toda a razão.
- Abra a porta e passe para o outro lado. Sabe que há uma maneira de
esquecermos esta infracção, senhor condutor.
- Qual?
- Ora vamos lá a desapertar as calcinhas... TD

posted by Gato 12:32 AM ".


Caro José Pacheco Pereira, você, apesar de dar a notícia, furtou-se a
comentar as razões de tão "significativo" acontecimento. Quem bons tempos
esses, antes do triste precedente que é dois blogues como estes serem
visitados por muita gente. Tanta gente. Tanta, tanta, gente. Afinal quem
quer ser milionário de visitas ao pé de tão ilustres companhias?

CORAGEM PORTUGAL CHEGAREMOS AO TOP 10

Do Stand-Up Tragedy 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

STAND-UP TRAGEDY

Citação ou não
"Basta apenas uma mesma coisa para se ser um falhado ou um homem de sucesso: não ter medo do ridículo".

Ricardo Magalhães, humorista relutante

O primeiro abraço
Isto vem a propósito deste último post em que referi o texto do Frederico, que não conheço senão através do blogue, e que talvez nunca virei a conhecer. Se calhar até por causa do tal medo da desilusão, da sensação de conhecer alguém pelos seus textos e de perder esse conhecimento quando, no contacto pessoal, perceber que essa intimidade é uma ficção do leitor.

Depois de mencionar o texto do Frederico, dei comigo a pensar em muitas das reacções ao espectáculo que já pude testemunhar. Algumas, as que colocam dilemas e questões, as que procurámos provocar no exercício de manipulação e exposição que é sempre estar em palco a dizer coisas, algumas dessas reacções já foram citadas e debatidas neste espaço em textos anteriores.

Dei comigo a pensar na conversa que tivemos todos com o Nuno Artur Silva depois da ante-estreia. Com a capacidade cirúrgica que o Nuno Artur tem de analisar um texto, um espectáculo, um discurso ou uma ideia, tocou em dois ou três pontos fundamentais. Isto foi na quarta-feira, lá para a meia-noite, no bar do Maria Matos. No dia seguinte, a quinta feira de estreia, mudámos o final da peça por causa de ideias que surgiram nessa conversa com o Nuno Artur. Durante a tarde, eu, o Borges e o Costa Santos, continuámos a discussão iniciada com o Nuno Artur na noite anterior e surgiu um desfecho para a peça que é o ponto final que ainda não tínhamos inventado. Quem já viu, sabe do que falo.

Mas, apesar deste episódio, o que me ficou dessa noite foi o primeiro abraço que dei ao Nuno Artur. Conheço-o há poucos meses e desde então temos contactado bastante nas Produções Fictícias, com cortesia e simpatia, talvez até alguma empatia. Mas foi na euforia que se seguiu à ante-estreia, nas escadas que dão para o camarim 12, onde estou instalado, que nos abraçámos pela primeira vez. Ponho-me a pensar nisto e dou-me conta que não recordo a primeira vez que abracei qualquer um dos meus amigos. Aliás, não recordo a primeira vez que abracei qualquer pessoa na minha vida. Antes que isto se torne num libelo homossexual, deixem-me dizer-vos que foi um abraço, másculo, forte, entre dois homenzarrões. O Luís Borges e o Nuno Costa Santos estavam lá e foram testemunhas. Mas que havia ali alguma ternura, lá isso havia... TR

O(s) Ricardo(s)
Li o texto do Frederico, do blogue "saudades de Antero", que comoveu. Porque não é tão diferente como isso da minha própria experiência em relação a este personagem, o Ricardo, e a este espectáculo.

Também eu estreei no medo absoluto de me desiludir com a materialização daquilo que discutimos e fantasiámos durante meses.
Antes do espectáculo havia o blogue, antes do blogue havia a ideia, antes da ideia existíamos nós. Eu, o Luís, o Nuno, que inventámos esta coisa toda. A Magda que produziu. O outro Tiago que fez o cenário e as luzes. O Pedro da música e o Alfredo da voz off. Antes do SUT, havia isto tudo.

A única vez que tive a certeza de não me desiludir com este espectáculo foi quando dei o primeiro passo no palco, na noite da ante-estreia. Só aí tive a certeza de não me desiludir. Só aí tive a certeza que era impossível desiludir-me. Porque este espectáculo é, em última análise, aquilo que já existia em nós, antes do blogue e antes da ideia.

Pode ser formalmente mais interessante que outras coisas que fizemos ou venhamos a fazer, mas o que realmente o distingue do resto, é que foi feito por nós, do princípio ao fim. E isso está lá, visível, o tempo todo.

O que nós procuramos não foi encontrado e agora mostrado em forma artística ao espectador. Nada disso. O que nós procuramos é procurado em palco. Este espectáculo somos nós. E por isso é que não me desiludi. Ao contrário de qualquer espectador, quando subi ao palco, eu deixei de ter a possibilidade de escolher gostar ou não do Ricardo. Percebi que o Ricardo Magalhães era eu e os outros que fizeram isto. O Ricardo era nós. E eu nunca poderia desiludir-me connosco. TR


dúvida
Caro Frederico,

Depois de ler e reler a tua argumentação, percebi-o: qualquer das tuas opções é, na minha opinião, legítima. Permite-me, no entanto, que te diga: penso que devias aparecer no Maria Matos. Será interessante ver como é que o Ricardo Magalhães reagirá perante alguém que o conhece - que tem sobre ele uma ideia, uma expectativa. Que entra na sala com uma imagem e uma história fortes dentro da sua cabeça. Para além disso, partilhamos todos saudades de Antero. Talvez seja um motivo mais do que suficiente.
Até breve.
Um abraço
Nuno

HORA DA FÉNIX 29 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

caro joão césar monteiro, continua comendo a tua romã vermelha, continua a olhar-nos, não nos deixes no momento em que todos pensam bem de ti. sabes que o manuel de oliveira escreveu um artigo sobre ti e tudo. tens páginas e páginas de jornal com fotografias tuas, textos imensos a falar da tua obra, 11 filmes editados em dvd, eu sei lá… lembras-te do cinama king, ali na av. de roma, está a projectar a tua “integral”. acho até que estão a fazer um museu para a tua colecção de pintelhos. e deve ser maravilhosa a tua colecção de pintelhos: devias ter pêlos de tanta gente, da rita durão, da manuela de freitas; mulheres infames, boazinhas, mulheres que andam de comboio, mulheres que andam de táxi, mulheres nuas, vestidas, despidas – que não é a mesma coisa que nuas – deus sabe quantos pintelhos terias guardado. quem sabe se não terias até um do luís miguel cintra! até disso já toda a gente gosta, é, acham-te imensa piada. ainda hoje publicaram um fotografia tua a ver um pintelho à lupa. a malta, a tua malta, os teus camaradas, acham-te piada pá, reconhecem-te. meu deus. como se fala do extraordinário sentido de humor que tu tinhas: «sabes que o gajo tinha uma colecção de pintelhos?». come a tua romã vermelha na praia que enquanto os teus camaradas te invejam a colecção, tu fazes amor comendo no sangue de uma romã, olhando olhos nos olhos a dramática condição de se ter no corpo a condição de deus. se tivesses mulher davam-lhe uma pensão qualquer, como não tinhas, devem dar ao paulo branco que era coisa, na tua vida, a coisa mais parecida com isso. até medalhas! e no natal uma branca de neve. talvez chegem a fazer um dvd com as imagens inéditas do teu filme cego. come a tua romã de amor, joão, eles não querem saber, eles só te invejam os pintelhos.

