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quinta-feira, março 31, 2005

quarenta romances de cavalaria # 22 

# 22 – quinta-feira

NASCEU CEDO A MINHA PAIXÃO POR VENTOÍNHAS talvez ainda nem fosse criança e já sentisse esta obsessão por hélices giratórias e vento artificial mais que uma paixão é um verdadeiro amor mais que um verdadeiro amor é a minha forma de acompanhar o planeta nas suas viagens e rodar a vida tenho uma imensa colecção de ventoinhas e todas sempre ligadas girando ininterruptamente em diferentes velocidades mas com uma impressionante harmonia se vou a um restaurante que ainda mantém aquelas velhas pás no tecto que não aquecem nem arrefecem o meu pequeno cérebro expande-se imediatamente num universo de maravilhosas efabulações é tal a minha excitação que até as unhas ouço crescer numa correria numa ânsia desmedida de tudo encontrar nada na vida pode ser mais estimulante que uma ventoinha e o vento que dela sai na direcção dos nossos mais íntimos desejos é o verdadeiro sopro de deus ali à mão de um clique se tivesse dinheiro mandaria vir ventoinhas de todas as partes do globo cada uma com a sua verdade porque não se julgue que uma ventoinha asiática tem a mesma vibração que uma ventoinha caribenha nas hélices que transportam uma ancestral cultura centrípeta rodando com uma energia insuperável que anima o cosmos mais que o amor de mãe mais que flores no campo mais que o a cor amarela do mar da jamaica o mundo só será digno desse nome quando reconhecer às ventoinhas o exemplo e o símbolo de toda a criação como foices girando sobre as nossas cabeças_

quarta-feira, março 30, 2005

quarenta romances de cavalaria # 21 

# 21 – quarta-feira

PROCURA-ME há um astro onde todos os dias te aguardo não te consigo explicar com exactidão onde fica esse lugar onde construí o meu leito uso hoje pela primeira vez a cabeça de fogo que deus concebeu para mim para que não padeça já deste jacto de sangue que me impedia de ver-te ainda não tenho os pensamentos ordenados ou pelo menos julgo ainda não os ter ando para trás e para a frente com ideias e memórias e datas prometeram-me uma adaptação rápida se vieres mesmo no escuro espacial do nosso sistema de planetas não terás dificuldade em me encontrar talvez mesmo daí onde quer que estejas consigas ver as chamas que nascem dos meus ombros e o fumo que anuncia a minha presença não tenhas medo a minha cabeça ardente não te queimará o fogo que transporto só a mim atinge para ti será como água refrescante na primavera ou qualquer outra coisa agradável que desejes será orvalho se assim o quiseres nada foi deixado ao acaso durante milénios deus pensou em mim projectou esta cabeça com todo o seu saber as palavras deixaram de me ocupar a garganta os dentes deixaram de me doer nem tenho dentes que me possam doer não há nada que não possa ver nem nada que não possa conceber deixei de estar limitado pelos olhos e pelo cérebro sou como um arbusto ígneo a voar espalhando chispas de claridade e aromas de todas as cores não terás dificuldade em me achar todos estes sinais te guiarão até mim até este lugar-astro onde todos os dias te aguardo és o que me falta para a total liberdade que seja já o nosso encontro que nada nos impeça do que for agarrar o sol pelos pés ou cuspir na lua que seja hoje a nossa união de bandeiras não teremos que falar nem assuntos para tratar nem problemas de dinheiro o universo abriu-se deus deu-me uma cabeça que cavalga em azul e transporta sonoridades que nunca ninguém sequer imaginou possíveis a um ser humano tenho as pernas a tremer tudo o que em mim não é fogo treme preciso que venhas e me dês a liberdade de ter uma vida nova num novo universo de flores árvores e castelos_

terça-feira, março 29, 2005

quarenta romances de cavalaria # 20 

# 20 – terça-feira

VERDES ANOS NO ECRÃ vi-te no escuro ao espelho como direi que te amo com que palavras com que corpo vi-te chorar paulo rocha dos meus anos verdes e não fui capaz de lamber as lágrimas que não contiveste estive no ecrã e fui a mão do sapateiro fui o martelo o prego a graxa o cigarro fui a lama da guitarra-falua fui a saia de isabel ruth a faca nos teus olhos em sangue com que palavras direi que te amo nesta noite imensa onde os cantos são maiores que as mais densas luas quero abraçar-te enquanto este momento me possuir quero voltar aos teus braços isabel quero beber o tejo inteiro de um ecrã voarei ao teu lado paulo voarei pelos parques pelas ruas serei os teus olhos quando cegares serei o teu coração quando secarem as tuas veias quero ser a flor animada da tua continuação quero celebrar esta noite de tambores dispo-me disto que aparento usarei máscaras que aos teus olhos pareçam os que já partiram enquanto remavam a embarcação de amores perfeitos que inventaste ruy furtado paulo renato carlos paredes serei todos terei todos os rostos tocarei todas as músicas uma última vez quero dar-te asas meu príncipe_

AR LÍQUIDO 2 

O Ar Líquido Continua!

quarenta romances de cavalaria # 19 

# 19 – segunda-feira

UM GATO aquece-me como um relâmpago e todo eu estremeço como uma corda de violino ou um piano a afundar-se em mim com estes pensamentos o sono esquiva-se ainda mais em criança deixava-me embalar pelo som das sirenes das ambulâncias sons distantes de aflição e horror que entravam pela janela sons tão distantes que julgava ser impossível acontecerem grandes tragédias graves acidentes ou doenças terríveis estando eu no conforto e na segurança da minha pequena cama quando era criança a tragédia vivia longe tão longe como o som das sirenes talvez seja melhor levantar-me e desistir de dormir parar com estas ficções alucinadas de gatos-relâmpago e cordas de violino se pensasse em ti talvez dormitasse mas cedo chegariam os teus insuportáveis oníricos cânticos de oração não quero prefiro assim daqui a pouco passará o carrinha do lixo som que também me costuma trazer alguma tranquilidade não me adormece mas repousa-me ouvir aqueles grandes motores que elevam os contentores e os apitos sinto-me feliz por ainda não ser um osso de frango roído num saco de plástico serei uma pasta de insones ossos e gorduras mas reconforta-me saber que ainda não fui roído pelos caninos dos vizinhos e se deixar a janela aberta talvez volte a acontecer um milagre como o daquela noite em que entrou um avião telecomandado muito vermelho no quarto nunca tinha sentido um tal assombro nem um tão profundo prazer havia luzes no tecto calor e transparências recortadas na sombra dessa vez adormeci e sem histórias de gatos à cabeceira dos meus lábios é melhor levantar-me e esperar em pé por alguma doença ou recordar quando tu também aqui dormias e os lençóis estavam sempre quentes de nós já não sei o que pense nenhum gato me aquecerá como um relâmpago fazendo-me estremecer como uma corda de violino nem um piano se afundaria em mim não voltarão aviões telecomandados muito vermelhos o sono não me quer ou o sonho não me quer ou as duas coisas a indiferença é total os lençóis permanecerão gelados e se penso em ti como quase sem dar por isso ainda agora estava a fazer não tardarão a ouvir-se as missas de requiem que me dedicaste levanto-me sim não tardará a passar a carrinha do lixo_

