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sábado, janeiro 31, 2004

“Coisas da Escola” 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

com o aparecimento do blogue “coisas da escola”, ganhámos um novo espaço ligado à educação. a avaliar pelas palavras dos posts de abertura, vamos poder contar com um blogue indispensável:

“Um espaco para debater os sentidos do educar. Uma demanda de horizontes onde nos possamos, em comum, fazer mais sábios. Para uma nova ecologia e uma nova economia do trabalho de aprendizagem nas escolas. Porque a educação nos faz falta! Mas também porque a educação nos pode reduzir a vida!”

"Porque só a poesia é radical!...

"Aquele menino cercado
tem um destino de pássaro.
(...)
Aquele menino tão sábio,
Tão rico de madrugadas."


MBSB"

“ Há palavras que nos acordam:

"(...) Numa sociedade de desigualdades tão profundas,
de heranças tão opostas,
onde a palavra de ordem é a competição desenfreada,
a escola marca o individualismo dos percursos
para premiar os que chegam primeiro ou vão mais longe,
independentemente do fôlego cultural ou do diferente ponto de partida,
gerando a ideia de que todos somos, fatalmente,
potenciais inimigos porque obrigados à concorrência.
A isso contrapomos o único modo dignificante de convivência
que é a colaboração e a entreajuda:
a solidariedade no trabalho e na vida pela cooperação educativa."
SÉRGIO NIZA (1992)”

sexta-feira, janeiro 30, 2004

Ver grego... 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

"25.11.03
Passei a noite a ler a "Odisseia" de Homero na versão original em grego. Apesar de ser uma língua que desconheço de todo, foi uma experiência emocionante. Os traços retorcidos do alfabeto helénico são testemunho de milénios de história da civilização de que somos filhos. Dá que pensar"


com efeito, dá que pensar. a anabela mota ribeiro editou este pequeno texto no seu blogue, possibilidade do sentir. devo ser mesmo muito estúpido... será que li bem? qualquer coisa me deve estar a escapar... ela levou toda a noite a ler a odisseia em grego sem saber grego? levou a noite toda a ler? é o que está escrito não é? L-E-R! é, é ler que está escrito. mas a amr, não diz que não sabe grego? "traços retorcidos do alfabeto hélenico"... toda a noite?.

mas o que é que a anabela mota ribeiro quer demonstrar com este post?
vejo-me grego com as minhas reduzidas capacidades...

Circo do Sol 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

do causa nossa, outro dos blogues portugueses indispensáveis:

"O deslumbramento de um espectáculo único onde a magia, a acrobacia, a música, a dança e o teatro se combinam numa vertigem de emoções e prazeres raros. Esta companhia canadiana tem dez trupes a actuar pelo mundo fora, com shows diferentes (recomendo uma visita ao site). Saltimbanco é o nome do que, neste momento, se encontra em digressão por Espanha. Um bom conselho: vá vê-lo a Sevilha, onde permanecerá em cena por mais duas semanas (mas adquira, com antecedência, os bilhetes pela net). Depois conte."
Post de Luís Nazaré

DOL-U-RON FORTE - 2 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

quando penso nos dias que foram
sinto um poderoso odor a morangos lavados
sinto até a água que escorre nos dedos sangrados de sumo
e
o acre do pomo a escorregar-me na garganta
como se
comesse uma maçã

lembro-me da velha a tirar-lhes o verde
a esfaquear-lhes o coração voltando a cara para o lado
tal e qual matasse um animal
acho que a velha era sensível à dor dos frutos

quando penso nos dias e sinto este odor a morangos
não sinto saudades da velha
não sinto saudades
sinto é a absoluta necessidade de tragar um liquido vermelho e doce

(hino dol-u-ron forte)

quarta-feira, janeiro 28, 2004

Os Blogues 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

os blogues if (íntima fracção) no ar e o céu sobre lisboa são mesmo indispensáveis.
eles trazem a calma e a inteligência e a forma doce dos dias que correm.

1. se o fim das transmissões do programa íntima fracção na tsf, serviram para o que um grupo de pessoas pensarem e promoverem a permanente investigação sobre possíveis musicas enquadráveis no programa, quase me atreveria a dizer que valeu a pena a suspensão das emissões. ao que parece, francisco amaral – que também mantêm um blogue e um site – mantêm vivo o seu programa utilizando a internet para a sua continuidade. todos temos esperança que o if volte ao éter, mas se assim não for, não se perdeu tudo, ficou o projecto e ganharam-se novas ideias e energias para que o projecto possa crescer e aprender.

2. olhar o céu de lisboa para ver a cidade com o coração, a pele, o cheiro… os sentidos, descobrindo os pormenores de uma “aldeia” perdida no fumo dos escapes, das solidões, do escuro embrutecimento dos dias perdidos, é uma revelação que não podemos deixar escapar.

anabela mota ribeiro estreou-se na blogosfera com o possibilidade do sentir. a sua estreia foi envolta numa polémica pateta. umas picardias à volta do senhor das “anilhas” e do seu autor tolkien. sinceramente acho que o tolkien não vale tanta escrita. pronto, há quem precise de estímulos para a imaginação, para o encantamento e para o sonho. isso não tem nada de mal, os livros de tolkien, com franqueza, não trazem muito mais que isso. e não é pouco, é o que é. não percebo é porque fazem daquilo uma religião, melhor, uma igreja.

o luís carmelo escreveu:
“por mensagens recebidas, já entendi que continua viva aquela ideia de que fica mal os "chamados intelectuais" (detesto o termo!) vibrarem ou interessarem-se por futebol. eu sempre gostei muito e sempre acompanhei e apoiei o benfica (sou mesmo sócio).”
pois eu… acho que o que está na moda é os "chamados intelectuais" (também detesto o termo!), mostrarem-se militantes de futebol. até são comentadores nos debates televisivos e acham coisas, muitas coisas, sobre os lances e as arbitragens, e as cores das camisolas, e as cores dos relvados e assim. só é pena é que os "chamados intelectuais" que militam no futebol não se mostrem mais vezes indignados com a vergonha que em que esse ex-desporto se tornou, a forma escandalosa como se vibra com a corrupção, a infâmia, a promiscuidade politico-clubistica, os negócios escuros… enfim, como diz o luís carmelo, devem mesmo ser coisas de família.

DOL-U-RON Forte - 1 

OS LENÇÓIS AINDA

os lençóis ainda
estavam quentes
quando as três mulheres retiraram
o meu
cadáver e
o conduziram para a cova aberta no quintal

as três mulheres não
choraram
não
tiveram tempo para
chorar
tinham
que cuidar de mim
e
ter
forças para me amortalhar

aguentaram
heróicas o cheiro fétido
e
a visão
do meu rosto distorcido

jamais esquecerei os seus olhares atarefados
enquanto
me
plantavam
na cova aberta do quintal

não se despediram do cadáver
do
meu cadáver
e
ficaram sós
três
como sempre tinham estado
enquanto
vivi.

(hino dol-u-ron forte)

A Superioridade Moral dos Humoristas 

ao chegar a lisboa, jô soares foi confrontado com a já normal imbecilidade das perguntas televisivas. um caramelo qualquer, perguntou-lhe se ele achava que os portuguêses tinham humor. jô soares, do alto da superioridade moral a que só os humoristas têm acesso, do alto do seu fascinante talento, respondeu: "têm tanto humor, mas tanto humor, que até descobriram o brasil."

o ary dos santos costumava dizer que não era gordo, era imenso. aí está

terça-feira, janeiro 27, 2004

HORA DA FÉNIX 54 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

OS GAROTOS QUE SE AMAM
Jaques Prévert


Os garotos que se amam
beijam-se de pé
contra as portas da noite
e a gente que passa aponta-os a dedo
mas os garotos que se amam
não estão lá para ninguém
e é apenas a sua sombra
que palpita na noite
provocando a raiva de quem passa
a raiva, o desprezo, o riso e a inveja
Os garotos que se amam
não estão lá para ninguém
estão algures, muito além da noite
muito mais alto que o dia
na deslumbrante claridade do seu primeiro amor.


vi “le jour se lève”, de marcél carné, na abril em maio, sentado em cadeira de veludo, velho assento do teatro d. maria, agora banco de um cinema que não é cinema, aconchego de uma sala onde se pode fumar enquanto se vê o filme, onde se ouve a respiração apaixonada dos presentes, aí uns quinze. ali sentado, parado em mim, inundado do olhar desencantado de jean gabin, deixei-me, finalmente, descansar. na abril em maio ainda se consegue respirar e abraçar e beijar, ver livros, lutar. estar-se vivo. obrigada eduarda, obrigado maçarikus, obrigada prévert por teres estado presente.