HORA DA FÉNIX 28 - HORA DO DIABO 30 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Dá-me uma última palavra. Não te cales para sempre. Diz-me que ainda existo.

Digo-te um poema. Rilke? Pode ser, Rilke?
Dá-me uma única última palavra… meio olhar, Qualquer coisa.
Rilke, pode ser Rilke?





quarta-feira, dezembro 10, 2003

HORA DO DIABO 29 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

"NÃO SEl QUEM SOU, que alma tenho.
Quando falo com sinceridade não sei com que sinceridade falo. Sou variamente outro do que um eu que não sei se existe (se é esses outros).
Sinto crenças que não tenho. Enlevam-me ânsias que repudio. A minha perpétua atenção sobre mim perpetuamente me ponta traições de alma a um caráter que talvez eu não tenha, nem ela julga que eu tenha.
Sinto-me múltiplo. Sou como um quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
Como o panteísta se sente árvore [?] e até a flor, eu sinto-me vários seres. Sinto-me viver vidas alheias, em mim, incompletamente, como se o meu ser participasse de todos os homens, incompletamente de cada [?], por uma suma de não-eus sintetizados num eu postiço.

Sê plural como o universo!"

Fernando Pessoa

Nesta rua conheço o homem do café, a chinesa da “Loja da China”, o cão cego que dorme junto do semáforo. Conheço a mulher com bigode do quiosque dos jornais. A indiana dos incensos, as prostitutas negras dos Anjos. Reconheço o cheiro a mar, os bitoques, as empadas de galinha, os pasteis de nata, o som da televisão que vem dos cafés. Na Hora do Diabo conhecemos toda a gente. A rua anda, os carros andam, as árvores andam. Não há silêncio, a paz é uma nuvem, os meus passos morrem no caminho. Insuportavelmente, é sempre dia.

O ARQUITECTO 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Aos Filhos da Viúva,

"O arquitecto é um pedreiro que aprendeu latim."

Arq. Adolf Laos.'.

imagem clique aqui

HORA DA FÉNIX 27 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Poema do Pedro Alexandre, 13 anos:

"INFINITO SABER

Se o universo for infinito,
infinitas coisas teremos d'achar.
Infinito tempo teremos de existir,
para ter o conhecimento
do universo infinito.
Temos de ter sabedoria."


Lisboa, 9 de Dezembro de 2003.

terça-feira, dezembro 09, 2003

HORA DA FÉNIX 26 - HORA DO DIABO 28 - LISBOA 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero" (brevemente)

Aos alunos do curso Técnico de Design
da Escola Profissional Bento Jesus Caraça-Évora
Anos Lectivos de 1996/1999


Ainda a geminação Évora - Chartres e do último texto plublicado neste blogue sobre o assunto, recupero uns textos que escrevi em 1998, por altura da feira de S. João, em Évora, para a exposição dos trabalhos dos meus alunos, executados a partir dos misteriosos frescos do Paço Vasco da Gama.

Aproveito para publicar um excerto da carta que o Mestre Lagoa Henriques me enviou antes da conferência conjunta sobre este assunto, no Museu de Évora:

A CARTA

"...ao receber a vossa carta, onde vinham escritos os vossos nomes,
pensei que todos vós teriam rostos e vidas próprias,
conheciam-me e eu não os conhecia, e fiquei fascinado.
Quem seriam vocês, alunos e professores dessa escola distante?
Que mágico lugar esse, o das Casas Pintadas de Évora, que permitiu o nosso encontro?..."

Mestre Lagoa Henriques

In conferência sobre o desenho dos frescos das
Casas Pintadas de Évora,
Museu de Évora-1998


SOBRE O NOSSO TRABALHO SOBRE AS "CASAS PINTADAS"

Passados os dias dos encantos, essas tardes de sol invernoso em que pegámos em lápis e pincéis, em que a nossa fala foi o silêncio, ficou uma lembrança ténue de um pequeno claustro cheio de verde, onde a água se deixava adivinhar e onde sobre uma parede de cal se iluminavam aos nossos olhos de aprendizes, frescos pintados pelo tempo. Águias, Dragões, uma Hydra apocalíptica de sete cabeças cruzadas, um Pelicano cristico devorando o seu próprio peito, Fenix renascida de um fogo invisível. Tantas imagens, símbolos indecifráveis, que ouvimos e lemos com a adivinhação própria do acto de criar e re-criar pelo desenho.

Passados esses dias invernosos, ficaram lembranças ternas, de rostos com nomes, de termos habitado esse pequeno claustro perdido no embaraçado serpentear das ruas de Évora.


AS CASAS PINTADAS DE ÉVORA

Os Frescos do pequeno claustro das Casas Pintadas em Évora, são pinturas secretas, porventura mediadoras da nossa relação entre a realidade consciente e a realidade dos sonhos.

Na verdade ao entrar neste templo de interrogações e de incógnitas, penetramos num universo desconcertante e perturbador. Apocalíptico. Mítico. Arquetípico.

Quem tem as chaves do entendimento destas pinturas? Quando foram feitas e com que propósito? Quem... Quando...?

Trabalhar o monumento que são as Casas Pintadas de Évora, é saber não ter certezas, voar sem as defesas aparentes dos dogmas históricos e documentais.

É ser livre e só, face ao monumento.

Talvez a sensibilidade, a disponibilidade e a vulnerabilidade na observação, permitam estabelecer um dialogo com as pinturas através da linguagem poética.

Não há percursos pré traçados. Entre o observador e o monumento só existe o vazio. O monumento torna-se anti-momumento e o peso da sua monumentalidade – iluminação . Não há senão um imenso tempo ligando gerações a gerações, tão simbolicamente representado pelos "Laços do Amor" pintados no tecto do claustro.