domingo, março 27, 2005

quarenta romances de cavalaria # 18 

# 18 – domingo

O AR NÃO VOLTA a fúnebre rotina do sistema solar as estrelas cadentes cada vez menos cadentes as chuvas de abril transformadas em míseros aguaceiros que só encharcam as bainhas das calças e por aí fora são tantas as razões tantos os desapontamentos que é compreensível que o ar não possa nem deva voltar a esta estúpida repetição cósmica que não merece o seu regresso podemos dar a sua ausência como permanente como um facto consumado mas claro vivemos todos a dar ais e ós aos vermelhos da abóbada celeste quando o sol se ergue sem nunca termos visto o içar do sol o mesmo de exclamações em voz alta quando se proclamam odes ao entardecer sem que ninguém ponha a cabeça fora da janela para assistir ao encovamento solar é tudo um embuste uma farsa mal encenada tudo as estações do ano os meses os dias da semana só as horas desempenham bem o seu papel porque é o relógio que marca o momento da próxima distracção é assim que vivem os homens e os próprios deuses permanentemente deslumbrados com deslumbramentos que nunca presenciaram nem sentiram nem ouviram espantos que nem imaginam que se podem sentir ou ouvir a respiração extinguiu-se as mãos já não agarram e os pés já não caminham em tempos o ar foi o elemento mais puro de todos os elementos mais ainda que o éter e nunca o soubemos inspirar e expirar convenientemente com generosidade o sopro generoso que o ar nos oferecia é claro que não queremos ter consciência disto nem de nada e o ar foi-se é tão evidente isto que nem percebo como não salta pelos olhos a dentro de qualquer mortal quer dizer percebo pois se ninguém acende as pálpebras não é ar esta coisa chumbenta que nos ocupa os pulmões o ar não está poluído o ar não está contaminado o ar não está é cá não foram os muitos monóxidos de carbono que o contaminaram e nos puseram a tossir relva o ar é incontaminável simplesmente está noutro lugar e não voltará com o tempo também a terra e o fogo e até o mágico e subtil éter nos abandonarão a mente turva tomou conta dos corpos vivos da terra não só dos humanos não são as hecatombes ecológicas que farão os mares o chão que pisamos ou as chamas que resplandecem alterar a sua pureza quando acharmos que a água é só lodo que a terra secou de vez que o fogo devasta indiscriminadamente florestas e casas não se pense que são os elementos que estão danificados eles não se deixam danificar eles já não estarão é entre nós e ponto final ao longo dos anos alguns homens e mulheres abandonaram os seus pequenos pedaços de crosta terrestre partindo na demanda desse lugar onde o ar se esconde chamaram-lhe graal chamaram-lhe guerra santa todos os nomes mas independentemente das suas compassivas intenções nada mais que mãos vazias no regresso esse lugar onde o ar habita e os outros elementos habitarão depois de nos abandonarem completamente não é acessível ao esforço humano nem na vida nem na morte e depois que sentido fará residir num universo abandonado pelos elementos nem valerá a pena inventar como é usual sistemas de invocação minadores de cérebros com complicadíssimos rituais aquilo a que costumamos chamar medicina sobre este abandono nada há a fazer resistir é já estar derrotado_

sábado, março 26, 2005

quarenta romances de cavalaria # 17 

# 17 – domingo

ACORDEI com pés virados para o lado esquerdo mas tenho a certeza de ter adormecido com eles postos para a direita isto parece não ter importância nenhuma mas faz parte de uma história que não começa aqui logo em criança tomei consciência de que os meus pés se movimentavam com uma inteligência separada da minha actualmente é uma coisa que não me incomoda muito quando estou acordado conversamos bastante posso dizer com orgulho que tenho uma boa relação de entendimento com os meus pés a pior fase foi durante a adolescência pois a acção das pernas raramente coincidia com a dos pés chegámos a caminhar vários quilómetros em direcções diversas até que reparasse que não os tinha fazendo-me farejar todo o caminho para trás à cata deles nessa altura discutíamos muito tivemos zangas que quase nos incompatibilizaram para a vida e à conta destes desentendimentos já nem tenho conta da quantidade de pares de sapatos que então perdi somada à natural confusão existencial na vida já de si solitária de um adolescente tinha que suportar os olhares piedosos e tolerantes dos mais velhos que sempre que tentava expor este assunto calados me consideravam um verdadeiro louco varrido que não se deve contrariar se fosse hoje ter-me-iam pespegado num psicólogo qualquer ou mesmo num instituto psiquiátrico naquela altura ainda não se falava nessas coisas e a atitude normal das pessoas face aos loucos da família era não os contrariar abanando que sim com a cabeça de facto nunca me contrariaram o que significa que também nunca me ajudaram tive que lidar com este milagre absolutamente sozinho e aprender a resolver esta situação contando apenas com o meu parco discernimento procurei em livros e enciclopédias livros sagrados e de medicina e nada nem um registo sobre tal patologia felizmente vamos envelhecendo e estas coisas vão ganhando uma proporção equilibrada é engraçado que tenho a sensação que os meus pés envelheceram ou amadureceram ou lá como quisermos chamar muito mais rapidamente do que eu e com a passagem do tempo aquela massa de carnes veias e falanges foi-se tornando mais dócil ao trato e de há uns anos para cá temos vindo a administrar esta separação corpórea com a devida responsabilidade e competência penso que fiz um bom trabalho de paciência e estudo sobre mim próprio ao longo dos anos apesar de difícil arranjámos uma solução de coabitação tecnicamente bem projectada e eficaz no entanto persiste um mistério nesta estranha existência que ainda não sei explicar e que receio nunca vir a descobrir a não ser que o acaso me conceda essa sorte o mistério reside naquilo que os meus pés fazem enquanto durmo não raras vezes no meu despertar matinal dou com eles presos às pernas erradas quer dizer o pé esquerdo preso à perna direita e o pé direito preso à perna esquerda até já os tenho apanhado fora da cama com os sapatos calçados quando posso jurar que adormeci descalço e com eles no devido lugar só eu sei disto porque sou sempre eu que acordo primeiro aliás sou sempre eu que os desperto e ou por medo de voltar aos conflitos do passado ou por no fundo reconhecer o direito que eles têm a uma vida própria nunca ousei perguntar o que quer que seja talvez nem devesse pensar nisto nem me deixar intrigar com estes fenómenos que no fundo são completamente insignificantes mas não posso negar que isto me deixa um pouco obcecado talvez até com inveja provavelmente essa será a verdadeira razão desta minha fixação curiosa é como se no fundo adivinhasse que nos momentos em que durmo eles viajam e são livres muito mais livres que eu e que essa liberdade lhes confere uma felicidade uma vivência que me está vedada_

sexta-feira, março 25, 2005

quarenta romances de cavalaria # 16 

# 16 sexta-feira

ÉS UMA PRAGA DE GAFANHOTOS começaste bem foste a célula fundadora de um sério espírito revolucionário apoiaste a tua acção na mão esquerda de antero saíste à rua com a bandeira certa entre os dentes avante meus irmãos de todo o mundo soubeste gritar nos teus primeiros escritos e por aí ficaste mesmo quando foste o único a corajosamente caminhar contra os fuzis no campo negro da batalha fascista já não tinhas no coração a força da clareza e a pureza da revolução mesmo quando corajosamente foste o único a caminhar contra os fuzis no negro campo de batalha fascista foi a revolução permanente que quiseste matar quando chegou a madrugada que todos nós esperávamos o dia inicial inteiro e limpo onde emergimos da noite e do silêncio e livres habitámos a substância do tempo arrancaste os cravos das mãos dos teus irmãos e substituíste-os por váliuns e assim os mandaste aos teus irmãos de sangue sem escrúpulos afrontar o inimigo errado o teu movimento rodou para a mão direita de antero para o momento em que na praia no desengano ele disparou o gatilho contra a sua própria cabeça e a cabeça atingida de antero foi a tua cabeça a furar-se hoje sexta-feira santa és um moribundo de cornos sangrando com a forma de uma praga de gafanhotos e as tuas últimas forças se concentram como sempre na tentativa de infiltrar os teus exércitos de insectos cegos pelas frinchas dos corpos sãos daqueles que te conhecem e denunciam as vísceras o teu saber mesmo ferido de morte é atacar o teu inimigo de hoje é o teu inimigo de antes o poema o teu exército está disposto a tudo a morder as mais gentis flores que desabrochem à tua esquerda enquanto deixas impunes e de campo livre aqueles que te rodeiam pela direita hoje que é sexta-feira santa só te consigo desejar a morte mas apesar de ser morte o que te desejo a morte que te desejo não é a morte que me desejarias é esse o tudo que nos distingue eu quero que morras hoje mas que não tenhas o estertor doloroso e lento que certamente quererias para mim tu não és o meu inimigo nunca foste nisso nunca me conseguiste fazer acreditar quero que tenhas uma boa morte suave e delicada como um poema o poema que sempre tentaste destruir a mão esquerda de antero que decepaste que a tua morte seja só um deixar de respirar talvez no domingo ressuscites e se assim for podes acreditar que durante este sábado de aleluia incontáveis hostes de cavaleiros vermelhos estarão a preparar-se para te receber entre as suas fileiras de poema e entre nós que eu serei um desses cavaleiros poderás novamente permanecer até que a história se repita e das tuas mãos seja disparado o tiro da renovada traição_