“le jour se lève” - 1939
“num prédio parisiense, uma discussão entre dois homens azeda e é disparado um tiro. a vítima, valentim (lules berry), sai do pédio antes de sucumbir, e françois, o assassino (jean gabim), tranca-se no seu apartamento. a polícia cerca o prédio e, durante a noite, françois recorda o que se passou. operário numa fábrica, conhece françoise (jaqueline laurent), florista, educada como ele num orfanato. apaixonam-se, mas françoise recusa entregar-se. um dia ele segue-a até um music-hall, onde o número de um domador de cães (valentim) a seduz. clara (arletty), a amante de valentim, disposta a romper com ele, tenta seduzir françois, que se torna seu amante, enquanto que françoise se liga a valentim. este procura françois para o matar, mas acaba por não o fazer, aludindo cinicamente à sua ligação com françoise. furioso, françois pega na arma do outro e dispara contra ele. de madrugada, os polícias que cercavam a casa estão já no telhado; lançam gazes pela janela, mas françois já se suicidou com o revólver de valentim.”

“filme emblemático do realismo poético, “le jour se lève” é um clássico do péssimismo típico de marcel carné. construído com base num único personagem encerrado no seu quarto, o filme prolonga a tradição do “kammerspiel” do cinema alemão dos anos 20. é um filme inovador pelo recurso ao flash-back, que welles utilizará no ano seguinte em citizen kane.”


segunda-feira, janeiro 26, 2004

Ao Fernando Mascarenhas 

há uns dias escrevi um texto sobre a morte da minha tia maria margarida george. escrevi-o num impulso, em reacção à notícia do seu desaparecimento. o que escrevi não tinha como intenção ofender ou magoar quem quer que fosse, mas sim referir que a sua passagem por esta vida, nomeadamente o trabalho que desenvolveu ao nível da fotografia, merecem ser divulgados como um testemunho relevante sobre uma geração e um período da historia recente de portugal. no entanto, não o fiz da melhor maneira e escrevendo este texto sobre a minha tia, acabei por magoar o seu filho, fernando mascarenhas, que, apesar de sentido, teve a amabilidade de me escrever expondo a sua justa mágoa e fazendo-me ver a falta de justeza de algumas das afirmações publicadas. Por isso lhe peço desculpa. agradeço as conversas que tivemos por e-mail assim como a doçura da sua compreensão.

HORA DO DIABO 62 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

a morte depois de um sorriso.

“O húngaro Miklos Féher morreu, este domingo, no Hospital de Guimarães, após ter caído inanimado no fim do V. Guimarães-Benfica. O jogador foi dado como morto às 23:10. O hospital de Guimarães e o Benfica confirmaram o falecimento do jogador.” – Fonte TSF - On Line

todas as noites, quando me deito, ligo o rádio sintonizado na tsf. não gosto de futebol, não acompanho nada que lhe diga respeito. ontem nem sequer sabia que o benfica estava a jogar. apaguei a luz encostei a cabeça na almofada e liguei o rádio-despertador. dei com uma transmissão emotiva em tom trágico. estava a ser transmitida, em directo, a morte do jogador húngaro féher, que eu não fazia a mínima ideia de quem fosse.

agora que se fala tanto nos abusos da comunicação social, da forma impiedosa como os jornalistas utilizam as tragédias para conquistar audiências, em que até se põe em causa a liberdade de imprensa, a tsf é bem o exemplo de como se pode tratar um caso trágico como este com irrepreensiva dignidade. o jornalista que estava a coordenar a transmissão, não o sei identificar, foi sempre de uma delicadeza, de um profissionalismo e respeito absoluto, tanto que aquele momento triste se tornou numa verdadeira lição de jornalismo.

a consternação que a morte súbita de féher gerou, é um assunto que nada tem a ver com o futebol. o que aqui está em causa é o facto de hoje em dia assistirmos a tudo em directo, guerras, desastres, mortes, e de não sabermos lidar com isso. não sei se alguma vez saberemos.

ao presenciarmos a morte de um jovem, um jovem saudável de 24 anos, homem que, ao que parece, era pacífico e cordato, apesar de uma série de más-vontades a foi sujeito durante a sua carreira portuguesa.

o futebol deixou há muito de ser terreno de bom senso. tornou-se um espaço de selvajaria, de disputas de poder, de escândalos financeiros, fraudes. o futebol já tem pouco de jogo e muito de máfia. quando, em directo, pela rádio ou pela televisão, assistimos à tragédia da morte do jogador, o futebol tornou-se uma coisa humana. foi como se de repente todos tomassem consciência da mortalidade. o facto é que apesar desta sociedade nos vender a eternidade dada pela beleza da juventude, a eternidade do sucesso, continuamos tão mortais como sempre e tão incapazes de lidar com a morte como sempre.

para a esmagadora maioria de nós, morrer é assunto que deitamos para trás das costas. é coisa que só acontece aos outros. é assunto imundo. não queremos assumir que a morte faz parte da existência. e se por um momento esse assunto nos atormenta, vamos a correr a um hipermercado encher a cabeça com promoções e logo adiamos o problema. no entanto, a morte existe. não há como a banir. momentos como os que ontem se viveram trazem-nos a noção dessa realidade, que poderia não ser trágica se culturalmente soubéssemos trabalhar essa inevitabilidade, como um processo natural da nossa condição humana. mas como essa consciência do nosso verdadeiro ser ainda está longe, tão imensamente longe, de ser uma realidade, ver morrer um homem que detinha todas as anunciadas marcas da eternidade da sociedade em que vivemos - famoso, bem-sucedido, jovem, etc. – fez, num segundo, ruir todas as ilusões de que a morte é para os outros e que só acontece aos deserdados da vida.

no momento em que féher caiu para sempre da vida, milhares, milhões, de seres humanos deixavam-nos nas condições mais tenebrosas de existências. mas esses, esses a quem a sociedade esqueceu, são os que morrem. para os senso-comum, só os desconhecidos morrem, os famosos, os belos, os ricos, são eternos. daí a desesperada tentação de ser assim, de um dia, ser-se igualmente belo, rico e famoso, em suma fugir da morte, nem que seja com infindáveis dívidas de cartão de crédito à porta do hiper-mercado mais próximo.

basta andar nas ruas de uma cidade para encontrar jovens, muito mais jovens que féher, a desfazerem-se com seringas enterradas no corpo, mulheres jovens, muito mais jovens que féher, a desfazerem-se com homens enterrados no corpo. experimentem “passear” pelo intendente, em lisboa, não terão dificuldade em se depararem com tal “espectáculo”. mas que importa? não são mortes dadas na televisão, nada sabemos dessas pessoas. há até quem ache que merecem que assim seja.

antes de cair no relvado do estádio de guimarães, féher esboçara uma sorriso ao árbitro quando este lhes mostrara um cartão amarelo num gesto de simpatia e fair-play. talvez no fundo de si, o jogador se estivesse a despedir da vida com um sorriso. talvez féher nos estivesse a ensinar a morrer, sorrindo à vida.



domingo, janeiro 25, 2004

Mantenha a Cidade Limpa - Por João Sérgio Palma 

"Mantenha a Cidade Limpa"
Colagem de João Tanganho

sábado, janeiro 24, 2004

HORA DA FÉNIX 53 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

acaso (acaso?)

estive na fnac/colombo no lançamento do livro “prazer em pó” do meu amigo eduardo brum. conheço aquele homem desde os meus doze anos. foi meu professor no ciclo preparatório. já o não via desde 87. na altura eu tinha fundado um jornal – “heart” – e ele acabara de publicar um livro – “romance de uma sereia” – entrevistei-o para esse jornal, sobre esse livro. apesar de ter estado tantos anos sem o ver, sempre me senti próximo dele.

depois a vida com a sua magia maravilhosa foi-me trazendo noticias suas de quando em quando. há uns anos ele retornou aos açores, sua terra natal para o bem e para o mal, para lançar um projecto jornalístico em s. miguel. nessa altura falei com ele ao telefone por acaso (acaso?). o percurso jornalístico do brum é um exemplo notável, uma verdadeira resistência à mediocridade, um feroz combate pela inteligência, contra o marasmo e a incultura. vale a pena ler o estatuto editorial do jornal “expresso das nove”. em bom rigor, aquilo não é um estatuto editorial, mas um projecto de cidadania. quando o li senti um profundo orgulho (detesto esta palavra) por ter conhecido um tipo capaz de promover um projecto assim.

