domingo, março 20, 2005
quarenta romances de cavalaria # 11
# 11 – domingo
TENTAREI RECONSTITUIR a história como um esforço eucarístico uma celebração dominical foi há dois meses que lhe arrancaram o primeiro dente um molar do lado direito e duas semanas que lhe colocaram a prótese superior tentarei descrever o que se passou durante este tempo com o máximo rigor possível e total fidelidade ao que me foi contado pelo envolvido neste processo logo na primeira consulta a dentista comunicou-lhe que a única coisa a fazer como cura para a sua martirizada situação bocal seria arrancar-lhe todos os dentes e colocar-lhe uma prótese dentária completa acordaram que começariam pela placa de cima e que a totalidade do serviço se cumpriria em seis meses no mínimo a partir deste dia a vida deste homem mudou radicalmente iniciou-se naquela tarde um projecto de vida que lhe conferiu um sentido à existência como nunca tivera antes um objectivo determinante para a sua continuidade como ser humano como cidadão como animal na segunda consulta procedeu-se a modelação da matriz ou molde das próteses superior e inferior foi-lhe colocado um aparelho de metal para impedir o fechamento da boca e recebeu a indicação precisa de que deveria respirar sempre pelo nariz lentamente foi-lhe sendo injectada na cavidade oral uma massa até que cada recanto mais íntimo da boca estivesse preenchido por aquele barro azul a determinada altura por reflexo condicionado ou por distracção ele deixou que o ar lhe penetrasse lábios adentro desencadeando uma imediata contracção vómica que o fez julgar estar perante os últimos segundos da sua existência morreria como um herói num glorioso posicionamento físico de patas ao ar boca aberta e cheia e babete de papel felizmente a única consequência daquele acto irreflectido foi o maternal responso da senhora apesar da vergonha que se instalou no seu olhar a operação continuou com coragem e determinação ao fim de uma hora tinha já a massa a empedernir formando uma duplicação da boca dentro da boca ainda teve que esperar uns quinze minutos até lhe retirarem o espelho da sua oralidade momento arrepiante dada a sensação de que também a traqueia cordas vocais língua tudo viria colado àquela escultura depois de removido o aparelho metálico pôde então vomitar à sua livre vontade o que quisesse durante o tempo que quisesse vomitou com prazer seguiram-se sucessivas sessões semanais de arrancamento de osso até que as gengivas de cima estivessem totalmente rapadas mais uma semana de cicatrização e foi-lhe aplicada a placa quinze dias de hematomas e alimentação à base de sumos passaram num ápice e hoje é com orgulho que ele desfaz queques em galões ingerindo canecas daquela papa a colher de café é com orgulho idêntico que revela os passos projectados para a colocação da prótese inferior e não é difícil descobrir a sua radiosa alegria ao mostrar o papel onde está registada a marcação da consulta onde se procederá à extracção do primeiro dente da queixada de baixo_
TENTAREI RECONSTITUIR a história como um esforço eucarístico uma celebração dominical foi há dois meses que lhe arrancaram o primeiro dente um molar do lado direito e duas semanas que lhe colocaram a prótese superior tentarei descrever o que se passou durante este tempo com o máximo rigor possível e total fidelidade ao que me foi contado pelo envolvido neste processo logo na primeira consulta a dentista comunicou-lhe que a única coisa a fazer como cura para a sua martirizada situação bocal seria arrancar-lhe todos os dentes e colocar-lhe uma prótese dentária completa acordaram que começariam pela placa de cima e que a totalidade do serviço se cumpriria em seis meses no mínimo a partir deste dia a vida deste homem mudou radicalmente iniciou-se naquela tarde um projecto de vida que lhe conferiu um sentido à existência como nunca tivera antes um objectivo determinante para a sua continuidade como ser humano como cidadão como animal na segunda consulta procedeu-se a modelação da matriz ou molde das próteses superior e inferior foi-lhe colocado um aparelho de metal para impedir o fechamento da boca e recebeu a indicação precisa de que deveria respirar sempre pelo nariz lentamente foi-lhe sendo injectada na cavidade oral uma massa até que cada recanto mais íntimo da boca estivesse preenchido por aquele barro azul a determinada altura por reflexo condicionado ou por distracção ele deixou que o ar lhe penetrasse lábios adentro desencadeando uma imediata contracção vómica que o fez julgar estar perante os últimos segundos da sua existência morreria como um herói num glorioso posicionamento físico de patas ao ar boca aberta e cheia e babete de papel felizmente a única consequência daquele acto irreflectido foi o maternal responso da senhora apesar da vergonha que se instalou no seu olhar a operação continuou com coragem e determinação ao fim de uma hora tinha já a massa a empedernir formando uma duplicação da boca dentro da boca ainda teve que esperar uns quinze minutos até lhe retirarem o espelho da sua oralidade momento arrepiante dada a sensação de que também a traqueia cordas vocais língua tudo viria colado àquela escultura depois de removido o aparelho metálico pôde então vomitar à sua livre vontade o que quisesse durante o tempo que quisesse vomitou com prazer seguiram-se sucessivas sessões semanais de arrancamento de osso até que as gengivas de cima estivessem totalmente rapadas mais uma semana de cicatrização e foi-lhe aplicada a placa quinze dias de hematomas e alimentação à base de sumos passaram num ápice e hoje é com orgulho que ele desfaz queques em galões ingerindo canecas daquela papa a colher de café é com orgulho idêntico que revela os passos projectados para a colocação da prótese inferior e não é difícil descobrir a sua radiosa alegria ao mostrar o papel onde está registada a marcação da consulta onde se procederá à extracção do primeiro dente da queixada de baixo_