quinta-feira, março 24, 2005

quarenta romances de cavalaria # 15 

# 15 - quinta-feira

DEZ PARA AS NOVE estamos na semana santa e por isso em nome de deus não se trabalha é pecado e não se devem cometer pecados cometer pecados é mau três linhas é já são sete para as nove não devia estar a escrever não devia estar a fazer nada nem a dormir nem acordado nem a fazer ioga é pecado o trabalho na semana em que se celebra a paixão do senhor jesus apaguei o cigarro já estou outra vez a pecar tê-lo apagado é um pecado ainda maior que tê-lo acendido porque é um pecado continuado e já acendi outro e também tomei comprimidos cinco para as nove e não consigo deixar de pecar peco impulsivamente e sei que peco o que talvez seja pior não faço ideia aos olhos de deus é melhor pecar com consciência do acto ou com inconsciência do acto por isso te peço senhor dai-me penitências e mais penitências e mais penitências faz com que pare de escrever faz-me parar de pecar durante esta semana de rememoração do teu sacrifício do teu sublime sacrifício eu sei eu sei mal passe esta semana e tudo voltará ao normal o pecado já não será o do trabalho serão outras as causas da nossa infinita culpa mas hoje às nove horas da manhã por favor senhor dá-me a tua gorda mão e faz parar em mim a incontinência pecadora faz com que não apague o cigarro que tenho na mão faz com que esta folha de papel não se continue a preencher desta forma tão indecentemente rápida e pecaminosa em que as letras se alinham em comboio como piolhos a nascer se ao menos a tinta que sai da ponta da caneta tivesse a cor do teu sagrado sangue talvez por analogia simbólica algum perdão houvesse para os meus actos o cigarro está quase a chegar ao fim vá dá-me forças para que não o apague nove e cinco e apaguei o cigarro porque me abandonas porque não me cobres com o véu da tua casta inspiração será que não consigo comunicar contigo não me ouvirás lá onde estás ou serei eu quem não te ouve aqui onde estou será a voz do burro que não chega ao céu ou o céu que não chega ao coração do burro nem isso interessa a ordem dos factores é indiferente na multiplicação dos pecados nove e dez toda a minha eternidade está posta em causa e deus não me ajuda em nada senhor espero por ti até às nove e um quarto se não vieres em meu auxílio entenderei essa ausência como um sinal do teu definitivo abandono_

quarta-feira, março 23, 2005

quarenta romances de cavalaria # 14 

# 14 - quarta-feira

SETE METROS POR QUATRO quatro secretárias três trabalhadores e uma janela sobre as secretárias letras impressas em volumosas resmas de papel resmas e resmas de papel resmas e resmas de letras sobre as secretárias letras com esperança de um dia serem respiradas soletradas tornadas livro sete metros por quatro de um laboratório-incubadora de caracteres em pirâmide formando um livro único uma bíblia comum a todos os assuntos a todas as ideias destinada a todos os seres sem lhe tocar num parágrafo sem lhe alterar uma vírgula transforma-se aquela amalgama de mediocridades individuais numa genialidade ímpar una capaz de todos abranger e tudo amar mas eles os eles de sempre os editores entendem tudo ao contrário e à montanha vão subtraindo uma a uma as pedras da catedral os pilares da grande obra e a dignidade da rocha que sustenta a ogiva central do livro vista à lupa não é mais que um fascículo de culinária retirado da montanha dos papeis pintados cervantes é um fascículo de culinária teimosamente os desconstrutores os editores tentam destruir esta magnífica oportunidade bíblica e lá vão todos os dias de martelo na mão desmembrando a original babel essa não contabilizada maravilha do mundo mas deus persiste como uma toupeira furadora e mal um elo daquela comunidade é destruído logo outro anel é magicamente acrescentado outra rocha cúbica é colocada outros caracteres se aninham na pirâmide e assim sucessivamente se constrói e desconstrói que deus não desiste dos seus sublimes projectos ao fim da tarde o sol ou a sua falta entra pela janela acendendo aquele pequeno forno alquímico e por mais que os padres os editores persistam nos seus desígnios de edição à lupa o grande olho do caos não se deixa derreter e a torre volta a reerguer-se transformando os bisontes os editores em sanchos pança de tristíssima figura_

terça-feira, março 22, 2005

quarenta romances de cavalaria # 13 

# 13 terça-feira

A NOSSA VIDA tenho a sensação de estar acordado mas não estou a nossa vida a nossa vida a nossa vida passo o tempo a organizar a vida diz-se a nossa vida como se a vida fosse a nossa vida estou sentado a escrever mas tão profundamente adormecido que o sonho é incapaz de emergir dos meus ossos encefálicos a nossa vida a nossa vida a nossa vida e tudo o que existe não passa de uma pedra gigante em cima de um mosquito já nem as sirenes dos navios me despertam deste esmagamento deste sono continuo que se arrasta de solstício a solstício equinócio a equinócio não há dúvida sou um belo pedaço de estrume correctamente programado para as funções humanas ajo até com relativa autonomia lavo-me visto-me calço-me tenho asas e saio à rua como se não tive asas mantenho o nariz rasteiro ao chão quando nossa senhora passa sei esconder a minha brancura com um invejável à-vontade deixei os olhos turvarem-se como águas de um tanque abandonado às rãs e ao húmus bacteriano durante algum tempo durante bastante tempo mesmo pensei que estivesse alguém algum grupo qualquer estrutura organizada por detrás desta minha existência fúnebre hoje sei que estou verdadeiramente só neste enredo mas como tenho a sensação de estar acordado apesar de não estar não sinto sequer a necessidade de despertar deixo-me levar nesta teia de sonâmbulas clarividências parece-me tão real este estado de iluminação que olhando-me no espelho do sono vejo à transparência os órgãos as veias o coração parado o sangue a endurecer com a idade quando na verdade se acordasse e me visse no espelho do sonho nem seria capaz de vislumbrar uma simples silhueta do corpo tão invisível me tornei a nossa vida a nossa vida a nossa vida e quando estou à beira do rio e tenho a oportunidade de me atirar e estou quase a atirar-me vem logo a sensação de que já me atirei de que já estou a afogar-me sem estar e fico colado ao cais sentindo todas as dores do afogamento poderia estar no cume de uma montanha e saber que se batesse as asas teria a visão dourada de um voo real de águia de anjo de ícaro e não me moveria um centímetro tal não seria o poder da ilusão de estar já ao pé do sol sempre que estou perto de uma realização capaz de me dar vida e alma e reacender o coração o sono sussurra-me em repetições infindas que já vi tudo que já vivi tudo que nada na vida pode haver que não seja uma repetição pateta do passado em poucas palavras sou um dragão que se auto-paralizou ingiro defeco micto ingiro defeco micto amarrado à nossa vida à nossa vida à nossa vida e ao peito à distância de um pequeno gesto tenho a jóia o centro luminoso cor-de-rubi que me resgataria desta cama e estou impotente_

segunda-feira, março 21, 2005

quarenta romances de cavalaria # 12 

# 12 - segunda-feira

AO CONTRÁRIO DOS LEITEIROS os padeiros continuam a assumir a sua condição operária com o fulgor próprio da sua classe que já não sendo de vanguarda é ainda portadora do mais sagrado ocultismo reunidos em pequenas guildas operativas são os únicos guardiães da palavra salvadora que se julgava perdida com autorização expressa do grão-padeiro da grande padaria ocidental de portugal e a título absolutamente excepcional fui autorizado a revelar nestas linhas essa palavra como forma de apelo à unidade global entre operários panificadores de todo o mundo a razão porque fui escolhido para esta missão será omitida por motivos que não poderei explicar trata-se de uma palavra com poucas sílabas mas excepcionalmente poderosa tomem atenção fixem-na bem pois não voltará a ser repetida dignidade durante muitos anos os leiteiros foram aliados dos padeiros mantendo a corrente de transmissão da palavra no tradicional sistema comunicação de mestre a discípulo no entanto progressivamente o afastamento dos leiteiros do fraterno convívio com as vacas fê-los enveredar por um caminho sectário de afirmação de sistemas especulativos de substituição hostilizando aqueles que mantiveram a sua acção concentrada na estrutura operativa da tradição fundando uma fraudulenta manipulação leiteira materializada na construção de templos-curral pré-comprados onde se usam vacas de cimento para ludibriar o povo e os trabalhadores os padeiros resistem com extremas dificuldades continuando a habitar os espaços fabris construtores e criadores de uma realidade poética expressa nos pães de meio quilo e nas carcaças de lenha ainda que na mais absoluta clandestinidade quanto aos leiteiros que tendo passado a admitir entre nas suas luxuosas casas falsos obreiros que jamais experimentaram o toque numa teta escondem a sua falsidade atrás de complicadíssimos rituais que fingem conter uma verdade que só eles possuem como em relação a tudo o resto também a palavra sagrada foi por eles substituída adoptando um termo sinistro que fala por si obediência dia após dia os membros desses clubes de recriação para ricos e corruptos envenenadores de leite usam todos os métodos para apagar a existência das classes de modeladores da massa filosofal mas a esperança continua a brilhar nos corações produtores através da reconstrução pacífica da cadeia de união entre todas as farinhas do mundo assim que este breve edital consiga passar a mensagem a todos os que no mundo com as suas mãos obreiras se movem contra a opressão mantendo viva a chama da padaria universal do universo que também os irmãos das guildas de pasteleiros se unam à resistência subterrânea e estendam os braços das suas raízes de açúcar e caramelo hoje e sempre pão integral ou morte_