entretanto, tinha-lhe perdido o rasto e, por acaso (acaso?), há uns meses, um e-mail meu foi-lhe para à caixa de correio electrónico. desde então temos mantido um permanente contacto epistolar via e-mail. um contacto de imensa proximidade, repartido por évora, s. miguel e lisboa. três ilhas digitais como ele, inteligentemente, chama aos lugares da contemporaneidade.

o eduardo sempre foi um homem insular, à parte. não é de estranhar que por acaso (acaso?) tenha ido outra vez parar aos açores, re-parar aos açores, reparar os açores. os seus livros são, claramente, barcos que partem dessa ilha humana para os continentes, para as penínsulas, para as outras ilhas humanas, para o outro, numa ânsia permanente de encontrar. estranho martírio este a que deus condenou os homens e as mulheres quando ordenou a separação dos continentes e fez arder os gelos do norte provocando o dilúvio dos dilúvios. o degelo que encheu o fundo do mar das separações.

o grupo de ilhas açorianas são, aliás, uma bela metáfora da humanidade. cada ser não é mais que uma rocha pronta a explodir nos terramotos das suas clivagens interiores, irremediavelmente separados por mares imensos, com a ilusão da terra à vista do outro lado das águas.

não há muitos escritores que sintam uma necessidade visceral de se encontrar, de encontrar. uns perdem-se na procura. outros não iniciam sequer a caminhada. outros são só coisas a gesticular. felizmente o brum é dos que não prescinde das pessoas. talvez por isso ele afirme que a literatura não lhe interessa, mas sim a escrita. a pulsação, a batida cardíaca, que até já o traiu uma e outra vez.

o eduardo brum publicou sete livros. escrevo estas linhas preparando-me para ler o “prazer em pó” . os seus livros não nos descansam, não esperem encontrar nas suas linhas o prazer light da culturazinha deste principio de século. nada disso. os seus livros não são propostas para passar um bom bocado ao fim de semana. são livros que nos vão direitos à medula. que nos tocam as vértebras. isso faz-me acreditar que a escrita em portugal ainda tem forças, ainda pensa e reage. essa é a esperança de todos os que têm a cultura e a arte como pátria comum, a esperança e o dever de resistir.

sexta-feira, janeiro 23, 2004

vénus - Por Olsa 

aqui fica outro poema se Olsa chegado ao SA:

vénus

Água contaminada
pelo sangue celeste,
espumas em êxtase
viciada em prazer
que desfaz a tua carne
em violentas ondas
incapazes de amar.

Escarras sem pudor
o útero em ti erigido.
Bela sai aquela divina
que Helena será amoral,
e suja os pés na terra
que firme a sustenta agora.

Traz a noite estrelada
nos cabelos serpenteantes
e a brancura da luz
na pele húmida na manhã.

Ágil como o lobo
percorre a savana.
Na alma: uma busca;
no corpo: um desejo!

Conceição torna-se seu nome
que uiva pela fome jamais satisfeita,
subindo na sua eleita demanda
ao desolado olímpico monte.

Aí vê o sol que nasce do chão,
suas flechas de oiro a maculam;
grávida duma nova estrela
é em paixão aos céus elevada.

Insubmissa, a sua carnal natureza
todos os corteses astros ofende,
e sem piedade ao solo é atirada
pela madrugada, antes do rei despertar.

Assim brutalmente quebrada, rasteja pelo pó,
aguardando abandonada a sua hora de parir.

Grita só, de dor!.

Eu ouço-a e vou até ela,
beijo-lhe a testa suada
prometendo-lhe sempre
a acompanhar… sem mentiras,
enquanto lhe devoro o feto
no qual por amor me reconverto.

anjo de cetim - Por Olsa 

chegou-nos um poema de Olsa

anjo de cetim

Entre fumos de sedução
que me lambem quentes
a pele sempre tão fria,
perco-me em teus passos
na madrugada que não vem.

Encantado, sigo de olhar estagnado
a tua irrequieta sombra doirada,
pelos efémeros jardins do entardecer
onde sonho descalço pela erva azul.

Revejo um triângulo rosa
perfurar o sol poente
e da união profana
uma semente emerge,
caindo na terra adormecida
para germinar o teu corpo
numa moira espiga sem pão
que vem e gentil me entra.

Meu anjo amado
vestido doce
de estrelas,
o teu cabelo
é o breu olhar
da interna noite
em que terno
me embalas.

Tocas-me ardente
desejando outro
ser em mim,
decadente bebes
a minha alma…
teu maná obscuro.

Renovas-me na tua morena pele,
que devoro sempre sôfrego
temendo a nova manhã
que vã e pudica
nos denuncia.

Desperto!

Já a luz de prata partiu
e eu fico só
sob o cúbico céu.

A deus, meu anjo de cetim,
retornas feliz redimido por fim,
com o teu sexo plenamente satisfeito por mim;
e eu solitário apenas recordo, sendo Adão enfim,
ao esperar as trevas para o teu voltar… querido querubim.

Olsa

quarta-feira, janeiro 21, 2004

HORA DO DIABO 61 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

já deves estar a dormir meu filho. sabes, estas horas são as mais difíceis para mim. são as horas em que o sono não vem e não me posso refugiar nos sonhos.

nos sonhos estamos sempre juntos. os sonhos são uma porta extraordinária para a vida. acho que é tão realidade a realidade sonhada como a realidade que pensamos ser realidade. nos sonhos podemos sempre caminhar ao sol, ou brincar à chuva, porque nos sonhos a chuva e o sol não dependem das estações. nos sonhos a lua está mais próxima e o sol não queima.

agora que dormes e sonhas, anseio por também conseguir dormir e sonhar ao pé de ti. devia haver um serviço de canções de embalar ao domicilio. assim poderíamos mandar vir um embalador que nos levasse para os campos vivos da noite e nos arrebatasse desta obrigação a que chamamos vigília.

agora que já dormes, e sonhas, e viajas, inocente, com as nuvens, com as árvores, com cães e gatos, desejo-te sonhos de todas cores com anjos para te acompanharem.

HORA DA FÉNIX 52 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

há músicas que nos salvam a vida. eu já fui muitas vezes salvo por canções. esta noite graças ao blogue IF no AR - Ideias Para a Continuidade da Íntima Fracção, dei com a música de mestre tom waits "Innocent when you dream", que mais uma vez me puxou das chamas.

"It's such a sad old feeling
the fields are soft and green
it's memories that I'm stealing
but you're innocent when you dream
when you dream
you're innocent when you dream."

Extracto de Innocent when you dream, Tom Waits.
para ouvir a música clique aqui

Kavafis 

jpp publicou no abrupto um poema de kavafis. fez bem. é um poema muito belo.
carla hilário quevedo, afirmou no bomba intelegente que não gostava da tradução publicada no abrupto e publicou a sua tradução preferida. fez bem. de facto, a tradução que o bomba inteligente divulgou é melhor.

a partir daí sucederam-se posts e contra-posts em ambos os blogues.
hoje o bomba disseca o poema para provar a superioridade literária da tradução de joaquim manuel magalhães. fizeram mal.

é que a poesia começa onde esta forma dicionaresca de a observar acaba.

HORA DA FÉNIX 51 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

Fotografias em Diário de Imagens "Saudades de Antero"

há vários sites na web que publicam diariamente centenas, milhares, de retratos photomaton que cibernautas lhes enviam por e-mail. nasceu assim uma espantosa colecção de retratos photomaton – juntamente com as polaroid, as mais belas fotografias do mundo – reveladoras de gente de todos os cantos do globo, de todos os níveis sociais, de todas as profissões, etc.

extraordinário mundo este o da internet.

terça-feira, janeiro 20, 2004

HORA DA FÉNIX 50 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

quem são os seres que habitam as fotografias david donovan?
mulheres?
que mulheres?
o que está por detrás dos seus retratos-pintura?

fotografias em Diário de Imagens "Saudades de Antero"

segunda-feira, janeiro 19, 2004

HORA DO DIABO 60 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

"O HOMEM NÃO FOI FEITO PARA TRABALHAR MAS PARA CRIAR!"

