<$BlogRSDUrl$>

domingo, fevereiro 08, 2004

HORA DO DIABO 66 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

para quando chegarem os trinta anos

cena 1

nessa noite, ao contrário do que era normal, tinha conseguido adormecer. uma estranha preocupação costumava levar-me o sono para o paradeiro desconhecido do meu irmão, na altura jovem – adolescente – militante da acção revolucionária armada, braço armado do partido comunista português.

acordei, ainda criança, com as vozes dos meus pais na sala. Escutavam, no velho rádio philips, uns estranhos comunicados. depois dessa madrugada não voltei a poder ser criança e raramente voltei a ver os meus pais juntos na sala. a revolução estava no ar e eu, que já tinha aprendido a ler, reparei nuns panfletos espalhados no chão do corredor encerado, impressos a tinta vermelha, um texto do mário henrique leiria. só soube uns anos mais tarde que se tratavam das palavras do mário henrique leiria, nessa madrugada, com muito esforço, apenas consegui decifrar três ou quatro palavras entre elas: “gin tónico – os textos proibidos”.

cena 2

os meus pais deram pela minha presença já tarde. tinha conseguido esconder-me atrás do sofá de napa, junto à minúscula televisão, perto da janela. o meu pai chorava. daí a uns minutos ouvia-se: “grândola vila morena” dum microfone que falava. “o povo é quem mais ordena”. foi a minha mãe que deu comigo. “lisboa capital, república popular”. e deu-me um beijo.

cena 3

tocou o telefone, e outra vez, e outra… outra… outra. uma dessas vezes era o meu irmão. “é hoje mãe, ainda nos vamos ver hoje”. implorei para falar com ele mas não deixaram, era perigoso saber-se que estavam crianças em casa. do mal o menos, o meu irmão estava vivo, tinha voz, lembrava-se do número de casa. era filho da madrugada, eu não sabia, mas pressenti que me estava para acontecer qualquer coisa. algo que não me deixaria voltar a ser menino.

cena 4

“mãe, olha que manhã não te consegues levantar cedo para me ir levar à escola”. pareceu-me que era bom argumento, talvez tudo voltasse à normalidade. não podia faltar à escola se não estivesse doente, era o que ela me costumava dizer. “hoje não vais à escola, anda cá”. explicou-me várias coisas. coisas de mais. estava muito emocionada, demasiado emocionada para se fazer entender. quase entrei em pânico. entrei em pânico. ela conta-me que vomitei, mas disso já não me lembro. ainda uma criança, a noite e eu. o meu pai não olhou para mim, mas disse “espero que não venham cá antes de me vestir”. ainda hoje não percebo porque não queria o meu pai ser encontrado em cuecas na noite de 24 para 25 de abril de 1974.

cena 5

nas duas horas seguintes a minha mãe queimou centenas de papeis na casa de banho. às 5.30 da manhã bateram à porta. o meu pai lá sabia, já vestido abriu a porta. era um tipo fardado. a minha mãe dizia-me que se algum dia batessem à porta durante a noite eu me fosse esconder no gavetão da cama. quando o tipo fardado bateu à porta eu fugi, como pude, tropecei nos livros, tropecei no cheiro a fogo vindo da casa de banho, enterrei-me no pequeno caixão de madeira da minha cama. o cão ficou a ganir do lado de fora. estúpido esconderijo para uma criança com um cão em casa. mas não me atrevi a sair de lá. a minha mãe tinha dito.
quando saí de lá já o meu pai não estava em casa. a minha mãe tinha ido resgatar o puto denunciado pelo cão. só voltei a ver o meu pai uns quinze dias depois.

cena 6

desde do dia do meu nascimento que a minha cama servia para esconder uns pequenos jornais em papel bíblia. umas quantas folhas de papel, ocultadas entre o lençol e o colchão. nessa madrugada a minha mãe desatou a queimar avantes, os papeis bíblia. pela primeira vez pediu-me ajuda. senti-me muito orgulhoso por poder ser útil. pelo menos era uma esperança de que não iria ficar sozinho, ou recambiado para a minha avó, o que aliás acabou por acontecer, mas só lá para as nove da manhã.

cena 7

a vizinha de baixo veio reclamar do cheiro, batia na porta aos pontapés. da conversa da minha mãe com a vizinha só retive uns “ó minha senhora vá à merda”. achei engraçado que a minha mãe continuasse a tratar a senhora por você ao mesmo tempo que a mandava à merda. foi extraordinário ouvir a minha mãe a mandar à merda uma vizinha a meio da noite, à porta da rua, ali mesmo, onde nunca se podia falar, nem alto nem baixo nem nada, só no elevador se podiam mover os lábios.

cena 8

seguiu-se um silencio assustador. a minha mãe sentada na sala, fumava olhando o tecto. eu vestido para sair agarrava a pequena mala da escola, sentei-me à mesa de jantar, junto ao rádio, agora desligado. a minha mãe interrompeu o silencio e voltou a conversar comigo. sentou-me no colo, abraçou-me e despejou uma quantidade de explicações. o facto é que tinha de ir para casa da minha avó. “não tenhas medo, é bom o que está a acontecer, a mãe depois explica-te tudo”.

cena 9

quando íamos a sair tocou outra vez o telefone. desta vez a minha mãe passou-mo:

- olha, vai para casa da avó como a mãe diz, logo à noite vou lá ver-te. prometo que vou. já não vou para guerra, já ninguém vai!
- mas ias para a guerra?
- sim.
- qual guerra?
- eu depois explico-te. o que interessa é que a partir de hoje já nada vai ser igual. é o dia mais feliz das nossas vidas!
- porquê?
- …
- vais mesmo ver-me a casa da avó?
- vou, prometo.

não chegou a ir. mas foi bom, tinha ouvido a voz do meu irmão, ele estava feliz. no fim dessa madrugada toda a gente parecia feliz. no fim dessa madrugada tivemos que nascer, que renascer, que reaprender. eu por mim nunca mais fiz outra coisa. levei o rádio philips, ainda o tenho. já não pia. já pouco falo com o meu irmão e a revolução… a revolução ficou congelada naquela sala, num país distante, entre cheiro a papeis queimados e cera no chão do corredor.

This page is powered by Blogger. Isn't yours?