Procurando o sentido das pinturas o observador descobre que, citando Fernando Pessoa e o poema "Eros e Psique":

"[...]

E, inda tonto do que houvera,

Á cabeça, em maresia,

Ergue a mão, e encontra hera,

E vê que ele mesmo era

A Princesa que dormia."


Frederico Mira George .'.
Évora, Solstício de Verão 1998

segunda-feira, dezembro 08, 2003

HORA DO DIABO 27 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Lua cheia e nós presos. Atados a uma noite que não começa. Em breve o sol nascerá sem que tivéssemos conseguido, sequer tentado, desatar estas cordas que nos cortam o sangue. Em breve o sol nascerá para abafar a Lua. E nós, aonde?

HORA DA FÉNIX 25 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

"LIBERDADE - IGUALDADE - FRATERNIDADE - Onde está a nossa revolução?"

Dez Ilustrações de Frederico Mira George, dedicadas ao Eduardo Brum, em memória de um espectáculo que nos uniu (Marat/Sade - Comuna Teatro de Pesquisa), lá pelos anos 80, em comemoração de um reecontro aqui pelo ano 2003.

domingo, dezembro 07, 2003

HORA DO DIABO 26 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

“CIDADE”

“Sou um efémero e não excessivamente descontente cidadão duma metrópole que julgam moderna porque foi evitada toda a estereotipia no mobiliário e na fachada das casas, como no plano geral da cidade. Aqui não ficou rasto de nenhum monumento de superstição. A moral e a língua enfim reduzidas à sua expressão mais simples! Estes milhões de pessoas que não tem qualquer necessidade de se conhecerem, levam com tal paralelismo a educação, a profissão e a velhice, que o seu tempo de vida deve ser muitas vezes inferior àquele que uma estatística louca encontrou para os povos do continente. Tal como, desde a minha janela, vejo novos fantasmas deslizando pelo espesso e contínuo fumo de carvão, - nossa sobra campestre, nossa noite de estio! – novas Erínias diante do cotage que é toda a minha pátria e todo o afecto, já que tudo aqui é igual a si mesmo, - uma Morte sem lágrimas, nossa activa filha e criada, um amor desesperado e um lindo Crime ganindo na lama da rua.”

Jean-Arthur Rimbaud, “Iluminações”.
Tradução Mário Cesariny

"Cruzes, Credo" - Blogue 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

A Visitar:

Blogue "Cruzes, Credo", editado por Manuel Vieira.

HORA DA FÉNIX 24 - Évora e Chartres 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

(com horas de atraso devido à inoperância do blogger)

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

Para a Isabel Nobre Santos, poetisa dos astros e Irmã d’alma.

A já aqui falada geminação entre as cidades de Évora e Chartres, fez-me observar as esculturas do Zodíaco, em Chatres e, não por mero acaso, relacioná-las com alguns textos de Michel Nostradamus.

A profecia apocalíptica não é estranha às duas cidades, nem o pensamento Joaquimita* / Franciscano, de uma nova idade, de um novo lugar e humanidade re-edificados a partir desse momento de viragem e profunda crise, após o qual se estabelecerá o império da Boa-Vontade, a Fraternidade Universal, ou Sinarquia. Quer a Catedral de Santa Maria de Évora, quer a Catedral de Chartres, contêm alguns sinais dessa etapa da vida dos homens e, de certa forma, se complementam, como se fosse um só edifício: A Catedral de Santa Maria de Évora-Chartres.

( Ter em conta a Capela dos Ossos, na Igreja de S. Francisco, Évora e Frescos das Casas Pintadas de Évora - Paço Vasco da Gama)

Janeiro
Mais o Grande não ser, chuva no carro o cristal.
Tumulto emocionado de todos os bens abundância.
Rapados, Sagrados, novos, velhos, espantalho.
Eleito ingrato, morte, lamento, alegria, aliança.

Fevereiro
Grão corrompido, ar pestilento, locustas.
Súbito cairá, lameiro novo nascer.
Cativos ferrados, ligeiros, alto baixo, onustos,
Por seus ossos mal que de rei não quis ser.

Março
Apanhados no templo, por seitas longa briga
Eleito raptado, no bosque forma querela.
Setenta partes nascer nova liga.
Da sua morte. Rei apaziaguado, notícia.

Abril
Rei salvo Vencedor, Imperador.
A fé falseada, o Real feito conhecido,
Sangue Maciano, Rei feito superador
De gente soberba, humilde por choros vindo.

Maio
Pelo despeito núpcias, epitalâmio.
Pelas três partes Vermelhos, Rapados saídos,
Ao jovem negro resposta por chama a alma.
Ao grande Neptuno Ógbios convertidos.

Junho
De casa sete por morte mortal sequência.
Saraiva, tempestade, pestilento mal, furores.
Rei d’Oriente, d’Ocidente todos em fuga
Subjugará seus outrora conquistadores.

Julho
Saqueadores pilhados, calor, grande seca:
Por demais não ser, caso não visto, inaudito.
No estrangeiro a demais grande carícia.
Nove países Rei o Oriente seduzido.

Agosto
A Urna encontrada, a cidade tributária.
Campos divididos, nova mentira.
O Hispano ferido, fome, peste militar.
Moc. Obstinado, confuso, mal, quimera.

Setembro
Virgens e viúvas, o vosso bom tempo aproxima-se.
Nada será do que se pretenderá.
Longe será preciso que seja nova aproximação.
Bem fáceis presos, bem repostos, pior terá.

Outubro
Aqui dentro se completará.
Os 3. Grande fora do BOM-BURGO estará longe.
Encontro dois um deles conspirará.
Ao fim do mês se verá a necessidade.

Novembro
Propósitos mantidos núpcias recomeçadas.
A Grande Grande sairá fora da França.
Voz na Romanha de gritar vão cansada.
Recebe a paz por de mais fingida segurança.

Dezembro
A alegria em lágrimas virá cativar Marte.
Diante do Grande ficarão comovidos Divinos:
Sem soar palavra entrarão por três partes.
Marte adormecido, por cima sino correm vinhos.”

Michel Nostradamus, “Carta das Profecias”, dirigidas a Henrique II, Rei de França.
Tradução de António Silva Lopes

*Referente ao Monge Franciscano, Padre Joaquim de Fiore.

HORA DO DIABO 25 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

“os seus canários
estavam a ir-se que nem moscas
todas as manhãs
havia mais um
esticado
no chão da gaiola

o veterinário disse-lhe
que era devido a uma bactéria
que tinha aparecido na água que eles bebiam
mas ele sabia, lá no fundo,
que era devido
a algo mais profundo
ao estado em que ele próprio andava."