domingo, março 20, 2005

quarenta romances de cavalaria # 11 

# 11 – domingo

TENTAREI RECONSTITUIR a história como um esforço eucarístico uma celebração dominical foi há dois meses que lhe arrancaram o primeiro dente um molar do lado direito e duas semanas que lhe colocaram a prótese superior tentarei descrever o que se passou durante este tempo com o máximo rigor possível e total fidelidade ao que me foi contado pelo envolvido neste processo logo na primeira consulta a dentista comunicou-lhe que a única coisa a fazer como cura para a sua martirizada situação bocal seria arrancar-lhe todos os dentes e colocar-lhe uma prótese dentária completa acordaram que começariam pela placa de cima e que a totalidade do serviço se cumpriria em seis meses no mínimo a partir deste dia a vida deste homem mudou radicalmente iniciou-se naquela tarde um projecto de vida que lhe conferiu um sentido à existência como nunca tivera antes um objectivo determinante para a sua continuidade como ser humano como cidadão como animal na segunda consulta procedeu-se a modelação da matriz ou molde das próteses superior e inferior foi-lhe colocado um aparelho de metal para impedir o fechamento da boca e recebeu a indicação precisa de que deveria respirar sempre pelo nariz lentamente foi-lhe sendo injectada na cavidade oral uma massa até que cada recanto mais íntimo da boca estivesse preenchido por aquele barro azul a determinada altura por reflexo condicionado ou por distracção ele deixou que o ar lhe penetrasse lábios adentro desencadeando uma imediata contracção vómica que o fez julgar estar perante os últimos segundos da sua existência morreria como um herói num glorioso posicionamento físico de patas ao ar boca aberta e cheia e babete de papel felizmente a única consequência daquele acto irreflectido foi o maternal responso da senhora apesar da vergonha que se instalou no seu olhar a operação continuou com coragem e determinação ao fim de uma hora tinha já a massa a empedernir formando uma duplicação da boca dentro da boca ainda teve que esperar uns quinze minutos até lhe retirarem o espelho da sua oralidade momento arrepiante dada a sensação de que também a traqueia cordas vocais língua tudo viria colado àquela escultura depois de removido o aparelho metálico pôde então vomitar à sua livre vontade o que quisesse durante o tempo que quisesse vomitou com prazer seguiram-se sucessivas sessões semanais de arrancamento de osso até que as gengivas de cima estivessem totalmente rapadas mais uma semana de cicatrização e foi-lhe aplicada a placa quinze dias de hematomas e alimentação à base de sumos passaram num ápice e hoje é com orgulho que ele desfaz queques em galões ingerindo canecas daquela papa a colher de café é com orgulho idêntico que revela os passos projectados para a colocação da prótese inferior e não é difícil descobrir a sua radiosa alegria ao mostrar o papel onde está registada a marcação da consulta onde se procederá à extracção do primeiro dente da queixada de baixo_

sábado, março 19, 2005

quarenta romances de cavalaria # 10 

# 10 – sábado

ESTAMOS NUMA ENFERMARIA OVAL quinze homens dezasseis camas uma telefonia treze janelas vinte cadeiras uma mesa de cabeceira por homem e um crucifixo onde está pendurada uma placa inscrita com caracteres brancos sobre fundo negro enfermaria trinta e um sobre a cama vaga arrumam-se os sapatos devidamente etiquetados com os números de entrada das nossas cabeças as janelas estão trancadas e a telefonia tem o fio cortado só vestimos a parte de cima do pijama que são todos amarelos e têm quarenta botões à frente e um corte vertical atrás dizem que é para facilitar as lavagens os enfermeiros usam máscaras anti-gás sem nenhuma explicação aparente para o facto todas as manhãs são distribuídos pares de luvas de algodão branco imaculadamente lavadas faz parte do extenso regulamento da instituição afixado logo à entrada do canil a medida incluí-se no capítulo doze relativo à prevenção contra as gangrenas pelo facto de termos as luvas calçadas a direcção está convicta de que nos dissuade do uso das unhas contra qualquer borbulha chaga ou simples comichão os dias passam-se calmos ninguém ousa uma palavra e os chinelos que a câmara municipal distribui no natal são razoáveis não me posso queixar das rações e sinto-me grato por o regulamento não permitir visitas seria insuportável o enchimento diário deste ovo incubador com famílias e seus respectivos adereços tupperware com biscoitos caixas de chocolates flores em jarras de plástico lágrimas e sobretudo aqueles odiosos ossos feitos de cartilagens de origem bovina com suplementos de cálcio flúor e vitaminas o pior como seria de esperar são as noites é nessas horas amaldiçoadas que a tua recordação surge como um espírito invocado por um poderoso espírita são as horas em que a tua ausência se materializa com toda a brutalidade em que os teus olhos relampejam sob os lençóis em que me apanho a beijar-te o quente da pele é como se escalasses uma montanha com a ajuda de uma picareta e a montanha fosse eu nestes três anos talvez só tenha dormido cinco ou seis horas no máximo todo o restante tempo nocturno foi passado a sentir a picareta com que me escalas a cravar-se no interior da cabeça nada mais há para relatar tenho uma arrastadeira privativa e dentro da gaveta da mesinha de cabeceira guardo um pequeno sino dourado que se ousasse vibrar provocaria a invasão de biliões de secretas e invisíveis borboletas verdes_

sexta-feira, março 18, 2005

quarenta romances de cavalaria # 9 

# 9 - sexta-feira

SÓ EU E O CAVALO antes de partir garantiram-me que aquela extensão desértica era possível percorrer em poucos dias no entanto já há três meses que andamos nisto fomos ganhando confiança e como o cavalo fala português passamos muitas horas a conversar e tem-se mostrado uma belo contador de histórias numa destas tardes de conversa solta contou-me esta extraordinária narrativa de quando ele era novo e foi chamado a fazer a entrega de um cavaleiro do exército português isto é coisa para se ter passado há uns bons quatrocentos anos ou mais o alazão lá foi ter ao sítio combinado e quando viu o cavaleiro não se conteve e desarticulou-se todo a rir o homem não tinha mais que metro e meio e não pesava mais de quarenta quilos de volta dele andavam três musculosos coronéis a tentar enfiar o desgraçado numa armadura de ouro que no mínimo tinha o dobro do pequenote depois de lá enfiado tiveram que o amarrar pelo pescoço com umas correias para ele não cair por ali abaixo como se isso não bastasse um padre cristão quis dar-lhe uma bênção qualquer e oferendar-lhe uma espada lá voltaram coronéis a pôr-se de volta do valente para o fazer ajoelhar por fim pregaram-lhe um elmo coroado na cabeça e içaram-no para o lombo do corcel como é seu costume sempre que apanha um passageiro o meu amigo perguntou para onde era a viagem para mais no papel passado pelo serviço de entregas não vinha especificado o destino da corrida o cavaleiro abafado no elmo disse que ia tomar o castelo de s. jorge a lisboa coitado já delira pensou o cavalo estamos nós em áfrica e este diz que vai para lisboa resolveu continuar a caminhada até que pudesse telefonar para a central e esclarecer o assunto nisto adormeceu no passo lento daquele calor quando acordou sentiu-se demasiado leve olhou para cima e reparou que o digno conquistador já lá não estava então não é que tinha deixado o homem cair pelo caminho ainda andou por ali às voltas a ver se o via mas nada já de regresso à cidade quando lhe perguntaram pelo serviço com medo de ser despedido respondeu que tudo se passara como previsto e que o fidalgo mandava dizer que quando chovesse por aquelas bandas telefonaria a encomendar transporte _

quinta-feira, março 17, 2005

quarenta romances de cavalaria # 8 

# 8 - quinta-feira – II

MAS VOLTEMOS AO ASSUNTO DO TAMBOR conheci um rapaz e não consigo confessar-lhe o amor que sinto pelo tambor com que diariamente faz acrobacias em cima de um monociclo sei que a minha felicidade depende daquele tambor mas é evidente que o rapaz também o ama e não sei o que fazer é evidentemente ridículo tentar chegar à conversa com o próprio tambor ali no meio da rua simultaneamente sinto na inversa proporcionalidade uma notável indiferença pelo monociclo acho aquilo estúpido apesar de engenhoso mas claro que se um dia tivesse coragem de conversar abertamente com o tipo sobre este assunto não lhe ia dizer que desprezo o monociclo talvez argumentasse que aquele trabalho é muito perigoso e que ele podia trocar tão pesado instrumento por uma singela pandeireta mas teria muita dificuldade em ser convincente e acabaria por meter os pés pelas mãos por isso adio sistematicamente a abordagem apesar da dor no peito que sinto quando passo pela rua e os vejo naquela intimidade mantenho a dignidade claro continuo a andar muito direito mas desfeito por dentro até dar com um gaveto onde me escondo a ouvir aquele ancestral ribombar é verdade que já cheguei a desejar que o rapaz caísse do monociclo libertando no chão o meu amor e então eu correria para o agarrar e fugir por um beco qualquer o mais depressa que conseguisse não é que deseje algum mal ao palhaço é o desespero que faz cruzar pelo meu pensamento estas ideias macabras até cheguei a comprar uma réplica pequenina em plástico para pôr na mesa de cabeceira e ali fico noite dentro a imaginar milhares de estratagemas de conquista que depois nunca dão em nada é um caso perdido é isso que tenho que assumir mais vale tomar coisas para dormir substituir o bibelô de estimação por outra coisa qualquer outro projecto de amor que esteja ao meu alcance um pianinho ou um gnomo dos alpes talvez compre um espelho ou um casaco de lã para dormir mais quente_