"Meu caro amigo:

Do que você precisa, acima de tudo, é de se não lembrar do que eu lhe disse; nunca pense por mim, pense sempre por você; fique certo de que mais valem todos os erros se forem cometidos segundo o que pensou e decidiu do que todos os acertos, se eles forem meus, não seus. Se o criador o tivesse querido juntar a mim não teríamos talvez dois corpos ou duas cabeças também distintas. Os meus conselhos devem servir para que você se lhes oponha. É possível que depois da oposição venha a pensar o mesmo que eu; mas nessa altura já o pensamento lhe pertence. São meus discípulos, se alguns tenho, os que estão contra mim; porque esses guardaram no fundo da alma a força que verdadeiramente me anima e que mais desejaria transmitir-lhes: a de se não conformarem."


Agostinho da Silva

HORA DA FÉNIX 49 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

já aqui tinha falado do “clube da imaginação” da escola de santa clara em évora. mais uma vez dei com uns textos escritos naquele espaço de verdadeira educação e magia. aqui vos deixo:

A – A Maria bebe água.
B – Bastante água.
C – Começa a beber.
D – Desmaia de repente.
E – É levada ao Hospital.
F – Foi ligada à máquina.
G – Gigante e cinzenta.
H – Horrorizada e com medo
I – Inspira e expira profundamente.
J - Juntamente com a tontura
L – Levanta-se e chama a
M – Mãe e o Pai
N – Não estão ali.
O – Olha para a rua
P – Pensa que é tão infeliz.
Q – Quando chega o médico
R – Repara nela.
S – Senta-a e dá-lhe um copo.
T – Toma bebe
U – Usando a palhinha.
V – Vagarosamente bebe o liquido.
X – Xavier, o médico, diz-lhe:
Z – Zangada comigo? Vai-te embora para casa!

Ana Filipa Cambeiro, 11 anos

A – A aranha é peluda.
B – Bonita mas peluda.
C – Come muito.
D – Dedos, pés,
E – E também mãos.
F – Fogo, muito come!
G – Gorda? Sim.
H – Hi, Hi, Hi.
I – Igual a muitos
J – Javalis engraçados
L – Linda, lindíssima.
M – Miga do coração.
N – Não há nada que ela não consiga.
O – Oh meu deus!
P – Poderosa…
Q – Quando se irrita
R – Rói tudo.
S – Sapatos, cadeiras…
T – Tudo e mais alguma coisa, até
U – Ursos a temem.
V – Vá lá…
X – Xica! Não me mintas, ela até nem se
Z – Zanga muito.

Catarina Fonseca, 11 anos

home page escola eb 2,3 santa clara, évora

domingo, janeiro 18, 2004

HORA DA FÉNIX 48 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

W.W. de um e-mail:

"CAÍ, GOTAS

Caí, gotas! Abandonai as minhas veias azuis!
Oh, gotas minhas! Gotejai, lentas gotas,
Inocentemente brotai de mim, gotejai, sangrentas gotas,
Das feridas abertas para vos livrardes da vossa prisão,
Do meu rosto, da minha fronte, dos meus lábios,
Do meu peito, de onde eu estava oculto, vertei gotas vermelhas, gotas confidenciais,
Manchai cada página, manchai cada canção que canto, sangrentas gotas,
Dai-lhes a conhecer o vosso rubro calor, o vosso brilho,
Saturai-os com a vossa essência tímida e húmida,
Brilhai sobre tudo o que escrevi ou escreverei, gotas sangrentas,
Deixai que tudo seja visto sob a vossa luz, ruborizadas gotas. "


Walt Whitman

HORA DO DIABO 59 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

"Considero a vida uma estalagem onde tenho que me demorar até que chegue a diligência do abismo. Não sei onde ela me levará, porque não sei nada. Poderia considerar esta estalagem uma prisão, porque estou compelido a aguardar nela; poderia considerá-la um lugar de sociáveis, porque aqui me encontro com outros. Não sou, porém, nem impaciente nem comum. Deixo ao que são os que se fecham no quarto, deitados moles na cama onde esperam sem sono; deixo ao que fazem os que conversam nas salas, de onde as músicas e as vozes chegam cómodas até mim. Sento-me à porta e embebo meus olhos e ouvidos nas cores e nos sons da paisagem, e canto lento, para mim só, vagos cantos que componho enquanto espero.

Para todos nós descerá a noite e chegará a diligência. Gozo a brisa que me dão e a alma que me deram para gozá-la, e não interrogo mais nem procuro. Se o que deixar escrito no livro dos viajantes puder, relido um dia por outros, entretê-los também na passagem, será bem. Se não o lerem, nem se entretiverem, será bem também."

Bernardo Soares [Fernando Pessoa]

MULHERZINHA XI-XIS 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

esta extraordinária sociedade de inteligência em que vivemos está a refinar-se.
agora nos centros comerciais, introduziu-se um novo conceito de comércio. o comercio maridinho-mulherzinha. e assim, a mesma loja, de um lado tem motas, do outro artigos para bebés, ou ainda, de um lado telemóveis e do outro perfumes. o maridinho vai prás motas/telémoveis, a mulherzinha para os pijaminhas/perfuminhos.
é o comercio azul-rosa.

a moda também pegou no jornalismo, quer dizer nos jornais. o “público”, ao sábado segue o mesmo conceito azul-rosa. trás dois suplementos. sentados no sofá, de um lado o maridinho lê o “mil-folhas”, do outro lado a mulherzinha lê a revista “xis”. no entanto, o maridinho tem um bónus: tb lê o desporto. à mulherzinha é dada permissão para ler em conjunto com o maridinho a programação televisiva.

o “mil-folhas” é um excelente suplemento cultural. um produto jornalístico de imensa qualidade, aliás o único suplemento cultural digno desse nome, a “xis” um verdeiro “cozinha para mulheres” agora em versão pós moderna.

sob o chapéu da bela-escrita, tipo belo canto, aconselham-se as mulherezinhas a serem felizes, a saber casar, a ter relações sexuais satisfatórias, a cozinhar jantarinhos exóticos e a educar os filhos. um verdadeiro compêndio para a mulherzinha.

no fim da revista têm-se direito a um blogue do daniel sampaio, falando das tias mortas, das infâncias com o mano, dos livrinhos, tudo disfarçado de ficção.

como leio as revistas e os jornais do fim para o principio, quando acabo de folhear a “xis” dou com as cartinhas da laurinda alves, sempre muito avisadas, ponderadas, responsáveis e excepcionalmente bem escritas. a avaliar pelas palavras laurindianas, os filhos da jornalista devem ser os adolescentes mais equilibrados do mundo. só pode.

é no entanto no espaço “gente xis” que a coisa se torna verdadeiramente emocionante. ali aparecem as mais betinhas, bem-sucedidas e emancipadíssimas mulheres da cena lusófona. no “gente xis” desta semana, dei com uma mecinha, bem parecida, bem vestida, bem maquiada, bem fotografada, de cabelos longos caídos sobre uns ombros nus em fundo vermelho. uma arquitecta e (um mal nunca vem só) designer. um artista portuguesa.

nesta rubrica, fazem uma série de perguntas, estilo questionário de verão, vocês sabem, já todos passámos a vista pela “xis”: “ser feliz é…”, “lema de vida?”, “qualidade que mais gosta num homem?”, etc. coisas importantíssimas de saber. a arrematar, questiona-se a “gente xis” sobre os valores fundamentais. esta moça, inês cortesão de sua graça, deu esta resposta: “inconformismo, protesto, revolução…” e, por momentos, aquela página estilo “tv 7 dias” toma um pedaço de interesse. para logo o perder, é que a arquitecta e, não nos podemos esquecer, designer, acrescenta, com um humor de tirar o fôlego a plateias, “estou a brincar! [ah, ah, ah, ah, ah, que gozona!] família, saúde, educação.

que arquitecta e, não nos podemos esquecer, designer, galhofona, né?

será que esta rapariga fica contente com estas coisitas que diz? será que é assim tão bom para o negócio alarvar estas frases do mais primário conservadorismo?
e a revista “xis”, irá continuar? é que se um dia deixar de ser editada, o que vão dos sábados as mulherzinhas de portugal que têm vergonha de comprar “marias”?

se calhar só lhes resta xi-xis cama.



sábado, janeiro 17, 2004

HORA DO DIABO 58 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

quando o inverno tosse caímos escada a baixo.

o velho visita todas as noites o seu pequeno estabelecimento para o varrer. tem que subir uma estreita escada, sem corrimão, de vassoura e pá na mão. trinta e tal degraus. Depois, às escuras, acende um fósforo e mete a chave à porta.

rotina das noites de inverno e verão. rotina da velhice, que em novo não fazia tal trabalho. agora está só e não há quem lhe limpe a loja.

janta e parte no calor ou no frio para a sua segunda morada. tem quase oitenta anos, mas nada o detém. nunca percebi porque não deixa ele a vassoura e a pá oficina. mas não. leva-a para casa e no outro dia para a loja.

hoje choveu todo o dia, os degraus ficaram escorregadios e o velho tombou escada a baixo. foi numa ambulância. apesar das dores, do sangue, não queria por nada largar a sua pá e a sua vassoura. os bombeiros tiveram que lhas arrancar à força. ficaram para ali, pelo chão.