2/8/81
Homestead Valley, Ca


Sam Shepard, “Crónicas Americanas”

A Festa de Aniversário 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens “Saudades de Antero”


Para o pequenino João e para a pequenina Isabel,

Uma festa de anos.
Uma quinta.
Sol num dia de chuva.
Os meninos que se juntaram naquele lugar de árvores e lagos, para festejar o aniversário do João, conheciam-se desde que nasceram. São mais do que irmãos porque o laço que os une é o da vontade de se gostarem. Nada, nenhum condicionamento, os obriga a se relacionarem. São todos um, porque cada um é parcela dos outros.

Durante toda a tarde o pai do João andou sem saber o que fazer naquela festa. Tentou falar, as pessoas respondiam-lhe com gentileza mas com distância, tentou ajudar nas imensas tarefas que organizar a festa tinha implicado, mas sentia-se desajeitado, a mais. A mãe do João tinha tudo tratado com impecável organização, atenção e afecto para com os meninos. A tarde ia passando e o homem sentia-se como uma das árvores do jardim. Presa ao chão, sem movimento, sem nada, a afundar-se. Fumou, andou de bicicleta, tentou de tudo para se acalmar e ser alguma coisa mais que um vulto.

No cume do desespero, quando o homem estava sozinho na casa da quinta - todos os meninos e adultos tinham saído para o jardim – veio para junto dele a pequenina Isabel, que vai fazer oito anos em breve. É umas semanas mais nova que o João. A pequenina Isabel é uma menina doce, resoluta, sempre pronta a ajudar e resolver problemas. Tem um sorriso aberto e meigo. Tem quase oito anos mas deita a mão a quem precisar de ajuda. Foi o caso.

Mal entrou na casa pegou na mão do homem e disse vamos jogar matraquilhos. E foram. Não contaram pontos nem reclamaram vitórias. De vez em quando alguém entrava à procura de qualquer coisa e a pequenina Isabel deixava a mesa por instantes, resolvia o assunto com prontidão: copos, sacos de plástico, guardanapos, o que fosse, e voltava ao jogo.

Por várias vezes, o homem perguntou à menina se ela queria ir para ao pé dos outros, mas ela respondia sempre que não, que queria ficar ali, que continuasse a jogar que ela estava bem. E ele continuava. Jogaram um tempo infinito que poderia ter durado quinze minutos, vinte, trinta. Não se sabe. A pequenina Isabel arrebatou-o à sua tristeza e trouxe-o para o agora, sem tempo. Absolutamente concentrado no jogo, entre gargalhadas e golos, o homem foi feliz. A pequenina Isabel tinha-o salvo. Ela soube-o, disse-lhe: «agora vou lavar as mãos para irmos cantar os parabéns». Ela soube que o tinha salvo e que podia continuar a sua missão de angelical noutro local.

Já ao fim da tarde, depois da festa, o pequenino João abraçou-o e beijou-o. Disse-lhe: «estou muito feliz pai».

O homem voltou a si já na sua solidão. Agradecerá até ao fim dos seus dias a bondade desses dois momentos.





sábado, dezembro 06, 2003

GNR 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Outra:

"Três militares da GNR no Iraque, vão dar formação à nova polícia Iraquiana."

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O Exército Americano 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Acabo de ouvir na TSF a seguinte requintada frase:

"O Exército Americano admite ter morto, por engano, nove crianças no Afeganistão, numa operação contra um alegado terrorista."

Assim. Só.

HORA DA FÉNIX 23 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

"Talvez eu atravesse o ventre de pesadas montanhas
por veios duros, sozinho como um mineral;
é tal a profundidade que não vejo nem fim
nem distância: tudo se fez próximo
e a proximidade transformou-se em pedra.

Ainda não sou mestre em sofrimento, -
por isso a grande escuridão me torna pequeno;
mas se ela és tu, então faz-te pesado e entra em mim:
possa a tua mão atingir-me
e eu chegar a ti com as minhas relíquias."


Rilke, "O Livro da Pobreza e da Morte"

sexta-feira, dezembro 05, 2003

HORA DO DIABO 24 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

"O cheiro dos cadáveres, que distingo nitidamente por baixo do da erva e do húmus, não me é desagradável, talvez um pouco adocicado de mais, um pouco inebriante, mas mil vezes preferível ao dos vivos, dos seus pés, dentes, sovacos, cus, prepúcios peganhentos e óvulos frustrados. E, quando os restos do meu pai colaboram, ainda que modestamente, quase me vêm as lágrimas aos olhos. Bem podem lavar-se, os vivos, bem podem perfumar-se! Cheiram mal."

Samuel Beckett, "Primeiro Amor"

Carlos Paredes 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

1.
Encontrei num postal de divulgação da revista Cais, daqueles que se dão em estantes, nos cinemas, nos teatros e assim, uma fotografia de Carlos Paredes. É uma comovente imagem. Ele está vestido de fato, gravata e sobretudo. Tem nas mãos uma molho de cravos vermelhos e está a olhar de frente a objectiva. Está-nos a olhar de frente. Está mergulhado até aos joelhos na água, numa praia. Sob e sobre um azul glorioso. É uma fotografia azul, preta e vermelha. Como a sua música é azul, negra e vermelha.

Esta fotografia (o postal não identifica o autor, se alguém souber quem é por favor diga-me) comove-me até às lágrimas. Sempre que a vejo sou arrebatado por uma saudade e por uma tristeza tão terríveis.

Recordo um passeio de carro (dantes dava passeios), pela, agora ardida, Serra de Monchique, debaixo de chuva, cheiro a terra, tudo, ouvindo o Concerto em Frankfurt. Desde essa tarde de 1989 que identifico imediatamente a música de Carlos Paredes com as estradas espiraladas de Monchique.

2.
No outro dia, a propósito dos poemas de Cristina Tavares, dizia que as grandes almas são figuras de silêncio. Que habitam o palácio da discrição, que são anjos da simplicidade e que a sua forma de vida jamais cede a qualquer tipo de ostentação, isso é belo. Muito belo. É admirável. O mesmo se aplica a Carlos Paredes, discreto funcionário do Ministério da Saúde, até atribuía a comoção que as pessoas sentiam ouvindo a sua música à sonoridade da guitarra portuguesa e não às suas composições.

A doença de Carlos Paredes, a forma como tem sido vivido o drama da sua ausência, é o espelho da maneira como viveu o seu percurso como compositor. Não há vitimizações, nem grandes reportagens, nem cantos do cisne em forma de auto-apluaso. Paredes morrerá como viveu (é preciso lembrar a forma idêntica como José Afonso nos deixou): no silêncio dos inocentes.