quarenta romances de cavalaria # 7 

# 7 - quinta-feira

NÃO POSSO DIZER QUE TENHAMOS chegado tarde um ao outro quero explicar isto e é quase impossível quando descobrimos o nosso amor já as nossas vidas estavam separadas por vulcões tivemos que recorrer a um plano de consciência que nos permitisse habitar um lugar secreto dentro da terra se nesse lugar nos picássemos num prego aqui neste tosco areal de devoradoras bestas onde habitamos ordinariamente ninguém conseguiria ver a ferida por maior que ela fosse este amor provou-nos que é possível existir andar tomar banho em lagos de água quente ver cores que nunca ninguém viu sem o perigo da contaminação doente do bafo humano lá nem temos que ser humanos se bem que é nesses momentos de rosas e antiquíssimas araucárias de ametista que a nossa humanidade verdadeiramente se revela quando voltamos se é que voltamos os seres que nos rodeiam poderiam notar em nós alguns sinais dessas viagens de assombro mas para isso seria necessário que nos olhassem que sentissem o mais leve desejo de atenção sobre nós o que nunca acontece descobririam um brilho diferente nos lábios ou finíssimos jactos de luz saindo-nos dos olhos se alguém nos tocasse nas mãos verificaria que elas se abrem como asas mas essa hipótese está excluída ninguém nos observa delas apenas o ruído com que entopem as ruas e as casas e as camas até as nossas camas se alguém tivesse atenção quanto mais não fosse notaria como são felizes os nossos prolongados silêncios morreremos sem que vivalma se tenha apercebido do nosso cruzamento sem que o mais inteligente dos insectos tenha conhecimento deste nosso voo clandestino não posso esconder a dor de ainda não te conseguires lembrar destes átomos amorosos mas reconforta-me saber que aceites a verdade da sua realidade e digo que me dói porque eu lembro-me de cada instante de cada toque de cada mergulho nesse mar de invisibilidade e é por isso que cada regresso me é insuportável nessas alturas penso que deveria fazer cessar todos os sentidos e deixar-me petrificar cessar o impulso da memória cristalizar o cérebro com a violência irreversível de uma explosão intra-crâniana mas não posso não consigo tenho que voltar para ti dar-te o pó d'ouro e lápis-lázuli que apanho do chão todas as madrugadas para te oferendar viverei o tempo que for preciso eternamente um segundo horas para continuar a ter-te nessa casa distante onde nem os anjos ousam aproximar-se por não se sentirem suficientemente puros para estar ao nosso lado um dia teremos o tronco comum de uma araucária de ametista e poderemos enfim sangrar sem a prisão do regresso_

quarta-feira, março 16, 2005

quarenta romances de cavalaria # 6 

# 6 - quarta-feira

SEMPRE VENEREI O PÓ nem compreendo como pode a gente comum chamar porcaria àquele tesouro quase mineral é o pó que dá caracter aos objectos além de ser das formas mais eficazes de saber se alguém profanou a nossa intimidade faz parte da ciência forence ao contrário da poeira que irrita a pele entra pelo nariz e entope os pulmões o pó sedimenta como algumas rochas formando uma camada que pode proteger o solo por milénios e sob ele as mais preciosas relíquias só é comparável às cinzas da cremação humana mas é muito mais difícil mesmo fazendo parte de uma grande família de cremados acumular cinzas em quantidade suficiente de maneira a cobrir toda uma casa ou mesmo uma cidade e não seria um processo natural exigiria mão de obra operária e cadáveres imaculadamente limpos além disso as cinzas humanas não possuem aquela coloração cinzenta-esverdeada ou azulada do pó que é um elemento subtil de emanação divina quando misturado com pequenas doses de gordura a sua implantação em mesas cadeiras ou livros torna-se muito mais fácil e as pequenas palavras-objecto revestidas dessa camada áurea dão vida a uma dimensão da consciência verdadeiramente poética compreendo que isso incomode o comum dos mortais a poesia constitui sempre um obstáculo à indiferença da existência doméstica exigiria inteligência aos mais pequenos actos em consequência o pó tornou-se um alvo a abater um inimigo no meu caso venho desde há muitos anos a desenvolver espiritualmente uma devoção religiosa pelo pó tenho a ambição de fundar um rito que possa celebrar e glorificar esta bênção da natureza talvez os poucos devotos de outras confissões como os glorificadores de ossos se possam juntar a mim talvez seja mesmo possível fundar uma comunidade missionária na minha cama durante a noite eu e o pó passamos noites sublimes como não uso almofadas apoio a cabeça sobre livros que já li e é inebriado pelo odor que o pó oferenda que adormeço agradecido a esta dádiva de um incenso mais puro e curador que me transporta para o sono como uma mãe leva o filho para um banho quente no inverno esta noite tive um sonho horrível e é por isso que vos falo nisto sonhei que uma brigada militarizada de limpadoras profissionais tinha entrado no meu buraco empunhando o canhão de um desses monstruosos aspiradores de guerra e sem um pedido de consentimento obedecendo a inquestionáveis ordens superiores de uma secreta linha de comando sugaram todo o pó que dá sentido à minha existência depois do trabalho feito saíram em marcha deixando a casa despida do seu sangue vital e no ar uma sórdida poeira voadora_

terça-feira, março 15, 2005

quarenta romances de cavalaria # 5 

# 4 - terça-feira

O VIOLONCELO É UM INSTRUMENTO masculino o mais masculino de todos os instrumentos este é vermelho e toda a gente diz que é excepcional claro que eu não consigo distinguir o precioso som que dele emana do som de outro qualquer o que me extasia é a sua sedutora e profunda masculinidade talvez isso me cause um certo incómodo assim como me perturba observar aquela rapariga obrigada a praticar tantas horas por dia mesmo sendo bach a mentira da sua dedicação debruçada sobre o homem sonoro que aperta com relutância entre as pernas e abraça com uma força excessiva como quem cerra os punhos se lhe perguntassem por aguenta aquilo todos os dias responderia invariavelmente que é por bach o único deus vivo e transcendente entre a humanidade mas quem a vê sabe que é o homem que controla aquela possessão forçada e não a musicalidade divina do mestre das oferendas talvez devesse denunciar o que ali se passa às autoridades mas o que devo confessar é que sinto algum prazer nisto tudo até porque sou a única peça que apesar de presa entre os adolescentes dedos da rapariga não se inclui no acto copular de toda esta encenação é até um duplo prazer por um lado o toque gentilmente conduzido pelos dedos fortes da menina por outro a passagem da minha pele pelas cordas másculas do violoncelo sinto-me um elemento essencial daquele acasalamento em que ninguém repara teoricamente até seria possível tocar sem o arco mas nunca bach deus precisa de mim para fazer soar a sua oração pelo menos satisfaço-me com este auto-convencimento isso faz-me também sentir usado e a culpa de assistir calado a esta diária violação vai-se dissipando ainda que me enoje o ar babado da professora nem sei porque lhe dão esse nome a ela que empurra estes momentos até ao limite máximo do corpo não do corpo da rapariga que esse tenho a certeza aguentaria sem intervalo esta cavalgada de suor e sal sem vacilar mas do limite do homem do violoncelo que por fim já nem consegue suportar a doçura medicinal de uma sarabanda de bach também eu acabo por me sentir esgotado e caído num torpor paralizante a professora parece indiferente à necessidade de suspender a tortura por algumas horas por ela continuava até à morte é um ser desprezível uma mosca quando o violoncelo cai ela não perdoa a sua fraqueza humana e esvoaça com aquele corpo verde e aqueles olhos multifacetados vítreos e implacáveis voa contra as paredes de raiva e nem sente dor até que cai sobre a poltrona de cabedal resignada com a espera a que não pode fugir pelo dia seguinte_