Agora à noite, quando voltava para casa, dei com a pá e a vassoura caídas no mesmo sitio, como se esperassem, na solidão do frio e da noite, o regresso do sr. custódio que não vai vir.

évoramoda 1 - vivárua 0 - Por João Sérgio Palma 

évoramoda 1 - vivárua 0

como se mede o nível cultural duma população?

pelo número de espectáculos a que assiste?

pela sua qualidade?

pelo cinema que vê?

pelas exposições que visita?

pelos livros que lê?

chega?

ou será que nos esquecemos de alguma coisa?

o que eu gostava mesmo era de reflectir no que realmente nunca está nas listas do poder como prioridade mas que seria, no estado em que estamos, o único objectivo válido: a educação artística das populações. o resto vem por acréscimo, por necessidade.

para que servia ter o vivárua no verão de évora, a trazer muitos e bons artistas de todo o mundo à praça, quando todo o ano nem cheiro de arte nas colectividades de bairro, nas casas do povo das freguesias rurais, onde o único cheiro que se propaga diariamente é o do empobrecimento geral.

e que relação se pode esperar que exista entre uma população e os produtos artísticos, quando cada vez mais se difunde a ideia de que arte é fama, o artista é um ídolo, de preferência bom para comer?

e também: cada vez me interessa menos assistir ao espectáculo do virtuoso, se isso não representa o topo de uma pirâmide que seria uma sociedade onde todos vivem, aprendem e discutem a arte desde a infância.

e ainda: cada vez me enjoa mais o teatro feito da grande dramatúrgia, seja ela clássica ou contemporânea, se o facto de ela existir ecenada hoje não representa o cume da montanha de gente a viver o teatro como expressão de si própria.

talvez por isto tudo chegue a pensar que antes o évoramoda ao vivárua, porque nem um nem outro fazem o trabalho essencial de desenvolvimento cultural, com uma clara desvantagem para o vivárua, que poderá mais facilmente causar a ilusão de que sim...
João Sérgio Palma

sexta-feira, janeiro 16, 2004

PERIGO! ATENÇÃO LUSITOS: 

a notícia foi dada de forma brutal. o jornalista, implacável, descreve o acontecimento com a frieza da distância. sem compaixão pelos leitores, sem anuncio prévio. a verdade apresentada nua e crua.

assim, no público de hoje podemos ler a revelação das revelações:

sílvio berlusconi fez uma cirurgia ao “papos” nos olhos.

já toda a terra sabe do acontecimento. aguardam-se novos desenvolvimentos. entretanto g.w. bush anunciou que irá mandar tropas a itália para escoltar o primeiro-ministro ilatiano de regresso a casa. é já do conhecimento geral que está em curso um plano de assassinato pelas palavras, da autoria do conhecido terrorista e prémio nobel da literatura, dario fo.

durão barroso também já anunciou que irá ponderar sobre a decisão de participar no contingente “aliado” com vista à captura do ditador dario fo. entretanto tropas britânicas treinadas no nepal, estão a montar uma operação de buscas em todos os cacifos de escolas, bibliotecas e casas com livros, preparando-se para capturar o perigoso escritor.

crescem as suspeitas de que tony blair encontrou no bolso esquerdo do seu casaco de dormir uma esferográfica da extinta marca molin, com que, alegadamente, dario fo terá escrito um poema há 20 anos. todos os homens de bem que deram com uma molin de dario fo acabaram os seus dias em clínicas de beleza. é de prever que depois de berlusconi será a vez de blair fazer uma lipo aspiração. as consequência dos actos terroristas foram já consideradas mais perigosas que os atentados com gás sarim no metropolitano de tóquio.

salve-se quem puder!

ÚLTIMA HORA!

soube-se entretanto que a rede de dario fo mantém ligações com filipe crawford. por se encontrarem muito perto do quartel general de crawford, roseta mandou evacuar o museu de arte antiga. a gnr fez já deslocar meio batalhão e três cães de prevenção para a casa da comédia.



quinta-feira, janeiro 15, 2004

HORA DO DIABO 57 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

acredito profundamente no poder da criatividade, na maneira como a arte nos pode revolucionar, transformar. talvez poucas pessoas tenham noção do que significa escrever para quem escreve, pintar para quem pinta, compor para quem compõe. a ideia de divertimento que a maioria das pessoas tem é tão reduzida, tão medíocre. se todos pudessem experimentar no seu quotidiano essa força arrebatadora que é o desafio criador, essa extraordinária força que nos eleva e nos torna melhores, como tudo seria diferente.

tenho esperança que um dia a humanidade tenha essa possibilidade, esse encontro com o melhor que há em si e, por fim, possa descobrir que tem nas suas mãos a mais maravilhosa das ferramentas: a faculdade da comunicação. o esforço que as pessoas fazem para acreditar que se estão a divertir é de tal forma deprimente que as esgota para um encontro profundo consigo mesmas. passadas as juventudes, passadas as etílicas crises de meia idade, o que ficará de todas as vidas desperdiçadas em fugazes momentos de fuga para a frente, de cabeças enterradas na areia? pouco. os homens e as mulheres têm-se maltratado demasiado, tão desesperados, tão mortais…

se observassem a alegria, a poderosa energia que revelam os olhos de uma criança que desenha, de um adulto que fotografa, de um velho que escreve. que temos então a perder para não atacarmos de vez esta destruidora renuncia à disponibilidade para o encontro com a beleza?




HORA DA FÉNIX 46 

O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Fotografias, Desenhos e Pinturas de THOMAS EAKINS

Fotografias de LARRY CLARK

HORA DO DIABO 56 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Palavras para quê:

Público de hoje,

Dario Fo Acusado de Difamação
Quinta-feira, 15 de Janeiro de 2004

"O prémio Nobel da Literatura Dario Fo é acusado de difamação pelo senador Marcello Dell?Utri, membro do partido Forza Italia, do primeiro-ministro Silvio Berlusconi. O senador, que exige um milhão de euros de indemnização, acusa o escritor de fazer "ataques pessoais infundados" na peça satírica "L'Anomalo Bicefalo". Na peça, neste momento em cena em Itália, Dario Fo faz o papel de um primeiro-ministro que reinterpreta as leis a seu favor e detém o monopólio dos media, censurando as críticas ao seu governo - numa clara alusão a Silvio Berlusconi, actual primeiro-ministro italiano. Na peça, o escritor faz uma referência a Marcello Dell?Utri acusando-o de ter ligações com a máfia e com o tráfico de droga."

terça-feira, janeiro 13, 2004

HORA DO DIABO 55 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

ainda tenho o estômago às voltas com o conteúdo de uma carta, escrita por um auto intitulado fascista, que vital moreira divulga no “causa nossa”.

quem a quiser ler faça o favor de visitar o “causa nossa” clicando aqui.

o que salta à vista no discurso dos fascistas é a violência e o ódio que os move. muito além das suas ditas convicções, os fascistas são máquinas de destruição. esse sinal beligerante é a diferença que os torna perigosos e desprezíveis. por mais que tentem, nunca poderão ter o perdão da história, pois nem uma só pura intenção pode ser registada nas suas palavras, e acções. entre a esquerda e a direita, o facto é que a direita é tendencialmente fascista, e o fascismo é, sempre, uma arma de arremesso contra a humanidade.

esta carta que o causa nossa hoje divulgou, é bem prova de como a luta contra o fascismo é uma prioridade. assim como a luta anti-militarista, como a luta pelos direitos humanos, pelo socialismo.

o ódio com que este homem se dirigiu a vital moreira é inequívoco, se esse ser tivesse poder para isso, certamente condenaria v.m. ao mais violento destino. o contrário é impensável, aliás, a delicadeza com que, apesar de tudo, v.m. trata o senhor, demostra bem a diferença moral entre ambos. como é evidente, como salta pelos olhos dentro, qualquer antigo militante do pcp, apesar de todos os erros graves, alguns terríveis, que o pcp cometeu, qualquer actual militante do pcp, ou qualquer pessoa que seja que se mova pelo progresso da humanidade, tem no mais errado dos seus actos a dignidade que seres como este senhor, não têm, muito menos quando cospem o fogo da sua raiva destruidora.






