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domingo, dezembro 28, 2003

HORA DO DIABO 43 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

está quase a passar mais um ano.

neste momento, em milhares de monitores de computador, em milhares de países que se gerem pelo calendário gregoriano, deve estar escrita esta frase, como uma resposta de oráculo, como a verdade inscrita nas cartas.

e que interessa essa passagem? quando chegar esse momento a que chamamos meia-noite, será menos uma hora nos açores e mais uma em espanha. só com os fusos horários podíamos adiar horas a passagem do ano. já me contaram que alguns milionários obscenos (como todos os milionários) andam de avião saltando de país em país a papar festas de ano novo.

tudo o que é importante na vida dorme a essa hora: crianças, animais e mortos. claro que as crianças e os animais acabam por acordar com o barulho histérico dos foguetes municipais, das bebedeiras encomendadas pela agenda da diversão. os mortos não sei se acordam.

em évora, numa dessas noites, uma mulher afogou-se em chamas. auto-combustão. fogo espontâneo no corpo. das tripas para todo o corpo. rebentaram-lhe os intestinos de brasa e foi ardendo até ao cabelo. uma mulher de trinta e cinco anos. juntaram-se bombeiros e ambulâncias, mas nada era possível fazer para roubar o ser às chamas que lhe brotavam do ventre. ainda cheguei a ver os restos de corpo embrulhados num cobertor cinzento. já toda a gente se esqueceu. não interessa lembrar estas coisas. não “lhes” interessa registar na consciência como esta cidade é negra apesar da sua aparência branca, dos raios de luz que vendem em postais eleitorais. mas que a mulher ardeu, ardeu. o cão que vivia com ela dorme agora ao relento na praça do giraldo. um cão enorme, castanho claro.

quando o diabo emerge do chão de mármore da igreja de santo antão, o cão olha-o fixamente. é dos poucos que ousa enfrentá-lo. os outros, os indígenas, fingem que não o vêem, e quando alguns turistas, na presença incendiada do saramago, fogem em corrida desesperada ruas fora, dizem que são loucos, que vêm para cá fazer o que não fazem na terra deles.

está quase a passar mais um ano.

está?

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