sábado, março 26, 2005
quarenta romances de cavalaria # 17
# 17 – domingo
ACORDEI com pés virados para o lado esquerdo mas tenho a certeza de ter adormecido com eles postos para a direita isto parece não ter importância nenhuma mas faz parte de uma história que não começa aqui logo em criança tomei consciência de que os meus pés se movimentavam com uma inteligência separada da minha actualmente é uma coisa que não me incomoda muito quando estou acordado conversamos bastante posso dizer com orgulho que tenho uma boa relação de entendimento com os meus pés a pior fase foi durante a adolescência pois a acção das pernas raramente coincidia com a dos pés chegámos a caminhar vários quilómetros em direcções diversas até que reparasse que não os tinha fazendo-me farejar todo o caminho para trás à cata deles nessa altura discutíamos muito tivemos zangas que quase nos incompatibilizaram para a vida e à conta destes desentendimentos já nem tenho conta da quantidade de pares de sapatos que então perdi somada à natural confusão existencial na vida já de si solitária de um adolescente tinha que suportar os olhares piedosos e tolerantes dos mais velhos que sempre que tentava expor este assunto calados me consideravam um verdadeiro louco varrido que não se deve contrariar se fosse hoje ter-me-iam pespegado num psicólogo qualquer ou mesmo num instituto psiquiátrico naquela altura ainda não se falava nessas coisas e a atitude normal das pessoas face aos loucos da família era não os contrariar abanando que sim com a cabeça de facto nunca me contrariaram o que significa que também nunca me ajudaram tive que lidar com este milagre absolutamente sozinho e aprender a resolver esta situação contando apenas com o meu parco discernimento procurei em livros e enciclopédias livros sagrados e de medicina e nada nem um registo sobre tal patologia felizmente vamos envelhecendo e estas coisas vão ganhando uma proporção equilibrada é engraçado que tenho a sensação que os meus pés envelheceram ou amadureceram ou lá como quisermos chamar muito mais rapidamente do que eu e com a passagem do tempo aquela massa de carnes veias e falanges foi-se tornando mais dócil ao trato e de há uns anos para cá temos vindo a administrar esta separação corpórea com a devida responsabilidade e competência penso que fiz um bom trabalho de paciência e estudo sobre mim próprio ao longo dos anos apesar de difícil arranjámos uma solução de coabitação tecnicamente bem projectada e eficaz no entanto persiste um mistério nesta estranha existência que ainda não sei explicar e que receio nunca vir a descobrir a não ser que o acaso me conceda essa sorte o mistério reside naquilo que os meus pés fazem enquanto durmo não raras vezes no meu despertar matinal dou com eles presos às pernas erradas quer dizer o pé esquerdo preso à perna direita e o pé direito preso à perna esquerda até já os tenho apanhado fora da cama com os sapatos calçados quando posso jurar que adormeci descalço e com eles no devido lugar só eu sei disto porque sou sempre eu que acordo primeiro aliás sou sempre eu que os desperto e ou por medo de voltar aos conflitos do passado ou por no fundo reconhecer o direito que eles têm a uma vida própria nunca ousei perguntar o que quer que seja talvez nem devesse pensar nisto nem me deixar intrigar com estes fenómenos que no fundo são completamente insignificantes mas não posso negar que isto me deixa um pouco obcecado talvez até com inveja provavelmente essa será a verdadeira razão desta minha fixação curiosa é como se no fundo adivinhasse que nos momentos em que durmo eles viajam e são livres muito mais livres que eu e que essa liberdade lhes confere uma felicidade uma vivência que me está vedada_
ACORDEI com pés virados para o lado esquerdo mas tenho a certeza de ter adormecido com eles postos para a direita isto parece não ter importância nenhuma mas faz parte de uma história que não começa aqui logo em criança tomei consciência de que os meus pés se movimentavam com uma inteligência separada da minha actualmente é uma coisa que não me incomoda muito quando estou acordado conversamos bastante posso dizer com orgulho que tenho uma boa relação de entendimento com os meus pés a pior fase foi durante a adolescência pois a acção das pernas raramente coincidia com a dos pés chegámos a caminhar vários quilómetros em direcções diversas até que reparasse que não os tinha fazendo-me farejar todo o caminho para trás à cata deles nessa altura discutíamos muito tivemos zangas que quase nos incompatibilizaram para a vida e à conta destes desentendimentos já nem tenho conta da quantidade de pares de sapatos que então perdi somada à natural confusão existencial na vida já de si solitária de um adolescente tinha que suportar os olhares piedosos e tolerantes dos mais velhos que sempre que tentava expor este assunto calados me consideravam um verdadeiro louco varrido que não se deve contrariar se fosse hoje ter-me-iam pespegado num psicólogo qualquer ou mesmo num instituto psiquiátrico naquela altura ainda não se falava nessas coisas e a atitude normal das pessoas face aos loucos da família era não os contrariar abanando que sim com a cabeça de facto nunca me contrariaram o que significa que também nunca me ajudaram tive que lidar com este milagre absolutamente sozinho e aprender a resolver esta situação contando apenas com o meu parco discernimento procurei em livros e enciclopédias livros sagrados e de medicina e nada nem um registo sobre tal patologia felizmente vamos envelhecendo e estas coisas vão ganhando uma proporção equilibrada é engraçado que tenho a sensação que os meus pés envelheceram ou amadureceram ou lá como quisermos chamar muito mais rapidamente do que eu e com a passagem do tempo aquela massa de carnes veias e falanges foi-se tornando mais dócil ao trato e de há uns anos para cá temos vindo a administrar esta separação corpórea com a devida responsabilidade e competência penso que fiz um bom trabalho de paciência e estudo sobre mim próprio ao longo dos anos apesar de difícil arranjámos uma solução de coabitação tecnicamente bem projectada e eficaz no entanto persiste um mistério nesta estranha existência que ainda não sei explicar e que receio nunca vir a descobrir a não ser que o acaso me conceda essa sorte o mistério reside naquilo que os meus pés fazem enquanto durmo não raras vezes no meu despertar matinal dou com eles presos às pernas erradas quer dizer o pé esquerdo preso à perna direita e o pé direito preso à perna esquerda até já os tenho apanhado fora da cama com os sapatos calçados quando posso jurar que adormeci descalço e com eles no devido lugar só eu sei disto porque sou sempre eu que acordo primeiro aliás sou sempre eu que os desperto e ou por medo de voltar aos conflitos do passado ou por no fundo reconhecer o direito que eles têm a uma vida própria nunca ousei perguntar o que quer que seja talvez nem devesse pensar nisto nem me deixar intrigar com estes fenómenos que no fundo são completamente insignificantes mas não posso negar que isto me deixa um pouco obcecado talvez até com inveja provavelmente essa será a verdadeira razão desta minha fixação curiosa é como se no fundo adivinhasse que nos momentos em que durmo eles viajam e são livres muito mais livres que eu e que essa liberdade lhes confere uma felicidade uma vivência que me está vedada_