HORA DO DIABO 54 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

…começou o dia, mais valia ter começado mais tarde. mais valia ter acordado aí pelas seis da tarde. vale-me a recordação da noite de ontem, ao som da voz de peter sellers dizendo canções dos beatles e a memória de uma gata bebé, a alice, ronronando noite dentro…

…as entrevistas da antena dois são uma verdadeira anedota. reduzem as pessoas à mais insignificante merduça. abaixo as entrevistas da antena dois…

segunda-feira, janeiro 12, 2004

HORA DA FÉNIX 45 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

"Estendeu os braços carinhosamente e avançou, de mãos abertas e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu de terem muitos meninos e não serem felizes.
É o que faz a miopia."

Mestre Mário Henrique Leiria

domingo, janeiro 11, 2004

WW, de um e-mail 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

A partir de Paumanok

40
(...)
E ofereço tudo o que tenho.
Não pergunto quem és, para mim isso não é importante,
Não podes fazer nada, não podes ser mais do que aquilo que te dou.
Inclino-me perante quem moureja nos campos de algodão e perante
quem limpa as latrinas,
Na sua face direita deixo um beijo familiar,
E do fundo da minha alma juro que jamais o renegarei.

Nas mulheres que concebem concebo crianças mais robustas e aptas,
(Neste dia lanço as sementes de repúblicas mais arrogantes).
Àquele que morre acudo à sua porta e rodo a maçaneta,
Atiro os cobertores para os pés da cama,
Despeço o médico e o padre.

Agarro o homem que desfalece e levanto-o com irresistível vontade,
Ó desesperado, aqui tens a minha nuca,
Por Deus, não te vás abaixo!, apoia-te em mim com todo o peso.
Dilato-te com um sopro tremendo, dou-te alento,
Encho todos os quartos da casa com um exército armado,
Meus amantes, vós que do túmulo me enganam.

Dorme... eu e ele velaremos toda a noite,
Nem dúvida nem morte ousarão tocar-te com um dedo,
Abracei-te e a partir de agora pertences-me,
E quando pela manhã te levantares verás que é verdade o que te digo.

(...)

Walt Whitman

HORA DO DIABO 53 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

Janela Matinal
“Do fundo do quarto, vista da cama, era só palidez a separar,
a janela estelar cedendo à janela possessiva
que proclama o dia.
Mas ei-la que acorre, que se debruça e não se vai:
Depois do abandono da noite, também esta nova juventude celeste
por sua vez consente.

No céu matinal, não há nada que a terna amante contemple,
a não ser ele próprio, esse céu, exemplo imenso
de profundidade e de eminência!
Salvo as pombas que traçam no ar arenas redondas
onde o voo, por suaves curvas iluminado, festeja
a doçura e o seu retorno.”
Rainer Maria Rilke

sábado, janeiro 10, 2004

HORA DA FÉNIX 44 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

CLAVE DE SOL
"Gijón en el País de los Títeres"

Exposição de Mestre Osvaldo Maggi, Sevilha, Novembro e Dezembro de 2003

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

"Nací en 1943 en la ciudad de Santa Fe, Argentina. Sobrevivi al sistema educativo, a la dictadura militar y a un ataque cardíaco. Mis barbas blancas son testemonio de casi cuarenta años de andanzas y peripecias. Puedo ser catalogado como artista ambulante, vagabundo, nómada, caminante, peregrino, dibujante de soles. Ya me llamaron cosas peores. El horóscopo chino me identifica como NUBE. Así fue que el viento me llevó por Argentina, Colombia, Venezuela, Portugal, Italia, Inglaterra y España. Ejercí com la mayor dignidad posible el oficio de mimo-clown, compuse canciones, integré esporádicamente diversos grupos de teatro, he creado mis propios espectáculos unipersonales, he creado y dirigido espectáculos para otros, realicé talleres de construcción de títeres, impartí cursos de entrenamiento expresivo... Y tantas cosas que ya... ni me acuerdo."
Osvaldo Maggi

Eduardo Guerra Carneiro - O Poeta Que Se Atirou para o Céu  

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

não gosto do batista-bastos. não gosto dos livros, dos artigos, das entrevistas. das intervenções televisivas, ainda menos. no entanto, não posso deixar de respeitar a sua dignidade como jornalista e de me comover com a maneira como é sempre leal às suas amizades. isso é o que realmente importa.

a prova disso é o extraordinário texto que publicou hoje no mil folhas, "público", sobre o eduardo guerra carneiro.

obrigada.

“No cemitério dos Olivais estavam aqueles que lá deviam estar. Gente que tinha experimentado a tristeza de viver, na alegria esfuziante das convivências e das irmandades. Gente ardida, indócil, iluminada pela saudade do heroísmo impossível. Gente da noite, do úisque, do silencio e da repulsa. Gente certamente imperfeita, mas certamente impoluta, instigada pelo ânimo cordial que subvenciona a mais imperiosa das exigências: a das amizades intactas.”
Batista-Bastos

sexta-feira, janeiro 09, 2004

HORA DO DIABO 52 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

...quantas mulheres estão nesta estrada? vinte? vinte cinco? os carros param uns atrás dos outros e compram flores. ramos enormes de cravos e margaridas e malmequeres. mal-me-queres. são dez da noite e os carros continuam a parar à beira das mulheres para comprar flores. a mais velha vende túlipas. é a única que vende túlipas. uma, com um largo vestido cor-de-rosa, embrulha bolbos numas pratas de cozinha. há uma hora que aqui estou a vê-las vender. quando daqui sair ainda elas cá vão ficar. ficarão enquanto houver flores...

...o gato na relva e o homem ao lado. o homem dá fígado ao gato. o gato come o fígado, o homem limpa a mão a um guardanapo, o gato mia, o homem vai para a paragem do autocarro. isto todas as tardes, isto todas as tardes de todos os dias. homem, gato, fígado, guardanapo. todos os minutos de uma relação ardente num canto do jardim...

HORA DA FÉNIX 43 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Saúdo com felicidade, o regresso do João à publicação de textos. Depois de tanto tempo - recordo os seus artigos no "Giraldo" - cá o temos outra vez. Que seja por muito tempo, assim ele queira.

às vezes ponho-me a pensar... por João Sérgio Palma 

às vezes ponho-me a pensar...

quando vejo passar um autocolante “ORGULHO DE SER ALENTEJANO” colado nas traseiras de mais um automóvel, penso na pessoa que o colou: o que a moveu? Que interesse sentiu? A felicidade que experimentou...

O orgulho... ao longo da vida sentimo-lo, quando a nossa mãe é a maior, quando somos capazes pela primeira vez, quando vemos os nossos filhos a serem-no. Mas é como a Coca-Cola: sabe bem mas não alimenta e em excesso (incha o ego) fura a tripa.

E depois ele há-o às carradas: o americano, o católico romano, o da pátria de Camões, o do bairro, o da rua, o dos sapatos novos. Se tivéssemos que colar autocolantes por todos os que nos assolam...

Voltando a esta coisa que é ter ORGULHO POR TER NASCIDO DO LADO ESQUERDO DUM RIO, até se torna compreensível quando esse lado, à esquerda de quem desliza pela corrente, é pobre, abusado, devastado e onde a auto-estima dos indígenas às vezes toca o sub-solo. Talvez seja uma boa maneira de a elevar.

Porque no fundo este autocolante é só uma outra forma de dizer: “Não tenho vergonha de ser personagem de anedota!”

Bem, para simplificar, e porque as bandeiras do orgulho de uns fazem surgir e irritam o orgulho nos outros, atrevia-me a sugerir alternativas mais light: é tão giro haver alentejanos / ser alentejano é ser mais pobre / ser humano, ser americano ou ser alentejano eis a questão / se um alentejano incomoda muita gente... / alentejanos de todos os países, uní-vos!