3.
Palavras de Carlos Paredes:

«As pessoas gostam de me ouvir tocar guitarra, a coisa agrada-lhes e eles aderem. Não há mais nada».
In Público, 20/3/90

«Para se fazer música com prazer tem muita importância a amizade entre as pessoas. Não se pode fazer música friamente e com cálculo, profissionalmente, no mau sentido da palavra, a receber x à hora. Não pode ser assim».
In Se7e, 16/3/88

«A música que faço é um produto das circunstâncias imediatas do tempo em que eu vivo, e passará a ser encarada de outra forma quando essas circunstâncias desaparecerem. É uma coisa que, se perdurar graças aos discos, ficará apenas com o valor de documento, como acontece com toda a pequena música, desde os Beatles ao Manuel Freire. E já ficarei muito orgulhoso se, daqui a muitos anos, puder ser entendido como um compositor que se integrava bem nos acontecimentos desta época...».
In Se7e, 5/10/83


«Já me tem sucedido fazer as pessoas chorar enquanto eu toco... E eu não compreendia isto, mas depois percebi que é a sonoridade da guitarra, mais do que a música que se toca ou como se toca, que emociona as pessoas».

HORA DA FÉNIX 22 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

Um centro comercial no Martim Moniz em Lisboa. No primeiro andar, um casal de Brâmanes tem três lojas requintadamente decoradas. As lojas estão sempre de porta fechada e só as abrem mediante pedido expresso, e, como Brâmanes que são, não atendem toda a gente.

Quer ele quer ela são de uma delicadeza extrema. A mulher é de uma beleza tal, que nos paralisa. Sempre vestida como uma princesa dos sonhos. Ele tem um rosto sério, move-se reflectidamente, pausadamente e raramente fala. Tem um sorriso silencioso.

Numa das lojas está montado um altar ao Guru de Raiz dos sacerdotes que são. Sempre com flores, oferendas e incenso.

Não há outro sitio em Lisboa que onde se encontre insenso de tão boa qualidade, nem tão belos ornamentos indianos. Nunca procuram vender. Se alguém quer levar uma coisa tem de ser por sua iniciativa. Assim impõe a sua religião.

Cena 1

O homem comprou uma série de livros em impressos em hindi. Um com histórias infantis, outro com orações e um contando a lenda de algumas divindades.

Cena 2

Num dos livros, o das histórias infantis, o homem encontrou uma estranha ilustração. O papel indiano é um papel estaladiço, escuro. Os caracteres são impressos a chumbo. São gravuras preciosas. Cada livro destes é um ensinamento sobre da arte tipográfica.

A ilustração mostra um homem [marcadamente feminino] atrás das grades com as mãos amarradas atrás das costas a uma coluna belissimamente ornamentada. Tem uma cobra capelo envolta no seu corpo, como uma dupla prisão. A serpente olha-o de frente. Está pronta a atacar.

Fora da cela, uma mulher [marcadamente masculina], segurando uma citara, estende-lhe a mão sem o tocar. Ele sorri, ela olha-o apenas, talvez esboce um secreto sorriso.

No quadro ao lado, o homem está sozinho, continua amarrado entre grades, enrolado pela serpente. Nesta gravura está desenhada, fora das grades, uma divindade que o abençoa com a mão no mudra da protecção. O homem olha-o sério, a serpente também.

Cena 3

São dois desenhos misteriosos. Impossíveis de decifrar. O homem preso. Duas vezes preso. A mulher tocadora de citara. A divindade que o visita. Este homem preso está condenado ou protegido?

A serpente é a mão da morte ou a kundalini desperta?

Cena 4

O homem que comprou os livros, sentiu por várias vezes a tentação de procurar o casal para lhes pedir a tradução da história, mas nunca o fez. Sentia-se demasiado a personagem envolta na serpente atrás de grades.

Não sabendo porquê, apesar de todas as interrogações, a última imagem sugeria-lhe um momento terminal. O beijo da morte. A presença discreta da divindade abençoando o homem da história, dava-lhe uma certa esperança, ele, homem vulgar, personagem também, de um outro livro sem gravuras.



HORA DO DIABO 23 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

JESUS POBREZINHO
Romance Popular
Recolha de Antero de Quental

"Vindo um lavrador da arada,
Encontrou um pobrezinho;
O pobrezinho lhe disse:
- Tenho fome e tenho frio;
Lavrador, por Deus te peço,
Leva-me no teu carrinho. -
Deu-lhe a mão o lavrador,
No carro já metia;
À sua casa o levava,
à sua melhor sala que tinha.
Mandou-lhe fazer a ceia,
Do melhor manjar que havia;
Sentou-o à sua mesa,
Coa sua mão o servia,
Mandou-lhe fazer a cama,
Da melhor roupa que tinha;
Por baixo damasco roxo,
Por cima cambraia fina.

Era meia-noite em ponto,
O pobrezinho gemia.
Levantou-se o lavrador,
A ver o que o pobre tinha;
Deu-lhe o coração um baque,
Achou-o crucificado
Numa cruz de prata fina!

- Meu Senhor, quem tal soubera,
Que em minha casa vos tinha...
Mandara fazer preparos,
Do melhor que nela havia;
Mandara fazer preparos,
Do melhor que se acharia...
- Cala, cala ó lavrador,
Não fales com fantasia...
No céu te tenho guradada
Cadeira de prata fina;
Tua mulher a teu lado,
Que também o merecia."

quinta-feira, dezembro 04, 2003

A AGENDA 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Cena 1

O homem usa uma agenda de capa verde no bolso de dentro do casaco. Nessa agenda aponta, a vermelho, os nomes das pessoas com quem fala durante o dia mais a hora e o local.

«Dia 23 de Agosto de 2003
Café do Sr. Rodrigo
9.00h
1- Sr. Rodrigo
2- Sr. Jerónimo do banco
3- D. Marta

Café do Sr. Manuel
17.00h
1- Sr. Manuel e esposa, Sra. Rosa
2- Sr. José Manuel da papelaria
3- Viúva do Zé João
4- Cão da Viúva do Zé João (é muito engraçado)

Praça
19.30h

1- Senhora das castanhas (não é a mesma do ano passado)
2- Vizinha

20.30h
Entrei em casa.»

«2 de Dezembro de 2003
10.00h

1- Senhora da Bilheteira da Rodoviária
2- Sr. Que corta os Bilhetes à entrada do autocarro

12.45h

1- Sr. Da farmácia (muito antipática)
2- Cão do Sr. do Talho


20.30h
Entrei em casa.»

