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segunda-feira, janeiro 17, 2005

CAMPO DE OURIQUE-ÉVORA-LISBOA-NOVEMBROS 

évora, cafetaria 35, 17 de Janeiro de 2005


para os que não sabem:

1.
campo de ourique não é lisboa/é em lisboa mas não é lisboa
2.
évora não é uma cidade/évora é só um município
3.
lisboa é uma cidade


nasci em campo de ourique como
o único ano da minha vida
e
m
que fui completamente
feliz aconteceu
entre o dia 25 de abril de
1974 e o dia 25 de novembro de 1975
o ano mais
completamente feliz da minha vida foi pass
ado em campo d
e ourique
(devo dizer que depois disso/depois d
a minha infância/tive momentos felizes
m
a
s
nunca mais voltei a ter dias
COMPLETAMENTE
felizes)
durante esse ano havia u
ma alegria que entrava pelos meus
pulmões a dentro/e eu
como
todas as pessoas
respirava a cada fracção de segundo
mas respirava ar de alegria
qualquer coisa no olhar das pessoas me fez acreditar que o resto
da minha vida
iria ser assim/durante aquilo a que as pessoas chamam PREC
eu acreditei
mesmo
que iria ser feliz
assim
o resto dos meus dias
nessa altura vivia na rua freitas gazul
e
os dias começavam com longos pequenos almoços nos
cafés
d
o
jardim da parada
onde toda a gente parava
havia uma paragem de táxis por exemplo
íamos ao antigo café “raiano” se queríamos encontrar funcionários do PCP
íamos ao café “o meu café” se queríamos dar com anarquistas a fazer discursos em voz alta em cima das mesas contra as eleições
às vezes
mas só às vezes
íamos ao “estrelas brilhantes” por causa das bolas de berlim
outras vezes mais raras tomava-se uma bica no café “ruacaná” onde se juntavam uns tipos notoriamente anti-stalinistas e foi aí que pela primeira vez ouvi um nome que iria mudar a minha vida muito tempo depois: trotsky compravam-se
lápis canetas cadernos ouvia-se música por uns auscultadores borrachas dossiers coisas de papelaria
na
“compasso”
livros de banda desenhada era no “rei dos livros” e almoçava-se em casa da minha
avó paterna
mulher de um velho maçon que se dava mal com toda a gente – o meu avô
isto ali na rua tenente ferreira durão
a ferreira borges
era a fronteira de campo de ourique
o limite desse lugar de velhos ulmeiros onde se gravavam
a canivete promessas de amor eterno
uma vez gravei com uma goiva de xilogravura do meu pai (que fino)
«morte ao elp e a quem o apoiar» o que deixou a minha mãe muito orgulhosa
sempre que saíamos de campo de ourique
dizia-se
vamos a lisboa
e íamos a lisboa todas as noites
reuniões em centros de trabalho do pc que nem imagino onde ficavam
colagens de cartazes noite dentro durante as quais alguém levava sempre comida
porradarias com tipos do MRPP comigo escondido dentro no renault 16 do meu pai...foi numa dessas noites que tive uma aparição
verdadeira
como aquelas de fátima
à séria
devo ter adormecido no carro e quando acordei estava deitado num outro sítio
mais precisamente
(vim depois a saber)
numa sala do centro de trabalho do pcp na lapa
sala essa que era toda
mas toda
chão
tecto
paredes
cadeiras
toda
pintada de vermelho e
mesmo à minha frente três gigantes caras
de marx engels e lenine
não sei porquê a fronha do engels era sempre mais manhosa
mas na altura aquilo pareceu-me absolutamente perfeito
belo
alegre

feliz

um dia veio novembro

os dias passaram a ter uma sombra
que ainda hoje transporto
chegou o pesadelo da escola/campo de ourique cada
vez menos/lisboa
cada vez mais
para afastar a sombra os meus dias eram agora passados a andar
andar
andar
andar
andar
dias a fio
dessas andanças nasceu um encanto uma espécie de abril
olhava as caras das pessoas na rua e na im
possibilidade de lhes conhecer os destinos e direcções
passei a inventar longuíssimas histórias que me acompanhavam
no andar
altura também em que descobri uns livros estranhos
numas livrarias estranhas que não falavam do costume
uns livros que a maior parte das vezes eram completamente quadrados
três ou quatro vezes rectangulares
pareciam copiados envés de impressos
nas suas capas desenhava-se sempre um enorme
&etc

um dia veio outro novembro diferente do primeiro mas um novembro

passaram-se muitas coisas estive noutros lugares
vim parar a évora
évora é uma espécie de pompeia habitada por napolitanos católicos e/ou comunistas do PCP ou ex-comunistas do PCP
e em évora tentei encontrar mais um pequenino abril
um abrilzinho
e encontrei-o primeiro na alegria do trabalho político de um partido ao qual aderira o PSR
com eles voltaram as reuniões onde se pensava pela nossa cabeça
os cartazes que se colavam não porque tinha de ser
mas porque era bom colar os cartazes que até éramos nós que os fazíamos
com a clandestina ajuda de um tipógrafo
da igreja católica – madrugadas de convicção
manhãs doces de acção no meio disso
formou-se um grupo de teatro
com amigos
lutando contra tudo e
contra todos (grupo esse que já não luta e teatro... mas conta à séria os tostões do ministério da cultura)
e o PSR foi-se em bloco para s.bento
em lisboa
lugar que nunca frequentei

um dia veio outro novembro diferente do primeiro diferente do segundo mas um novembro

mais uma vez as caminhadas sem fim
mais uma vez o olhar deitado aos rostos das pessoas que passavam
mas em évora caminhar é primeiro uma ilusão depois uma desilusão
olhamos os rostos e sabemos sempre quem são
para onde vão
o que estão ali a fazer
até o que estão a pensar
em évora até sabemos o que não queremos saber

um dia veio outro novembro diferente do primeiro diferente do segundo diferente do terceiro – o pior de todos os novembros

voltei a lisboa
em lisboa – mais perdido que nunca procurei um sítio
um lugar chamado “abril em maio”
sabia que lá estava uma pessoa com quem sempre senti uma estranha e infi
nita identificação
a eduarda dionísio
lembro-me de uma a vez a estar a ouvir
numa sessão qualquer de uma campanha eleitoral para umas eleições europeias – acho até que foram as primeiras – nessa altura no PSR ainda se pensava livremente
não era preciso pensar em bloco
e
ter sentido que da boca dela estavam a sair as palavras
que eu gostaria de dizer
é uma sensação horrível
é uma espécie de roubo sem delito
e por ela lá estar e pelo que lá se fazia
nesse abril em maio na “abril em maio”
fui ficando à procura de mim
a inventar rotas
a ver coisas
fazer outras
a reparar que havia coisas para reparar
mesmo em frente do olhos
bastava olhar

um dia veio um novembro que nem chega a ser um verdadeiro novembro

o novembro em que vivo agora
voltei às antigas caminhadas de lisboa
às histórias inventadas vindas dos rostos das pessoas com que me cruzo
e que agora escrevo sei lá porquê
sempre a tentar reinventar algum prazer nas horas
tentando ganhar resistência uma e outra vez


mas o que realmente gostava
o que queria mesmo para os meus dias
era poder voltar às manhãs
e às
noites de campo de ourique
nem que fosse só pelas bolas de berlim do “estrelas brilhantes”


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