segunda-feira, março 14, 2005

quarenta romances de cavalaria # 4 

# 4 – segunda-feira

ELE DIZ QUE CONGELA de facto não compreendo a origem desta dor que me atormenta o joelho o tipo diz com um ar profissional que é o músculo que congela e afecta o menisco mas se não tenho perna que sentido pode ter esta conversa tento explicar-lhe isso de todas as formas a mim parece-me uma coisa bastante óbvia não tendo perna não é lógico que sinta esta dor torturante no joelho da perna direita que não tenho mas o tipo insiste e continua a argumentar como se não tivesse ouvido nada repetindo a história do músculo com aquela cara de quem compassivamente compreende toda a dor do mundo ao fim de doze horas de conversa surda desisto e saio antes de sair do prédio ouço ao longe o gajo a falar sozinho no consultório a repetir a explicação da congelação como se estivesse a rezar mal ponho o pé na rua o cão que estava a minha espera já desesperado não consegue conter a baba com alegria de me ver lá o atarraxo à anca e vamos caminhando até ao jardim somos uma equipa muito unida e cooperante mal chegamos ao parque e me sento no rebordo do muro do canteiro volto a desatarraxar o animal e solto-o deixo-o ir brincar gosta muito de correr e lamber formigas para depois cuspir as que lhe ficaram presas à língua claro que acho aquilo nojento mas que lhe hei-de dizer o bicho é livre de lamber os animais que quiser consigo ficar ali sentado umas quatro horas seguidas juntando às doze que passo no consultório são dias muito preenchidos de afazeres já não uso comida para me alimentar por isso não me preocupo com essas coisas e o cão lá se arranja com coisas que encontra pelo chão o caminho para casa é sempre o mesmo e ele já consegue sincronizar muito bem os seus movimentos de cão com os movimentos da minha perna esquerda ao princípio chegávamos a cair dez ou quinze vezes pelo caminho a noite passa rapidamente ele dorme no beliche de cima porque tem medo que sendo eu a deitar-me na placa superior os parafusos não aguentem e aquilo se desmorone e fique esborrachado faço-lhe a vontade nem me custa nada mal o dia nasce voltamos à rotina do consultório depois de chegar e de deixar o cão cá fora aguardo um pedaço e quando o homem está num ponto mais interessante da sua solitária conversa continuada sobre a congelação do meu músculo entro e a conversa volta ao início_

domingo, março 13, 2005

quarenta romances de cavalaria # 3 

# 4 – domingo

É COMO SE UMA COLMEIA EXPLODISSE por excesso de abelhas e se espalhassem dezenas de ferrões e presa a cada um deles viesse uma abelha agarrada tentando voar desesperada no sentido contrário da força do torpedo quer queira quer não queira tenho que tomar os comprimidos e deixar-me estar preso a uma cadeira sem ver sem querer ver sem ouvir sem querer ouvir sem saber sem querer saber é quando os olhos implodem e deixamos de conseguir orientar os globos oculares que ficam a gravitar como no espaço os astros que realmente passamos a conhecer o que nos passa pela cabeça o que pensamos só é um mistério até nos caírem os olhos no líquido cerebral aí é como se uma colmeia explodisse por excesso de abelhas espalhando centenas de ferrões e atrás deles viessem agarradas minúsculas abelhinhas de asas muito abertas tentando contrariar a força do torpedo então tomam-se os comprimidos sejam eles pequenos pedaços de mel e luz sejam visões de santos aparições celestes de pequenas sereias cansadas ou cítaras indianas é espantosa a quantidade de cavalos marinhos que há dentro de nós a querer sair e se saíssem seria a salvação das pequenas horas e dos segundos perdidos nos bolsos uma profusão silabar de cavalgadas funâmbulas a boca faria então sentido os dentes seriam teclas d’órgão envés de pedaços cariados de osso presos a bife ou gengivas também as gengivas não seriam gengivas mas martelos almofadados de percussão batendo suavemente nas cordas esticadas do piano bocal mas não o que acontece é o que acontece continuamos a acreditar na arquitectura na edificação nos projectos globais sem darmos conta que o corpo já não aguenta que não passamos de um desastre doméstico de uma lata de tinta entornada como uma colmeia que explodisse por excesso de abelhas e pelo espaço fossem disparados biliões de ferrões e agarradas a eles abelhas tentando voar contra a força implacável do torpedo_

sábado, março 12, 2005

quarenta romances de cavalaria # 2 

# 2 – sábado

SÃO TODOS JUÍZES recebo mais de trezentas sentenças por dia eles conhecem-me eles dizem que me conhecem eles pensam coisas sobre mim vaticinam sobre o fim do meu presente como se falassem de gravatas mas a única coisa que me interessa é ter gás no isqueiro as minhas mãos já não vão parar de tremer e mais tarde ou mais cedo terei a cabeça decepada mas vou todos os dias ao tribunal e ouço-os e até lhes respondo às vezes exalto-me que é para parecer que estou envolvido na minha defesa ao sábado de manhã os juízes podem assumir as formas mais intrigantes ainda há pouco estava um cão moribundo a ser devorado por vermes tentei ajudar o cão e os vermes que fui arrancando à carne do cão com a boca para tentar não magoar nem o cão nem os vermes e mal o cão ficou mais aliviado redigiu logo um tratado de opiniões sobre a minha vida também os vermes vestiam togas e diziam conhecer-me desde bébé e há o pior de todos os juízes o poema que se entranha no músculo cardíaco e ataca os rins e produz sílabas de navalha nos pés continuarei a andar e acatar as sentenças sem as ouvir já falta pouco tempo é necessário que eles não se apercebam da minha voluntária surdez enquanto esta espera dura para que continuem a abastecer o meu isqueiro de gás ainda na semana passada reparei nos troncos dos outros sobreiros que o último de nós tinha sido decepado em dois mil e quatro portanto pela ordem estabelecida sou o próximo mais a mais não dou cortiça há doze anos eles não precisam de mim para nada só aqui ando por causa dos papéis a tratar dos carimbos das assinaturas mas eles conseguem sempre chegar ao fim dos processos não tarda e o meu dossier estará concluído talvez até antes do verão ou coisa assim e quando estiver em rodelas a arder na salamandra de uma consagrada família gente casada e de lei serei um fumo opaco e eruptivo que se espalhará no vácuo espaço entre o céu e a misteriosa massa densa que há escondida no éter deixarei de ocupar espaço e terei tempo para as aulas de dança será nessa altura que lhes escapo eles são juízes e mandam nos canhões mas nunca conseguirão controlar o refractário efeito de turbulência que nem a matemática consegue explicar dum fio de fumo a subir_

sexta-feira, março 11, 2005

quarenta romances de cavalaria # 1 

# 1 - sexta-feira

VEM COMO UMA RODA DE ESTANHO uma rosa cerúlea dispo a saia e sinto o vento num pulmão que abre e fecha como um fole de acordeão faz-me mal este metal que tenho nos dentes enquanto procuro o anel depois de ter lavado as mãos quando acordei e te vi ali a cheirar a mim e eu sem saber nomear-te como uma roda de estanho quis acordar-te mas para quê só me irias fazer recordar coisas e palavras ditas calço um sapato depois outro e depois as luvas primeiro a esquerda depois a direita que horas serão sai um rato castanho do chão que já conhecia de outra casa de outro chão de outra mulher nem nos cumprimentámos tive que tirar outra vez os sapatos não tinha ainda vestido as calças o rato fugiu é o costume os seres inteligentes fogem assim que podem da bestialidade humana a janela está fechada ou talvez nem haja janela há é uma coisa redonda no tecto por onde deveria passar a luz da manhã mas não passa pego na espada em brasa desço a escada de ferro com uma forte dor num joelho a espada ilumina tudo eu próprio me sinto flamejante apesar da minha pele verde e dos olhos cegos tenho que sair para a rua com o temor de sempre as pessoas vão estranhar as minhas mãos as minhas elegantes mãos enluvadas talvez não reparem na cor da pele antes de sair engulo a espada o que não é difícil ao contrário do que se possa pensar apesar de ser obrigatório um cuidado especial com a traqueia que se deixa queimar com facilidade mas nunca me aconteceu abro devagar a porta da rua já as asas cresceram no meu peito como é sexta-feira nasceram brancas magnificat o gato acompanha-me na saída para o jardim e segue-me até aos táxis dentro de meia hora estarei no hospital sentado naquela cadeira eléctrica comandada por um pequeno manipulo cadeira que se move como uma roda de estanho pelos corredores será só mais um dia_

quinta-feira, março 10, 2005

açores rochas e minerais # 40 

eis o mapa do nosso encontro
do enverdecimento radical
das pequenas raízes de obsidiana

açores rochas e minerais # 39 

a última sílaba do poema
último gesto
as mãos tocam as teclas do piano
e por baixo do piano
um gato que assobia
a música sobe por paredes
espelhadas de âmbar
nasceu uma araucária azul
dentro do piano
o piano é uma araucária azul que toca
levantam-se ventos de rosas
e as rosas transpiram sobre o piano
que o gato toca – na última sílaba do poema
o mar aberto – o sal