«1 de Janeiro de 2003
7.30h
Salão de Chá S. Sebastião (era o único aberto)

1- D. Mª José
2- Cão da D. Maria José (já está muito velhinho)

20.30h
Entrei em casa.»


Para além destes apontamentos, acrescenta a azul, em rodapé, o conteúdo das refeições:

«Dia 2 – Almoço, atum com pão. Jantar, arroz de tomate e grão com sardinhas de lata.»
«Dia 31 – Almoço, sopa de alface e um pêro. Jantar, Ovos verdes. Havia arroz doce»
«Dia 14 – Almoço, papa cerelac. Jantar, frango com esparguete.»


No topo das páginas regista em letras mínimas e em brevíssimas palavras o estado do tempo:

«Sol de manhã, nuvens à tarde»
«Sol todo o dia»
«Não parou de chover toda a manhã, à tarde céu limpo.»
«Nem frio nem calor. Casaco todo o dia do braço para os ombros.»


Durante todo um ano, talvez a pessoa com o quem homem tivesse falado mais foi o Sr. Rodrigo do café do Sr. Rodrigo e estiveram mais dias encobertos do que dias de sol.

Se pudéssemos ler a sua agenda era impossível saber se trabalha ou o que faz em casa. Não haveria qualquer registo de conversas telefónicas. Ou o homem não considera as conversas telefónicas conversas, ou não tem telefone.

Ainda um outro detalhe. No canto inferior esquerdo de todas as páginas canhotas, ele desenha um sinal redondo com um ponto no centro. Numa página o círculo é vermelho com o ponto azul, na seguinte, o círculo azul, o ponto vermelho.

Cena 2

Hoje ao fim da tarde, no café do Sr. Manuel, ao balcão, o lá estava homem, apontado em movimentos rápidos na sua agenda de capa verde.
Terá escrito: «Café do Sr. Manuel. 1- Sr. Manuel e esposa, Sra. Rosa»?

HORA DA FÉNIX 21 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Stand-Up Tregedy

Stand-Up Tregedy, é um grande espectáculo e os seus autores e actor, excelentíssimos desafiadores. Três lutadores. Stand-Up Tregedy é um combate.

Pensamos estar sentados em segurança nas fofas cadeiras do Maria Matos, pensamos: «Porreiro, vamos rir, vamos passar um bocado, divertidos». Já sabíamos que tudo o que ali se passasse seria pura inteligência, experiência e profissionalismo. Assim é, mas desenganem-se se pensam que se vão sentir confortáveis no riso e no choro. Em Stand-Up Tregedy, ri-se, mas com um aperto no coração,.Chora-se, mas com um aperto no estômago. É impossível a indiferença. Ou não se aguenta e se sai a meio, ou deixamo-nos levar por aquele turbilhão de interpelações. Somos obrigados a responder. Não se consegue um olhar passivo. Somos arrebatados por uma avalanche de emoções que nos fazem sofrer, que nos obrigam a mergulhar no que em nós normalmente não queremos enfrentar, mas também nos trazem momentos de profunda alegria e comoção.

Durante o espectáculo nós somos o “Ricardo Magalhães”, mas também o fã que ele não consegue fazer rir. Que bom um espectáculo que nos bate em cheio na tromba. Que bate em cheio na tromba de todos estes trastes que em Portugal quiseram inventar a moda do Stand-Up Comedy, e que mais não fazem do que se peidarem. Que bom este soco nas trombas dos adormecidos consumidores das agendas culturais: os espectadores.

Se por um lado Tiago Rodrigues, Luís Filipe Borges e Nuno Costa Santos, são herdeiros da genialidade pioneira de Herman José (quando ainda…), por outro são continuadores de uma nova maneira de fazer teatro “face-to-face”, não com espectadores, mas com PÚBLICO, de que durante os anos 70 e 80 Mário Viegas foi príncipe-regente. Agora está nas mãos destes homens – Produções Mundo Perfeito – e destes homens – público, saber dar o passo seguinte. Isso não vai ser fácil. Pior, pode ser fácil demais. Enfim, vai ser uma luta ainda maior.

Para terminar, registo como até a cenografia (que subtilmente parece aludir ao logótipo da AXA – patrocinadora no espectáculo), está isenta de excessos ou de minimalismos gratuitos. Funciona. É mesmo cenografia, um espaço onde decorre uma acção, que serve o espectáculo. E, neste campo, trabalhar Stand-Up Tregedy, não era de todo menos arriscado. Tiago Costa Gonçalves ganhou essa aposta, tornando o espaço cénico uma personagem fundamental do espectáculo.

quarta-feira, dezembro 03, 2003

HORA DO DIABO 22 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Acabado de chegar do Teatro Maria Matos, ainda sem palavras, depois de assistir a "Stand-Up Tragedy".

Deixo para amanhã o que podia fazer hoje: agradecer o extraordinário espectáculo montado pelo "Mundo Perfeito", assim como ao Tiago Rodrigues pela excelência do seu trabalho.

Aqui fica uma pintura de Francis Bacon em forma de gratidão.




Lisboa-Rio 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Com a chuva, as ruas da baixa tornaram-se afluentes do Tejo. A casa das essências, as retrosarias, as tabacarias, tomaram a forma de marinheiros, os cafés, ancoradouros. Lisboa-terra e Lisboa-rio uma só.

18 Anos de POLÍTICA OPERÁRIA 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

18 ANOS DE “POLÍTICA OPERÁRIA

“A CANTIGA É UMA ARMA”

Espectáculo com:

José Mário Branco
Amélia Muge
João Afonso
Tino Flores
Manuela de Freitas


18 Anos de Inteligência
18 Anos de Coragem
18 Anos de Luta
18 Anos Inconformismo
18 Anos a pensar à Esquerda, sem cedências.

6 de Dezembro na Faculdade de Belas Artes de Lisboa, 21.30h

HORA DA FÉNIX 29 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny


FOTOGRAFIA DE NADAR

"ANTIGA DOR"

"O subtil, o reflexo, o vago, o indefinido,
Tudo o que o nosso olhar só vê por um momento,
Tudo o que fica na Distância diluído,
Como num coração a voz do sentimento.
Tudo o que vive no lugar onde termina
Um amor, uma luz, uma canção, um grito,
A última onda duma fonte cristalina,
A última nebulosa etérea do Infinito...
Esse país aonde tudo principia
A ser névoa, a ser sombra ou vaga claridade,
Onde a noite se muda em clara luz do dia,
Onde o amor começa a ser uma saudade;
O longínquo lugar aonde o que é real
Principia a ser sonho, esperança, ilusão;
O lugar onde nasce a aurora do Ideal
E aonde a luz começa a ser escuridão...
A última fronteira, o último horizonte,
Onde a Essência aparece e a Forma terminou...
O sítio onde se muda a natureza inteira
Nessa infinita Luz que a mim me deslumbrou!...
O indefinido, a sombra, a nuvem, o apagado,
O limite da luz, o termo dum amor
Tornou o meu olhar saudoso e magoado,
Na minha vida foi minha primeira dor...
Mas hoje, que o segredo oculto da Existência,
Num momento de luz, o soube desvendar,
Depois que pude ver das Cousas a essência
E a sua eterna luz chegou ao meu olhar,
Meu infinito amor é a Alma universal,
Essa nuvem primeira, essa sombra d’outrora...
O Bem que tenho hoje é o meu antigo Mal,
A minha antiga noite é hoje a minha aurora!..."

