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quarta-feira, março 16, 2005

quarenta romances de cavalaria # 6 

# 6 - quarta-feira

SEMPRE VENEREI O PÓ nem compreendo como pode a gente comum chamar porcaria àquele tesouro quase mineral é o pó que dá caracter aos objectos além de ser das formas mais eficazes de saber se alguém profanou a nossa intimidade faz parte da ciência forence ao contrário da poeira que irrita a pele entra pelo nariz e entope os pulmões o pó sedimenta como algumas rochas formando uma camada que pode proteger o solo por milénios e sob ele as mais preciosas relíquias só é comparável às cinzas da cremação humana mas é muito mais difícil mesmo fazendo parte de uma grande família de cremados acumular cinzas em quantidade suficiente de maneira a cobrir toda uma casa ou mesmo uma cidade e não seria um processo natural exigiria mão de obra operária e cadáveres imaculadamente limpos além disso as cinzas humanas não possuem aquela coloração cinzenta-esverdeada ou azulada do pó que é um elemento subtil de emanação divina quando misturado com pequenas doses de gordura a sua implantação em mesas cadeiras ou livros torna-se muito mais fácil e as pequenas palavras-objecto revestidas dessa camada áurea dão vida a uma dimensão da consciência verdadeiramente poética compreendo que isso incomode o comum dos mortais a poesia constitui sempre um obstáculo à indiferença da existência doméstica exigiria inteligência aos mais pequenos actos em consequência o pó tornou-se um alvo a abater um inimigo no meu caso venho desde há muitos anos a desenvolver espiritualmente uma devoção religiosa pelo pó tenho a ambição de fundar um rito que possa celebrar e glorificar esta bênção da natureza talvez os poucos devotos de outras confissões como os glorificadores de ossos se possam juntar a mim talvez seja mesmo possível fundar uma comunidade missionária na minha cama durante a noite eu e o pó passamos noites sublimes como não uso almofadas apoio a cabeça sobre livros que já li e é inebriado pelo odor que o pó oferenda que adormeço agradecido a esta dádiva de um incenso mais puro e curador que me transporta para o sono como uma mãe leva o filho para um banho quente no inverno esta noite tive um sonho horrível e é por isso que vos falo nisto sonhei que uma brigada militarizada de limpadoras profissionais tinha entrado no meu buraco empunhando o canhão de um desses monstruosos aspiradores de guerra e sem um pedido de consentimento obedecendo a inquestionáveis ordens superiores de uma secreta linha de comando sugaram todo o pó que dá sentido à minha existência depois do trabalho feito saíram em marcha deixando a casa despida do seu sangue vital e no ar uma sórdida poeira voadora_

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