açores rochas e minerais # 38 

pentearam-me arranjaram-me um fato
calçaram-me sapatos engraxados de castanho
e fecharam-me os olhos com pás de terra
cheira a mercúrio e a volfrâmio
as calças são boas mas apertadas - ?de quem terão sido
e os sapatos?
/não cabiam – uma mãe rezando partiu-me as falanges dos dedos
resultou
entraram na perfeição

antes da descida final
antes de ser posto o selo
a mulher mãe-rezadora envolveu-me um terço de rosário
nas mãos – prata brilhante
e desci tranquilo
para a escuridão generosa
da plantação
contínuo tranquilo apesar de não encontrar o coração
no peito nem sentir os olhos nas cavidades do crânio

quando rebentarem as primeiras folhas no solo
voltarei a ver o mar/a praça/os automóveis
os homens e as mulheres dentro dos automóveis
voltarei ao princípio – à cama onde nasci
descanso em paz enquanto germino

açores rochas e minerais # 37 

deus reside em s. miguel
não é corpo nem sangue
não vive não cheira
é uma sombra manchada – estão
condenados os atlânticos co-habitantes
daquela laje voltaica
de matriz vingativa inorgânica e contra-angélica –
deus não vive mas ocupa – o anjo caiu
é lama
ironicamente/deus morto e amortalhado
manteve o nome da casa: miguel
sentenciados
cada um dos seus filhos será beijado
por essa besta de enxofre ardendo
é urgente seguir as andorinhas em fuga

açores rochas e minerais 

canto nono – nona ilha – évora

[évora – rocha tumular em forma de círculo – componentes: metais pesado, mármore, cal, chumbo – jazida de jovens almas apaixonadas]

(segunda parte)

açores rochas e minerais # 36 

coral – minha cabeça
vermelha azul e branca

nem um só esquecimento

açores rochas e minerais # 35 

âmbar – minha caneta
amarela ou verde – meu caixão tinteiro

açores rochas e minerais # 34 

azeviche – meu piano
fóssil de carvão impuro leve e combustível

açores rochas e minerais # 33 

pérola – meu espelho
bala de aragonite que desejo

açores rochas e minerais 

canto nono – nona ilha – évora

[évora – rocha tumular em forma de círculo – componentes: metais pesado, mármore, cal, chumbo – jazida de jovens almas apaixonadas]

(primeira parte)

quarta-feira, março 09, 2005

açores rochas e minerais # 32 

as ilhas não são habitadas por gente
são abastecidas de seres passageiros
sobre aquelas lápides flutuantes
cada existência é comandada pela obsessão
de embarcamento – cada movimento – até o das plantas
se abala com o simples vislumbre nebuloso
de um navio ao largo
as ilhas são naves contentoras de criaturas à espera
tudo o resto é circular – oval – sepultado

açores rochas e minerais # 31 

plantei uma romãzeira
?saberás o que isso significa
repito:
plantei uma romãzeira

ficarás presa na hélice da minha circulação
respiratória até que o nosso encontro verta
o sémen vermelho do mar

açores rochas e minerais # 30 

se te imagino preso nessa casa
[bolha dentro da ilha]
é porque te amo
se penso que escreves e vomitas
o que escreves é
porque sei amar-te e não te perdoo
mantenho o punhal e o veneno
junto a mim
junto à cama
espero um sinal teu – um grito
se ainda souberes gritar
um sopro – ainda que seja final
todas as noites a minha cabeça estremece
como um terramoto na estrada
se te amo não te desejo
há entre nós uma roseta de zircão
antes do amor e da morte do amor por dentro
nos vasos de sangue do cérebro
desaparecerei num tiro inicial
perfeita
imaginada
eternidade nupcial

açores rochas e minerais # 29 

sonhei que tínhamos um encontro marcado
ambos sabemos o que nos liga
ali estivemos – nem uma palavra sob o cipreste
demos as mãos e ficámos a observar
deitados
espirais de fogo a desenharem-se num céu roxo
deixou de haver
meu sangue
teu sangue
a partir dali o cardíaco amplexo vital
fluía num líquido dourado numa só veia
comum de amores perfeitos

açores rochas e minerais # 28 

?estou deitado – onde?
vem
voa
do tecto
pintada pomba de rapina
e uma poeira prateada
é o início da missa
vem
arranca-me pedaços de carne do rosto
doce pelicano

açores rochas e minerais 

canto oitavo – oitava ilha – peridotito

[peridotito – de cor verde escura a preta ou verde tingida de amarelo (dunito) – composto de olivina, piroxeno, e anfíbola, ou simplesmente de dunito e piroxenito – às vezes contém cromite, biotite, magnetite, piropo, e espinela – como produtos de alteração, podem apresentar a serpentina e o talco]

terça-feira, março 08, 2005

açores rochas e minerais # 27 

há fumo – há suor – há medo
as mãos daquele operário
são cravos ou crisântemos-chineses – estão cerradas como
dois blocos de riólito
frágil estátua de carne -
amianto vivo num chão lodoso
a transpirar
perante o olhar intruso do fotógrafo

sinto diamantes na boca
toda a minha vida se nanifica perante
a grandeza daquele
carvão – até os guindastes
e o ferro e os carris e os elevadores da mina
são anões

tenho que vomitar – séculos de homens soterrados
sob o peso da sua escravidão
e nem uma bandeira içada
apenas uma fotografia – açores – sem mar – sem azul
sem vermelho

açores rochas e minerais 

canto sétimo – sétima ilha – granito

[granito – cinzento ou rosado, de acordo com a proporção de feldspato em relação aos minerais mais escuros – os feldspatos potássicos e o quartzo constituem 70 % da sua composição – minerais acessórios: mica, horneblenda, apatite, topázio, zircão e magnetite]

segunda-feira, março 07, 2005

açores rochas e minerais # 26 

é-me impossível vergar o pescoço
como se na nuca tivesse implantado um tabular
de gesso –
incolor – branco de cristais tubulares
e palhetas em ponta de lança

açores rochas e minerais # 25 

invadiram os velhos cemitérios do cairo
transformando jazigos e campas
em abrigos e até luxuosas casas –
nestas ilhas/imenso cemitério de lava/
lajes oblíquas e enxofre –
também os homens se asilaram sob ardósias de flores
e rochas sepulcrais idolatrando basaltos como
deuses
imaginando pirâmides nos vulcões

açores rochas e minerais 

canto sexto – sexta ilha – diorito

[diorito – cinzento mais ou menos escuro, às vezes tingido de castanho ou verde – componentes: feldespatos, biotite, anfíbolas e piroxenos (50%) - minerais acessórios correntes: apatite, zircão, titanite, magnetite, ilmenite – mais raros: diopsídio, granada e espinela]

domingo, março 06, 2005

açores rochas e minerais # 24 

pequenas mãos – botões-de-ouro
buglossas
numa embarcação a remos presa
por uma jibóia a um projecto de cais – nesta ilha
só as máquinas relojoeiras assombram as horas

açores rochas e minerais # 23 

as palavras secam irreversivelmente a memória
do amor – microscópica folha de cedro entre os lençóis

açores rochas e minerais # 22 

a mulher veio ter comigo
pediu-me um cigarro já aceso
nem me olhou nem eu a quis olhar
acendi o cigarro e pu-lo entre os seus lábios de cieiro
deixei-a partir

açores rochas e minerais # 21 

! que triunfal movimento fabril
de rodas e contra-rodas que os teus joelhos realizam
não consigo esconder a cândida vontade
de te amputar as pernas – torná-las minhas
fabricar pedras preciosas de carne e esqueleto
incrustáveis em alfinetes de lapela e anéis de noivado
é nestes momentos que reconheço a óbvia obrigação
o contra-desejo
de estar longe de ti – a proximidade dos nossos olhos de azeviche
fariam despertar uma violência amorosa
que nos sepultaria numa cama de enxofre

para sempre

açores rochas e minerais 

canto quinto – quinta ilha – gabro

[gabro – de cor cinzento escura ou preta raiada de verde ou castanho avermelhado – componentes essenciais: plagióclases e piroxenos aos quais se junta em menor quantidade a olivina – minerais acessórios: quartzo, biotitite, rútilo, magnetite, titanite, corindo, apatite e espinela]

sábado, março 05, 2005

açores rochas e minerais # 20 

depois de te perder sei que ganhaste um corpo
cor-de-laranja e que os teus olhos fulminam os cometas
sem sequer agitares uma folha de insecto
sei que agora é difícil merecer a visão
rara/flexível e incrustada do
amarelo cádmium da tua volumetria
ainda te tenho ouro-pigmento –
na capa de couro de um livro
gravada com os caracteres gregos do meu nome

açores rochas e minerais # 19 

! a perfeição existe
não está em deus nem nos marinheiros em flor
nem nas maçãs de cézanne
muito menos no amor destruído pelos jacintos silvestres
que nos crescem na boca
!existe perfeição
em ti – cinzento-metálico de cristais
delgados/pérola mágica de grafite

