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sexta-feira, dezembro 19, 2003

HORA DO DIABO 36 - O NATAL MATA 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

o natal mata-nos, tortura-nos, é a alma e o símbolo do sofrimento. o natal é uma finta ao amor, à compaixão e à sensibilidade. todos os que já morreram com o natal, e os que vão ainda morrer, um dia se levantarão das covas e vos amaldiçoarão, a vós, impotentes desertores da humanidade, que no último suspiro dos vossos vícios, levam atrás os que são esmagados pela ânsia apopléctica de ser ovelha no rebanho. afinal que vos importa que alguém sofra? uma criança que seja, uma, e já seria o bastante para vos emendardes. mas não, preferis, bizarros sugadores de almas curvadas, beber até à última gota, o sangue dos que são esquecidos…
…do tormento que hoje causais aos povos com os vossos actos, nascerá, um dia, uma flor de pólen dourado, e tão habituados estais vós a seguir o ouro, que vos deixarei inebriar pelo perfume mortal da flor. será da semente que hoje plantais que nascerá o odor da vossa morte...
…vós, medíocres espiritualistas, que procurais com as vossas estóriazinhas, invocar as fadas e os gnomos, para dar sentido ao terror da consoada; vós, medíocres paganistas, que invocais os festejos do solstício, para esconder a vossa ânsia desmedida de espezinhar os corações cativos; vós, escritores, que empestais as páginas da prensa, com os vossos $continhos$ de reis, esperando o dízimo do leitor, tão prontos estão sempre a encher a vossa pança de pestanas queimadas; vós, mães que levais vossos filhos ao baptismo, para depois os corromperem com bolos, sujando com vossos beijos as faces puras do estado de graça; vós, ridículos meninos jesus, que em todo o mundo deixais beijar vossos pés; e vós, correntes de fraternidade, que fechais as portas à hora do peru, para que pobres bocas de fome não os possam trincar, interrompendo-vos a digestão; vós, cegos que desejais ver, surdos que desejais ouvir, mudos que desejais falar, paralíticos que desejais andar, vós imundos, que sujeitos ao vosso desejo, desejais ser normal e consoar andando e vendo e falando e ouvindo; e vós, músicos de telefonia, que vendeis notas de música em papel de euro; e vós, cães e gatos e sapatos, todos por igual enroscados na fímbria do roupão dos vossos donos, pais, maridos, mulheres, cadelas, gatas…
…vós todos que acinzentais os céus em cheiros de fritas e bolos de natal: bolos de rei, vós todos, um dia, tereis consciência de que hoje despedaçais corações e será em vão. esse homem que hoje utilizais para mascarar a vossa sede de terror, não vos convocará para a ceia do senhor, não vos reconhecerá na noite do juízo, não saberá onde repousam os vossos restos…
… vós que hoje desprezais os esquecidos nesta data, enfeitiçados pelo deve ser e pelo assim se faz, mergulhareis nas trevas do para sempre, mas conscientes, conscientes de que a vossa vez será a vez do esquecimento.

assim seja!


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