<$BlogRSDUrl$>

segunda-feira, janeiro 26, 2004

HORA DO DIABO 62 

a escrita é uma arma/eu bem dizia/tudo depende da bala/e da pontaria/tudo depende da raiva/e da alegria/a escrita é uma arma/de pontaria/há quem escreva por interesse/há quem escreva por escrever/há quem faça profissão de combater a escrever - a partir de poema de José Mário Branco

a morte depois de um sorriso.

“O húngaro Miklos Féher morreu, este domingo, no Hospital de Guimarães, após ter caído inanimado no fim do V. Guimarães-Benfica. O jogador foi dado como morto às 23:10. O hospital de Guimarães e o Benfica confirmaram o falecimento do jogador.” – Fonte TSF - On Line

todas as noites, quando me deito, ligo o rádio sintonizado na tsf. não gosto de futebol, não acompanho nada que lhe diga respeito. ontem nem sequer sabia que o benfica estava a jogar. apaguei a luz encostei a cabeça na almofada e liguei o rádio-despertador. dei com uma transmissão emotiva em tom trágico. estava a ser transmitida, em directo, a morte do jogador húngaro féher, que eu não fazia a mínima ideia de quem fosse.

agora que se fala tanto nos abusos da comunicação social, da forma impiedosa como os jornalistas utilizam as tragédias para conquistar audiências, em que até se põe em causa a liberdade de imprensa, a tsf é bem o exemplo de como se pode tratar um caso trágico como este com irrepreensiva dignidade. o jornalista que estava a coordenar a transmissão, não o sei identificar, foi sempre de uma delicadeza, de um profissionalismo e respeito absoluto, tanto que aquele momento triste se tornou numa verdadeira lição de jornalismo.

a consternação que a morte súbita de féher gerou, é um assunto que nada tem a ver com o futebol. o que aqui está em causa é o facto de hoje em dia assistirmos a tudo em directo, guerras, desastres, mortes, e de não sabermos lidar com isso. não sei se alguma vez saberemos.

ao presenciarmos a morte de um jovem, um jovem saudável de 24 anos, homem que, ao que parece, era pacífico e cordato, apesar de uma série de más-vontades a foi sujeito durante a sua carreira portuguesa.

o futebol deixou há muito de ser terreno de bom senso. tornou-se um espaço de selvajaria, de disputas de poder, de escândalos financeiros, fraudes. o futebol já tem pouco de jogo e muito de máfia. quando, em directo, pela rádio ou pela televisão, assistimos à tragédia da morte do jogador, o futebol tornou-se uma coisa humana. foi como se de repente todos tomassem consciência da mortalidade. o facto é que apesar desta sociedade nos vender a eternidade dada pela beleza da juventude, a eternidade do sucesso, continuamos tão mortais como sempre e tão incapazes de lidar com a morte como sempre.

para a esmagadora maioria de nós, morrer é assunto que deitamos para trás das costas. é coisa que só acontece aos outros. é assunto imundo. não queremos assumir que a morte faz parte da existência. e se por um momento esse assunto nos atormenta, vamos a correr a um hipermercado encher a cabeça com promoções e logo adiamos o problema. no entanto, a morte existe. não há como a banir. momentos como os que ontem se viveram trazem-nos a noção dessa realidade, que poderia não ser trágica se culturalmente soubéssemos trabalhar essa inevitabilidade, como um processo natural da nossa condição humana. mas como essa consciência do nosso verdadeiro ser ainda está longe, tão imensamente longe, de ser uma realidade, ver morrer um homem que detinha todas as anunciadas marcas da eternidade da sociedade em que vivemos - famoso, bem-sucedido, jovem, etc. – fez, num segundo, ruir todas as ilusões de que a morte é para os outros e que só acontece aos deserdados da vida.

no momento em que féher caiu para sempre da vida, milhares, milhões, de seres humanos deixavam-nos nas condições mais tenebrosas de existências. mas esses, esses a quem a sociedade esqueceu, são os que morrem. para os senso-comum, só os desconhecidos morrem, os famosos, os belos, os ricos, são eternos. daí a desesperada tentação de ser assim, de um dia, ser-se igualmente belo, rico e famoso, em suma fugir da morte, nem que seja com infindáveis dívidas de cartão de crédito à porta do hiper-mercado mais próximo.

basta andar nas ruas de uma cidade para encontrar jovens, muito mais jovens que féher, a desfazerem-se com seringas enterradas no corpo, mulheres jovens, muito mais jovens que féher, a desfazerem-se com homens enterrados no corpo. experimentem “passear” pelo intendente, em lisboa, não terão dificuldade em se depararem com tal “espectáculo”. mas que importa? não são mortes dadas na televisão, nada sabemos dessas pessoas. há até quem ache que merecem que assim seja.

antes de cair no relvado do estádio de guimarães, féher esboçara uma sorriso ao árbitro quando este lhes mostrara um cartão amarelo num gesto de simpatia e fair-play. talvez no fundo de si, o jogador se estivesse a despedir da vida com um sorriso. talvez féher nos estivesse a ensinar a morrer, sorrindo à vida.



This page is powered by Blogger. Isn't yours?