João Sérgio Palma

HORA DO DIABO 51 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

...quase no fim da noite recuso-me a adormecer. tomei cafés a mais, que estupidez e fumei demais, agora estou às voltas debaixo de um tiroteio de pensamentos, de um bombardeamento de imagens, setas entre a cabeça e o corpo. escorro suor e sal. vou até à televisão, dou com um filme, a falha, falha. ligo o rádio, é pequeno a pilhas, portátil, não se consegue sintonizar quase nada, só se apanha uma rádio, a miramar, da igreja universal do reino de deus, deixo-me estar a ouvir a sessão da madrugada. alguns vinte minutos da profecia de daniel. quem era o daniel? como conseguiu ser publicado na bíblia? a bíblia é uma revista não é? acho que já a vi à venda no king ...

...passou a meia noite. já é ano novo. aleluia senhor por me teres tirado mais um ano à vida que tinha para viver. obrigado senhor. obrigado. na rua passou uma ambulância, das boas, das que têm um tinóni electrónico, dos bons, dos que gritam alto a finados. deve ir para o instituto de medicina legal. talvez não, talvez esteja a ser pessimista, talvez vá para s. josé. passam aqui muitas ambulâncias para s. josé. um s. josé de azulejos, pão e vinho sobre a mesa. mas não, esta não, esta vai depositar cadáver. vai entregar ossos à masmorra...

...ainda esta uma tasca aberta. a que cheira a mulheres podres. a que cheira a mijo de rato. a tasca que cheira a caracóis. os caracóis cheiram a mijo de gato. cheira muito a mijo ali naquela tasca. as mulheres que lá param devem ir atraídas pela clientela mijona...

...a gata do segundo direito já pariu, mas a felina continua a gritar como se ainda estivesse com cio. não se percebe, porque grita ainda a bicha, já teve homem, já fecundou, já pariu e continua a pedinchar qualquer coisa. a vizinha que manda nela também grita de noite, toda a noite, na cama. mas o que é que se passa com aquelas duas? o que lhes falta? será que a vizinha também já pariu? deve ser lá coisa delas. assuntos de vizinhas...

...ando à procura de livros por todo o lado mas nestas celas novas não há livros velhos deixados pelos outros presos. só jornais e revistas indecentes. i-n-d-e-c-e-n-t-e-s. os jornais têm mais de um ano. mas podiam ser d’oje. d-e_h-o-j-e...

...caiu um homem, tropeçou nos restos dos carris do eléctrico. macaquinho, macaquinho, és tão lindinho, és tão lindinho...

...morre a noite e dela o que se salvará?

quinta-feira, janeiro 08, 2004

AINDA VITOR SÁ 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Sobre a carta a Vital Moreira que aqui deixei sobre a morte de Vitor Sá, a resposta no Causa Nossa

"Um breve comentário.
Como se sabe, a opinião sobre as pessoas é sempre parcelar e subjectiva. Mas eu conheci de perto o Vítor Sá, embora efemeramente, ao contrário de JPP, que além disso não conseguiu resistir a reflectir a sua animosidade anti-PCP. Mais importantes dos que as opiniões são os factos. E no caso do VS, eles são indiscutíveis e impressionantes; o próprio Pacheco Pereira os refere extensamente na biografia que fornece de VS nos "Estudos sobre o comunismo" (que eu mencio no meu post). O mesmo sucede com a sua abundante obra de investigador, que está publicada.
Por isso, podendo ser naturalmente divergentes as opiniões pessoais, não me parece, porém, ajustado dizer que "ninguém sabe" o que ficará da participação política e profissional do VS.

2. Achegas e correcções biográficas
De uma carta de Marcos Sá (neto de VS), dirigida a terceira pessoa, permito-me respigar alguns relevantes dados biográficos do recém-falecido:

«(...) Em 1942 iniciou a luta contra o regime salazarista. Os Democratas de Braga "um núcleo de resistência e formação ideológica", do qual faziam parte Victor Sá, Armando Bacelar, Lino Lima, Francisco Salgado Zenha, Flávio Martins, Humberto Soeiro (entre outros), marcou a luta nacional contra o regime fascista. O documento dirigido "Aos Portugueses" e assinado por 100 democratas em 31 de Janeiro de 1959, que terminava dizendo a Salazar para "abandonar o poder" foi um dos documentos mais importantes da oposição ao regime fascista. O documento foi projectado e redigido por Lino Lima e Victor de Sá. Depois de impresso, foram distribuídos por diversas regiões do País, do Minho ao Algarve. (...)
Victor Sá filia-se no PCP em 1979.
Ingressa na Faculdade de Letras do Porto como professor auxiliar, estando na origem da criação do centro de História daquela Universidade e da revista História. Para além da actividade docente (também deu aulas na Univerisidade do Minho) continua a investigar e publicar intensamente, dedicando-lhe a editora Livros Horizonte uma colecção "Obras de Victor Sá". Mantém-se politicamente activo, sendo por duas vezes eleito para a Assembleia da República (1979 e 1980), como cabeça de lista da APU e em 1985 é eleito Presidente da Assembleia Municipal de Sintra. Jubila-se em 1991, depois de em 1990 ter recebido a Ordem da Liberdade por Mário Soares, ingressando então na Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia. Em 1991 formaliza a doação do seu arquivo de documentação à Biblioteca Pública de Braga/Universidade do Minho e contribui generosamente para a instutuição de um prémio de História Contemporânea, destinado a jovens investigadores. Recebeu por último a medalha de ouro da cidade de Braga e a Universidade Lusófona atribuiu-lhe o seu nome - Prof. Victor Sá – à Biblioteca que ajudou a criar.»"

Vital Moreira

quarta-feira, janeiro 07, 2004

AMANHÃ REGRESSO 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

segunda-feira, janeiro 05, 2004

HORA DO DIABO 50 - Culturazinha 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

nove e tal da noite, um frio de rachar em évora. nas escadas da igreja de santo antão, na praça do giraldo, alguma cabecinha plantou uma vintena de alentejanos a cantar em coro. à sua frente, meia dúzia de familiares dos cantores aguentava sem arredar pé. no resto da praça não se encontrava vivalma.

os desgraçados, com o frio, guinchavam, desafinavam, batiam com os pezinhos no chão… um martírio. só apetecia gritar por alguém que pusesse termo àquele sofrimento. talvez os senhores do 112, depois de recolherem os corpos enregelados, pudessem explicar às mentes organizadoras de tal tortura que não vale a pena assassinar corais para mostrar serviço.

HORA DA FÉNIX 42 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Diário de Imagens "Saudades de Antero"

onde estás sorriso das manhãs? onde estão margens de um rio?
sabem que évora tem um rio, um rio seco, um rio onde não marcham correntes nem contra-conrrentes. um rio sem marés nem pontes. ainda assim já ali se encontraram animais pré-históricos, vivos. sim, um crocodilo. um crocodilo de verdade. com dentes e coração, com cauda e tristezas. um crocodilo australiano. sete metros e tal de animal. fora abandonado por um circo, o croco estava doente, pensavam que ia morrer, diziam os “tratadores”, os carrascos. mas o animal sobreviveu num rio sem água, num rio de lixo e moscas febris.

no fundo, todos nos sentimos assim nesta cidade: crocodilos num rio sem água doce. dizem-me para quê sofrer se há fontes. há fontes sim, de pedra mármore e água canalizada. “penteiam-nos os crânios ermos com as cabeleiras dos avós ”*.

onde estão madrugadas de oração e nevoeiro? onde estás évora vista de lisboa, serena e branca?

* natália correia

domingo, janeiro 04, 2004

HORA DO DIABO 49 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Pai: Olha hoje não há nuvens...
Filho: pois não, só que há um problema, quando não há nuvens os deuses caem!