TEIXEIRA DE PASCOAES


terça-feira, dezembro 02, 2003

HORA DO DIABO 21 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

PINTURA DE FRANCIS BACON

Cena 1

Duas poltronas frente a frente.
Dois homens sentados.
Semana atrás de semana, os homens encontram-se para falar.
Quando um chega, um aperto de mão sela o encontro e o início da partida.
Há um relógio oculto a que só um tem acesso.
Como numa partida de xadrez, vão movendo palavra a palavra, peça a peça.
«- Na semana passada ficámos?»
«- Na semana passada ficámos...»
Um acende um cigarro e pensa: «Precisava de um lenço».
O outro diz-lhe: «Quer um lenço?», «Sim, obrigado. É para o suor das mãos».
Durante duas horas os homens confrontam os seus olhares. Os segredos.
Ao fim de duas horas, o poder do relógio oculto revela-se nas palavras de um deles: «Esta semana ficamos por aqui».
O outro levanta-se e despede-se: «Então até para a semana».
As “peças do xadrez” ficam no tabuleiro. A partida é interminável.

Cena 2

O homem anda uns quarteirões e diz em voz baixa: «Não queria ter jogado a “rainha”».

HORA DA FÉNIX 19 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

LE CHANT DES PARTISANS

Esta canção é dedicada a todos os que se matêm motivados.
É especialmente dedicada a todos os resistentes.

J. Kesse, M. Druon, A. Marly - 1943

"Ami entends tu le vol noir
des corbeaux sur les plaines
Ami entends tu le bruit sourd
du pays qu'on enchaine

Ohé partisans ouviers et
paysans c'est l'alarme
Ce soir l'ennemi connaitra
le prix du sang et des larmes

MOTIVÉS, MOTIVÉS
IL FAUT RESTER MOTIVÉS.
MOTIVÉS, MOTIVÉS
IL FAUT SE MOTIVER.

C'est nous qui brisons
le barreaux de prisons
por nos frères?
La haine à nos trousses, la faim
qui nous pousse à la misère.

Il est des pays où les gens au
creux des lits font des rêves,
Chantez compagnons dans la nuit
la liberté vous écoute.

MOTIVÉS, MOTIVÉS
IL FAUT RESTER MOTIVÉS.
MOTIVÉS, MOTIVÉS
IL FAUT SE MOTIVER.

Ami si tu tombes un ami sort de
l'ombre à ta place,
Ici chacun sait ce qu'il veut,
ce qu'il fait quand il passe.

Ohé partisans ouviers et
paysans c'est l'alarme
Ce soir l'ennemi connaitra
le prix du sang et des larmes."

HORA DO DIABO 20 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

Vê-se uma luz amarela da janela. A mulher grita, grita, grita. Está sozinha em casa. Ouvem-se passos cegos pelo corredor, sempre aos gritos, como espasmos, convulsões. Quase uma hora depois acende-se outra luz. Já não grita. Já não anda, já não nada. Tudo parece ter-se silenciado mortalmente. As luzes mantêm-se. As janelas abertas ao frio. Para a mulher a noite não é uma noite mas um interminável abandono.

segunda-feira, dezembro 01, 2003

Stand-Up Tragedy, o Dilema 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Para o Luís Filipe Borges, para o Nuno Costa Santos, para o Tiago Rodrigues,

Caros Amigos,

O DILEMA.

Ter dilemas na casa dos trintas é muito chato. É quase como nos dizerem num dia «tens um cancro nos pulmões» e no outro «távamos a reinar». Nos trintas não se brinca com certas coisas. É que só se volta tranquilizar aos quarentas e com ajuda de filmes do Woody Allen (com a Diane Keaton), à noite, na televisão e com comida indiana.

Vocês criaram-me um dilema. Quer dizer, criaram um espectáculo e um blogue, vocês não fizeram por mal, queriam fazer alguma coisa, conheciam-se, eu percebo, são mesmo coisas que acontecem, arranjaram dinheiro, puseram "AXAs*" na fogueira, sacaram o Maria Matos, o Blogue é de borla. Pronto, é uma coisa normal.

O problema é meu. Não vos estou a culpar de nada. Quem sou eu?

Quando vi o cartaz do "Stand-Up Tragedy" e dei com os postfree, disse: «olha vou ver isto». Quando dei com o Blogue, disse: «olha vou ler isto e depois vou ver aquilo», o "S.U.T." E isso é que lixou tudo.

Mas não foi por mal, hã? Vocês fizeram tudo bem. O que aconteceu é que ao ler os vossos textos me identifiquei tanto com as vossas questões e com as respostas que não encontravam que comecei a preocupar-me convosco, com o espectáculo. Ao jantar pensava, «os gajos estarão a dar a volta aquilo?»; «O Tenente tem pano para fazer o fato do Tiago?»; «Como é que o gajo se vai aguentar sozinho num teatro daquele tamanho?»; «Ele não é Frank Sinatra, não tem orquestra, como será que a mãe dele vai reagir?»

Caí no erro de vos continuar a ler e deixar que isso interferisse com as minhas emoções mais íntimas. Sobre tudo porque percebi que vocês estavam a fazer um trabalho sério. Isso então custou-me imenso. Apareciam-me frases na noite, fluorescentes, como aquelas estrelinhas que se colam no tecto: «Eles não estão a brincar!», «Como todos nós que trabalhamos no teatro, eles não sabem o que fazem, mas tentam saber!», «Eles já devem estar a fumar demais!», «Eles não estão a comer como deve ser!». Um inferno de noites!

