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sábado, março 19, 2005

quarenta romances de cavalaria # 10 

# 10 – sábado

ESTAMOS NUMA ENFERMARIA OVAL quinze homens dezasseis camas uma telefonia treze janelas vinte cadeiras uma mesa de cabeceira por homem e um crucifixo onde está pendurada uma placa inscrita com caracteres brancos sobre fundo negro enfermaria trinta e um sobre a cama vaga arrumam-se os sapatos devidamente etiquetados com os números de entrada das nossas cabeças as janelas estão trancadas e a telefonia tem o fio cortado só vestimos a parte de cima do pijama que são todos amarelos e têm quarenta botões à frente e um corte vertical atrás dizem que é para facilitar as lavagens os enfermeiros usam máscaras anti-gás sem nenhuma explicação aparente para o facto todas as manhãs são distribuídos pares de luvas de algodão branco imaculadamente lavadas faz parte do extenso regulamento da instituição afixado logo à entrada do canil a medida incluí-se no capítulo doze relativo à prevenção contra as gangrenas pelo facto de termos as luvas calçadas a direcção está convicta de que nos dissuade do uso das unhas contra qualquer borbulha chaga ou simples comichão os dias passam-se calmos ninguém ousa uma palavra e os chinelos que a câmara municipal distribui no natal são razoáveis não me posso queixar das rações e sinto-me grato por o regulamento não permitir visitas seria insuportável o enchimento diário deste ovo incubador com famílias e seus respectivos adereços tupperware com biscoitos caixas de chocolates flores em jarras de plástico lágrimas e sobretudo aqueles odiosos ossos feitos de cartilagens de origem bovina com suplementos de cálcio flúor e vitaminas o pior como seria de esperar são as noites é nessas horas amaldiçoadas que a tua recordação surge como um espírito invocado por um poderoso espírita são as horas em que a tua ausência se materializa com toda a brutalidade em que os teus olhos relampejam sob os lençóis em que me apanho a beijar-te o quente da pele é como se escalasses uma montanha com a ajuda de uma picareta e a montanha fosse eu nestes três anos talvez só tenha dormido cinco ou seis horas no máximo todo o restante tempo nocturno foi passado a sentir a picareta com que me escalas a cravar-se no interior da cabeça nada mais há para relatar tenho uma arrastadeira privativa e dentro da gaveta da mesinha de cabeceira guardo um pequeno sino dourado que se ousasse vibrar provocaria a invasão de biliões de secretas e invisíveis borboletas verdes_

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