HORA DA FÉNIX 41 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Recebi, "NIRVANA", por OLSA

Completos os ritos que celebravam a abertura do novo ciclo, ali fiquei. Ritos… ocultos? Sim poderei chamá-los assim. Mas apenas ocultos, porque ninguém mais os conhece a não ser eu; já que a veneração de símbolos está na natureza do Homem, então porque não adorar algo criado por nós mesmos, à nossa imagem e medida!?
Daquele modo, ali estava eu, passando da quinta hora daquele novo ano. Ao meu lado esquerdo, mais longe, a minha única companhia: o meu gato, cinzento… não de cor, mas por tal como eu ter em si o preto e o branco. Estava sentado, na sua pose imperial, olhando o vazio à sua frente, sem miar nada; uma estátua dalguma divindade egípcia tornada enfim carne!
Um véu cobria as estrelas, tingindo-se numa tonalidade nunca antes viste. Um pigmento inédito, algures entre o laranja e o roxo.
Esperava ansioso para celebrar a luz do novo dia. O «um» daquele ano que era trisexto, e tão especial para mim, pois de cem era um quarto: a antevéspera para o festejo da raiz do aquário desde sempre cúbico.
No entanto, as horas passavam, e nada se movia. Silêncio; quietude. Só eu percorrendo aquelas ruas vazias, só eu caminhando por aquele cimento e pedrinhas. Eu a única alma desperta, sob um céu imóvel.
Era como se o Sol se estivesse esquecido de acordar, tendo a Terra atravessado aquele ponto imaginário na sua órbita que marca a cada 365,25 dias um novo recomeçar, um baptismo involuntário para toda a Humanidade.
Seria possível? Ri-me como louco, a contemplar aquela possibilidade. Poderia a manhã nunca chegar naquela madrugada sem fim!? Seria então a derradeira testemunha daquele fenómeno bizarro, todos os outros dormiriam em suas vivendas apagadas… para sempre entregues nos braços aconchegantes de Morfeu, essa obscura entidade divina guardiã do paraíso e nossa tentadora.
O Tempo parara, sabia-o agora. Nada havia para além de mim, estava só, era tudo meu. Sentia-me eufórico, andando para frente e para trás naquele deserto de muros brancos. Por fim o nirvana que sempre desejei. Sem mais ninguém, eu ali era deus antes de criar.
Liberdade! Podia fazer tudo, podia fazer nada. Gritar, cantar, chorar, amar, morrer; era livre, era real. Eu era a única coisa real ali, naquele momento estagnado, eu era a única realidade; estava orgulhoso de mim, por fim satisfeito! Feliz.
Criei poemas no vento inexistente, canções demasiado virtuosas para a voz dos anjos, pintei telas de vazio. Apaixonei-me por quem havia desconhecido, e consenti-o! Se o quisesse podia ganhar asas e voar, regressar talvez a casa… sumir no nada; mas contentava-me apenas em correr tresloucado naquela madrugada infindável. Correr sem pudor, de alma nua.
Por fim, algo se moveu e se rasgou no firmamento, quebrando o encanto. Uma estrela surgiu tímida, envolta em negrume; e brilhou. O sortilégio havia sido desfeito, a normalidade voltara para me lembrara de tudo o que eu ainda não fizera. Sorri, de novo humilde, mas de alma satisfeita. Eu vira o tesouro, pelo qual era a minha demanda; provara um pedacinho do fruto que me fora prometido.
E quando os primeiros raios de sol me bateram na pele, em êxtase, gritei bem alto para todo o mundo: «Bom dia!!!».


OLSA

sábado, janeiro 03, 2004

HORA DO DIABO 48 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

Caro Vital Moreira,

Esta coisa de opinar...

Olhando para o seu post sobre a morte do Vítor de Sá e para o post do Pacheco Pereira no "Abrupto", encontramos visões tão diversas, que saber pelas vossas opiniões quem foi V. de S., é pura coincidência. No entanto, é isso que é fantástico na vida, não haver "verdades", as coisas são mesmo como nós as vemos. O que ficará para a história da resistência ao fascismo, do 25 de Abril, do 25 de Novembro e por aí a fora, assim como da participação política e profissional do Vítor de Sá, realmente ninguém sabe. E isso é bom. Muito bom.
Irónico desfecho historicista da vida de um historiador.
Um abraço.
FMG

CAUSA NOSSA
"Morreu Vítor de Sá. Bem antes de o conhecer a ele, conheci a sua fama de militante oposicionista e perseguido político, bem como a sua obra sobre a história do século XIX, ainda nos anos 60. Depois encontrámo-nos nas lides da oposição democrática ao Estado Novo e, mais tarde, no PCP. Apareceu um dia na Assembleia da República (onde eu já era "sénior") como deputado eleito por Braga. Em São Bento era um cavalheiro, discreto e tímido, quase temeroso de se fazer notar. Absorvidos na azáfama parlamentar não tivemos oportunidade de privar muito, fora uns almoços de circunstância e algumas viagens de comboio juntos às 6ªs feiras, de regresso da semana parlamentar. De resto, a sua passagem parlamentar foi efémera (1979-80). Dedicou-se depois à investigação e docência universitária. Anos mais tarde fui assistir à Universidade do Porto à sua última aula como professor. Não voltei a encontrá-lo.
Com a sua morte desapareceu um resistente anti-salazarista como poucos, um universitário zeloso que deixa obra de mérito e sobretudo uma estimável pessoa."

Vital Moreira

ABRUPTO
"[...] Eu também estive neste ofício dos mortos, a escrever uma nota necrológica sobre Victor Sá para os Estudos sobre Comunismo. Com uma diferença: no pouco que conheci pessoalmente de Victor Sá, nunca tive a menor simpatia pelo homem. Tenho dele uma impressão de arrogância dogmática e sectária, muito comum nos comunistas provincianos do Minho, de Famalicão, de Braga, mesmo do Porto. Acresce que ele escrevia sobre o movimento operário, e a mesma ortodoxia agressiva perpassava nos textos. Depois do 25 de Abril, quando tiveram algum poder, eram intransigentes e bem pouco “democratas”.

No entanto, quando se faz de Deus e se escrevem estes balanços de vida, fica uma sensação contraditória sobre o homem. Ele teve uma vida que a PIDE, e essa personagem sinistra que era Santos da Cunha, se encarregaram de estragar com afã. E ele voltava ao mesmo, a fazer as mesmas coisas, com uma persistência que só uma fé poderosa e moderna como era o comunismo explicava. Ainda hoje não sei como é que nesta rectidão, motivada pelas piores ideias, se define uma moral, se há uma moral. Garanto-vos que, visto de perto, não é simples."

Pacheco Pereira

sexta-feira, janeiro 02, 2004

HORA DO DIABO 47 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

ABRIL EM MAIO CICLO JACQUES PRÉVERT GRUPO OUTUBRO
DE 6 DEZEMBRO 2003 A 1 DE FEVEREIRO 2004


HISTÓRIAS. EXPOSIÇÃO. CONVERSAS. ATELIERS. CANÇÕES. FILMES. POEMAS. DEBATES. COLAGENS. EDIÇÕES. LIVROS.

TRADUÇÕES. LEITURAS. OBJECTOS PARA GRANDES E PEQUENOS E UMA FEIRA CHAMADA PRÉVERT

ABRIL EM MAIO

À ABRIL EM MAIO não interessa "o cultural" em que a cultura se transformou, mas a cultura enquanto "conjunto de saberes, de saberes-fazer e de saberes-viver, fundado numa prática colectiva em que os indivíduos e os grupos são actores da sua própria existência".

À ABRIL EM MAIO interessam, sim, os produtos culturais (e muitos deles são arte) que, pelo modo como são produzidos e reproduzidos e o valor de uso que podem ter, resistem à instrumentalização política e económica. Aqueles que, de uma maneira ou de outra veiculem ideais de solidariedade e cooperação, visando a transformação, e que combatam o autoritarismo, a ideologia competitiva, o discurso dominante e os ditames do mercado.

À ABRIL EM MAIO interessa o trabalho dos intelectuais e dos artistas que, em vez de aceitarem, aprovarem e aplaudirem a ordem estabelecida, a contestam, a criticam e tentam combatê-la.


Molloy, Samuel Beckett 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

"… you would do better, at least no worse, to obliterate texts than to blacken margins, to fill in the holes of words till all is blank and flat and the whole ghastly business looks like what it is, senseless, speechless, issueless misery."

Molloy, Samuel Beckett

Amanhecer 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

... voltou o sol...

quinta-feira, janeiro 01, 2004

HORA DO DIABO 46, Lisboa 

"O fumo do meu lar, nas tardes nervosas de Outono, parece animado duma louca inspiração escultora de anjos e fantasmas." - Teixeira de Pascoaes

... dias de inverno...

... não me sinto a começar um ano. não sinto passagem nenhuma. é mais um dia e pronto. claro que cada ciclo solar é uma revelação. claro que estamos a morrer e a nascer. já sabemos isso. mas um ano aqui, outro na china, outro em marrocos ...

... a chuva pintou os telhados de lisboa com um vermelho bonito, as ruas estão livres da agitação costumeira, há alguns cafés abertos, isto sim é relevante, tudo o mais ...

... sabe bem levantar cedo neste dia, andar ao contrário dos outros, sair à rua quando todos estão a regressar, saborear os momentos de solidão matinal nas ruas desertas de uma capital alcoolizada ...

...bom dia manhã vermelha!

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