O processo que vocês descrevem no Blogue, sobre a construção deste espectáculo, é tão reflectido, verdadeiro, sincero e inteligente, que comecei a desenhar um espectáculo na minha cabeça que certamente não é o espectáculo que vocês montaram. O «Ricardo Magalhães*» da minha cabeça não é, não pode ser, o «Ricardo Magalhães» que está no Maria Matos. E se eu vou ver o espectáculo e dou com um "Ricardo Magalhães" sem interesse nenhum. Porque é que não fico por aqui? Afinal já existe um «Stand-Up Tragedy», criado por mim a partir dos textos do vosso Blogue. Esse «S.U.T». não é secundário em relação ao outro. São dois. São mesmo dois. Um na minha cabeça, outro lá, todas as noites. Se vejo os dois, um pode destruir o outro, destrói de certeza e eu estou atravessar uma altura da minha vida em que não posso passar por essas coisas.

Mas ainda estive na fila da FNAC para comprar bilhetes. Mas quando chegou a minha vez não fui capaz. Aliás já me estava a sentir mal à uma meia-hora. Não sei o que fazer. É demasiado duro. É que uma pessoa envolve-se muito.

Por enquanto, o Tarot disse-me que ficasse só pelo Blogue. Que é mais prudente. Aqui junto ao computador tenho um postal do espectáculo. Amanhã o Tiago Rodrigues vai ao "Pessoal e Transmissível" (é amanhã não é?) na TSF. Vou ouvir e depois logo resolvo não ir e arrepender-me para sempre.

Vosso amigo,
Frederico

* AXA - Patrocinador do espectáculo.
* Ricardo Magalhães, a personagem do espectáculo.

HORA DA FÉNIX 18 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

Aos Irmãos Guardas do Selo (em memória da tarde de chuva que foi a de 29/11/2003)

Sempre me senti uma pessoa secreta, secreta para mim próprio. Noto que os outros se assustam com isso. Ao contrário do que se pensa, ser secreto, não é estar a esconder alguma coisa dos outros. Esse é o significado banal que se dá ao segredo. Não! Ser secreto, pode ser, entre muitas outras coisas, olhar “a face oculta de uma descoberta”. Repare-se como é paradoxal esta frase, o oculto no que se desocultou. Quer dizer, aquilo tendo sido encontrado não foi ainda revelado. Antes de encontrarmos o tesouro, deparamo-nos com o baú onde ele se oculta. É ainda preciso ter a chave da arca, ou saber usá-la. A chave é um segredo, o tesouro é um segredo, a revelação não.

A palavra segredo vem do latim, “secretus”, que quer dizer separado, particular. Portanto, um segredo é uma seita de algo mais vasto, é um segmento da descoberta.

É também uma informação ou conhecimento a que apenas alguns devem ter acesso e que os seus detentores não devem comunicar. Coisa possível de honrar ou de trair. Como extremos opostos que são (a honra de um segredo e a traição do mesmo), tocam-se, nem sei se o sinal é diferente. Seja como for, mais uma vez, o segredo, surge como fracção, uma “informação”, um “conhecimento”, que só alguns devem ter acesso. Assim, o segredo não é a Verdade revelada, pois a Verdade não pode ser sectarizada. “O Sol quando nasce é para todos”.

Há uma expressão muito interessante: “Segredo da Abelha”, que se refere a algo extremamente secreto, um mistério. Segundo esta expressão, o segredo pode atingir proporções de infinita separação, de “micro-seita”. Algo que está tão separado da Verdade, que se torna invisível até à própria Verdade, mesmo sendo parte dela.

Daí que uma pessoa secreta, é um ser que ainda não se revelou, que ainda não despertou, apesar de ter encontrado, como um clarão de luz, uma porta para o despertar. Mas como ainda se encontra no terreno do segredo, do segmento, precisa encontrar a chave, ou tendo-a encontrado, aprender a manejá-la. A chave da porta do “Santo dos Santos”, onde repousa “arca”, o tesouro da verdadeira Iluminação. Será a “Arca da Aliança” dos Judeus? O “Stupa” dos Budistas? O “Coração” dos Budas? A “Mortalha” de Cristo?

Na história da arte dos homens, uma pintura de Francis Bacon (ver Diário de Imagens), aparece-me como uma verdadeira catedral edificada ao sacrifício do segredo: “Três Estudos para uma Crucificação” – 1944. É uma das primeiras pinturas de Francis Bacon, e a marca da pessoa secreta que foi até à morte.

HORA DO DIABO 19 - Papa Fidel 

"queria de ti um país de bondade e de bruma/queria de ti o mar de uma rosa de espuma" - Mário Cesariny

Diário de Imagens “Saudades de Antero”

Em Janeiro de 1998, uma rádio portuguesa, emitiu um dois mais belos textos da história da telefonia sem fios.

Nessa manhã de Janeiro de 98, aos microfones da TSF, Fernando Alves, leu “Outono dos Patriarcas”. Quando se canta com tamanha perfeição, quando nos sentimos assim elevados ao que em nós é puro e verdadeiro, quando as palavras são como Bach, quando a música se espalha nas veias e nos deixamos contaminar, como nessa manhã, a gratidão que sentimos pela vida é tanta que passados estes anos a bênção ainda perdura.

“Sinais”
“O OUTONO DOS PATRIARCAS”

Por Mestre Fernando Alves

“Cinco minutos antes das quatro da tarde, que canta o mar em Cayo Largo?
Que odores empurra o vento em Pinar del Rio?
Os dois patriarcas já se cumprimentaram, une-os o intimo desejo de que o Outono não dispa o seu esplendor, são tão irmãs a fé e a revolução, tão siamesas na celebração dos mistérios.
Como dirão, estes homens, em privado, o peso do fardo que carregam?
O de branco e o outro que hoje, não vestiu a farda verde oliva. Patriarcas partilhando os seus Outonos. Vozes tão embargadas de futuro, tão pouco já o tempo para abrir tanto fechamento ao mundo.
Cinco minutos antes das quatro da tarde, o homem de branco vai debruçar-se sobre o pulso do homem de longas barbas que hoje não vestiu a farda verde oliva. O das longas barbas inclina-se, levemente. O de branco, que tanto se ocupa da eternidade e dos mistérios do tempo perguntará ao outro, talvez: «Que horas são, no teu pais?».
Que metáfora da tirania do tempo há neste instante suspenso em que o papa vê as horas pelo relógio de Fidel? É já pouco o tempo, qualquer deles poderia ter dito, no desconforto do Outono dos patriarcas, é já pouco o tempo.
Imaginamo-los, a sós, discorrendo sobre o princípio e o fim.
Sobre se chegará esse lugar, no fim do tempo, em que as tábuas da lei, da fé e da revolução estarão consumadas.
«Teremos diante dos nossos olhos a terra prometida que ambos anunciamos?».
Eis o que um gesto apenas sugere: a breve história do tempo no aeroporto de Havana.”

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