açores rochas e minerais # 18 

talvez um limão na base acicular de uma celestina
te trouxesse a inocência das deformações
dos astros – pequenos óculos
ajoelho-me perante ti
limoeiro eruptivo – meu fracasso
à tua frente uma esférica aura de ferro
abre a porta à tua entrada
prendo-me a ti odor citrino em alto mar

açores rochas e minerais # 17 

soberano leão –
ardor de andaluzita como
um arcanjo bestial submerso
num cristal de húmus
és a inteligência das garras

açores rochas e minerais # 16 

as estrelas caem e tocam o fundo do vulcão de algas
que os teus ossos lavraram

açores rochas e minerais 

canto quarto – quarta ilha – basalto

[basalto – cinzento escuro e preto. Rocha vulcânica compacta de grão fino, pobre em sólica – minerais essênciais: plagióclase, piroxeno e olivina – componetes menores: magnetite, ilmenite, anfíbola]

sexta-feira, março 04, 2005

açores rochas e minerais # 15 

como qualquer caneta de prata-nativa
ambiciono a flexibilidade de uma pena de ouro
de muitos quilates por onde fluísse
a aquosa tinta azul – essência dissolvida do poema

açores rochas e minerais # 14 

existem muitas variedades de granadas
muito similares – cor-de-vinho/
piropo vermelho violáceo/espesartina vermelho alaranjada/
grossulária amarela e verde...
são reconhecíveis pelos seus cristais achatados
de doze faces
as granadas são como os olhos da mosca
num campo de trigo
cada espiga multiplica-se no espelho das
suas faces oculares como uma
milagrosa multiplicação de pão

açores rochas e minerais # 13 

dantes os navios traziam caixotes com tabaco
que podíamos roubar em troca do carinho brando dos marinheiros
ou da violência abrupta do sémen estivador
agora vamos à tabacaria
mas o fogo é o mesmo
mordendo a fornalha de madeira na cerejeira do cachimbo
creio que sim/antes da tabacaria
tentarei
ainda
o cais

açores rochas e minerais # 12 

a tua pele tem o cobre submerso de
centenas de outras camadas milenares de epiderme
os teus ossos foram submetidos a pressões brutais a
temperaturas masculinamente incandescentes
quando partires será como uma deslocamento na crosta terrestre
uma carne magmática em ascensão
mais frágil que a ardósia onde
pontas de diamante riscarão no teu dorso
o mapa e o sangue espesso da oração
que o peso imenso do céu caia sobre os teus pés

quinta-feira, março 03, 2005

açores rochas e minerais # 11 

creio em ciclones azuis de azurite
creio nas rosas do deserto de um negro mais profundo
na crueldade gramática do poema
e nas flores brancas da magnólia –
creio nas páginas dos livros nas lápides
dos cemitérios de coral
creio no sangue límpido das crianças
nos meses nas horas e no verão
creio no olhar poderoso do gato
que conduz à paz das romãs
creio nas ilhas e nos vulcões
na pasta oceânica dos trovões
creio no suicídio e na vida prematura dos escritores
na aventura das naves baleeiras
nas bandeiras
no grito do açor enquanto procria
creio na lava e no fumo que avoluma cada pulmão
creio em anéis em dedos de infinitas proporções

creio que as laranjas são o princípio do amor

açores rochas e minerais 

canto terceiro - terceira ilha - sienito

[sienito – de cor avermelhada, cinzenta ou violácea, segundo a proporção de feldspato combinado com a bionite e as anfíbolas. constituído por cerca de 70% de feldspato alcalino e de plagióclase sódica; também contém moscovite, apatite, corindo, titanita, zircão e nefelina]

açores rochas e minerais # 10 

a espuma traz insectos translúcidos
ingleses
e bacalhoeiros
sempre que as ondas friccionam a costa
ouve-se esta estridente sirene gutural
que anuncia o assombro – o minuto eterno dos
arcanjos da areia
esta é a ilha onde se transfiguram os rubis dos pequenos lagos

açores rochas e minerais # 9 

em toda a classe sacerdotal dos operários
o arquitecto é que tem o dever de lavrar
o granito
em pó produz uma morte tranquila/dormente
sócrates teria preferido a ingestão de granito
à tremenda lucidez da cicuta
os operários-aprendizes tem medo da lapidação
gramática da cruz roxa – não sabem ainda distinguir a
refulgência da morte da sintaxe labiríntica da vida

açores rochas e minerais # 8 

? se trabalhasse na extracção mineira de asas
as minhas mãos seriam diferentes

talvez no interior incandescente da terra
a luz negra do carbono me devolvesse o sono
que o sonho roubou
um tubo – reparo agora – funciona como passagem
de uma líquida corda de amarra naval
que me atravessa as têmporas
e a minha cabeça não estremece

fumo junto ao elevador da pedreira da praia
se descesse talvez os brônquios não aguentassem a pressão
e pudesse emergir inerte – somente mais escuro
com as mãos reconstruídas pelo labor químico
dos gases soprados de um ventre
misterioso

açores rochas e minerais # 7 

saúda-te um céu basáltico meu
querido escritor oceânico
de rosas escondidas –
[é tanto o pudor que te gela]
ouço o bater da água como
beijos de leão – flores em movimento
refluxo de cartas e selos e palpitações
de sangue em bolhas de ar rebentando
num crânio de março
enquanto o fogo consome a ilha por dentro
fecham-se as pálpebras num fumo
de estátuas vulcânicas – cinzas em pranto

quarta-feira, março 02, 2005

açores rochas e minerais # 6 

desejo uma bicicleta que ponha fim a esta
espera de sons geográficos
possível chegada ao mar ou visão da terra/saber-te – beijar-te
cair sóbrio numa areia de seixos negros e
algemar-me enlameado na seiva das gaivotas
desaparecer no magma

quero esquecer este caminho de falsas alfazemas

canto segundo – segunda ilha – obsidiana 

canto segundo - segunda ilha - obsidiana


[obsidiana – de cor cinzenta ou verde escura e preta, com estrias pardo-avermelhadas ou negras. rocha eruptiva pouco comum formada por lava esfriada com muita rapidez, que não cristalizou. algumas vezes, tem pequenos fragmentos de minerais graníticos, se for alterada desvitrifica-se]

açores rochas e minerais # 5 

deitou-se num banco pintado de vermelho
no centro da praça com uma pistola no bolso
tem as pernas dormentes – há demasiado ruído/
automóveis – gente com a máscara do trabalho
a arma não é mais que um amuleto
uma forma de expirar
? se um dia realmente disparasse
teria o nevoeiro coragem para
tudo cobrir com a sua negra densidade

açores rochas e minerais # 3 

vai-se decompondo à chuva
caída sobre aquele amarelo imenso do prado
as velhas invocam com ladainhas
o nascimento de novas poeiras
o mar afunda-se em navegações circulares/engole-se/vomita-se
no prado a vaca intrusa os seus ossos magmáticos
num chão de concreções esféricas
é apenas uma vaca de olhos concêntricos
e inertes
as velhas entoam as ladainhas
bem-vindo sejas recém nascido pisolítico – pequeno grão pétreo
em forma de ervilha

açores rochas e minerais # 3 

quando te enclausuraste nesse jazigo de vidro
tiveste entre as dedos o minério mais raro e
jamais conseguiste extrair desse mineral
a proporção explorável
de algum metal ou pedra preciosa
estás agora sentado num trono de papel
em pleno oceano
flutuando provisoriamente
[eternamente]
sobre a lava-almofadada
até as tuas lágrimas sedimentarão
mas sei que a tua ambição é âmbar

terça-feira, março 01, 2005

açores rochas e minerais # 2 

na cinta rochosa que coroa a intrusão
magmática do poema – o
sofrido metamorfismo térmico
de uma turbulenta tristeza cerúlea –
casa das mães de cinza
queda de cal e azeite
– lugar onde os estratos discordantes
acamam um amor
inacontecido
infusão uterina de sangue e lava

açores rochas e minerais # 1 

tenho os joelhos mergulhados no tapete de cristais
de uma drusa – clausura absoluta do bloco de dor
inclinada
em que o vento sopra e a água corre
esférica concentração mineral do tórax
numa rocha torre de vigia
e sal
– devo tudo ao esplendor adamantino do sal

açores rochas e minerais 

40 poemas
em nove cantos ou ilhas

canto primeiro – primeira ilha – riólito

[riólito - rocha eruptiva de cor cinzenta ou rosa ou vermelho escura - equivalente vulcânico dos granitos. contém sobretudo minerais de cor clara: biotite; honeblenda; magnetite; opala e topázio - os cristais são alinhados no sentido da corrente da lava]

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