quinta-feira, fevereiro 26, 2004
a reabilitação da arte como...
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
algumas notas, escritas como contributo para uma tese de doutoramento, na área do ensino do desenho, na licenciatura em arquitectura:
três condições me parecem necessárias para que seja possível reabilitar o desenho – aliás a arte – como elemento regenerador da condição humana:
. o quotidiano
. a visão clara
. a disponibilidade
I.
os construtores de catedrais da idade média produziram uma arquitectura sem equívocos. porquê? a resposta parece simples: cada obreiro executava a sua tarefa com profunda religiosidade. da mesma forma, cabe perguntar: haveria algum arquitecto egípcio, pintor, escultor, que ao trabalhar nas pirâmides, não acreditasse na eternidade espiritual, mesmo material, do seu faraó? parece obvio que não.
as pirâmides estão a escassos km de uma grande cidade, metropolitana, ruidosa, dir-se-ia, moderna. mas quem visita o cairo reterá os prédios da contemporaneidade? as auto-vias? não. são as pirâmides que continuam a tocar o coração dos viajantes. com efeito, é a profunda elevação espiritual que continua a tocar as pessoas, mesmo tantos séculos depois.
seríamos nós capazes de chorar e arrepiar com “a greve” de eisenstein, se não sentíssemos naqueles fotogramas mudos, o pulsar da genuína convicção marxista; o desenho de uma revolução a construir-se?
o que une através da história os maçons operativos de chartres, paris, évora, os arquitectos-sacerdotes do egipto, eisenstein, picasso... rimbaud? a visão clara do mundo fenomenológico e global percepção da transcendência.
II.
aquilo a que se convencionou chamar de “a idade do capitalismo tardio”, trouxe à humanidade uma preocupante substituição da sua natural capacidade de tratar os registos sensoriais. em rigor, o que vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos ou saboreamos, não é aquilo que verdadeiramente vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos ou saboreamos. deixámos de saber construir o nosso “museu imaginário(1)” agindo como se tivéssemos um chip de telemóvel, pré-carregado, instalado no nosso cérebro, alimentado por biliões de estímulos extra-sensoriais, que não sabemos tratar nem intelectualmente, nem emocionalmente, e que por isso mesmo, nos condicionam o intelecto, as emoções, a acção.
quer isto dizer que aquilo que pensamos e sentimos deixou de ser o resultado da nossa própria análise e criatividade, para pensarmos e sentirmos, segundo o padrão imposto por uma gestão massificada das emoções. vivemos o tempo da "maldição de midas(2)". tudo tornado ouro, impossibilita-nos sentir com o corpo.
assim, como podemos desenvolver a “visão clara”, almejar a clareza amorosa que a arte proporciona, que só a arte proporciona, a arte que é amor, e só o amor é arte? não podemos!
é mais uma vez necessária a reivindicação de um processo revolucionário, que descondicione a humanidade das grilhetas da “idade do sucesso”. mais uma vez a luta se centrará na liberdade essencial do ser humano, independentemente das suas condições de existência, desta vez a opressão é generalizada.
III.
agostinho da silva, falou-nos da possibilidade do desemprego em massa funcionar como agente “despertador” deste estado letárgico da humanidade. sem emprego, ao homem só restará o trabalho – o ócio – que é o contrário do negócio. sabemos que esta mudança, como todas, será dramática, catastrófica. que a humanidade mudará o sinal da sua identidade irreversivelmente. mas não é isso que desejamos? a revolução faz-se com os meios que temos ao nosso dispor. a revolução é um estado permanente da acção humana, radical, global e irreversível.
IV.
como tal, a disponibilidade para aprender nascerá de uma ligação directa entre o quotidiano e a expressão artística, ligada às condições sociais de maior sofrimento. hoje, como ontem, a arte deverá ser a arma, usada pelos que hoje nada têm a perder, a ferramenta da construção de um novo tempo.
V.
só assim soarão os corações produtores, os tambores. só assim os olhos cegarão para que seja possível ver, ouvir, cheirar, saborear e tactear pelo desenho.
(1) - expressão de andré malraux
(2) - expressão de francisco louçã
algumas notas, escritas como contributo para uma tese de doutoramento, na área do ensino do desenho, na licenciatura em arquitectura:
três condições me parecem necessárias para que seja possível reabilitar o desenho – aliás a arte – como elemento regenerador da condição humana:
. o quotidiano
. a visão clara
. a disponibilidade
I.
os construtores de catedrais da idade média produziram uma arquitectura sem equívocos. porquê? a resposta parece simples: cada obreiro executava a sua tarefa com profunda religiosidade. da mesma forma, cabe perguntar: haveria algum arquitecto egípcio, pintor, escultor, que ao trabalhar nas pirâmides, não acreditasse na eternidade espiritual, mesmo material, do seu faraó? parece obvio que não.
as pirâmides estão a escassos km de uma grande cidade, metropolitana, ruidosa, dir-se-ia, moderna. mas quem visita o cairo reterá os prédios da contemporaneidade? as auto-vias? não. são as pirâmides que continuam a tocar o coração dos viajantes. com efeito, é a profunda elevação espiritual que continua a tocar as pessoas, mesmo tantos séculos depois.
seríamos nós capazes de chorar e arrepiar com “a greve” de eisenstein, se não sentíssemos naqueles fotogramas mudos, o pulsar da genuína convicção marxista; o desenho de uma revolução a construir-se?
o que une através da história os maçons operativos de chartres, paris, évora, os arquitectos-sacerdotes do egipto, eisenstein, picasso... rimbaud? a visão clara do mundo fenomenológico e global percepção da transcendência.
II.
aquilo a que se convencionou chamar de “a idade do capitalismo tardio”, trouxe à humanidade uma preocupante substituição da sua natural capacidade de tratar os registos sensoriais. em rigor, o que vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos ou saboreamos, não é aquilo que verdadeiramente vemos, ouvimos, cheiramos, tacteamos ou saboreamos. deixámos de saber construir o nosso “museu imaginário(1)” agindo como se tivéssemos um chip de telemóvel, pré-carregado, instalado no nosso cérebro, alimentado por biliões de estímulos extra-sensoriais, que não sabemos tratar nem intelectualmente, nem emocionalmente, e que por isso mesmo, nos condicionam o intelecto, as emoções, a acção.
quer isto dizer que aquilo que pensamos e sentimos deixou de ser o resultado da nossa própria análise e criatividade, para pensarmos e sentirmos, segundo o padrão imposto por uma gestão massificada das emoções. vivemos o tempo da "maldição de midas(2)". tudo tornado ouro, impossibilita-nos sentir com o corpo.
assim, como podemos desenvolver a “visão clara”, almejar a clareza amorosa que a arte proporciona, que só a arte proporciona, a arte que é amor, e só o amor é arte? não podemos!
é mais uma vez necessária a reivindicação de um processo revolucionário, que descondicione a humanidade das grilhetas da “idade do sucesso”. mais uma vez a luta se centrará na liberdade essencial do ser humano, independentemente das suas condições de existência, desta vez a opressão é generalizada.
III.
agostinho da silva, falou-nos da possibilidade do desemprego em massa funcionar como agente “despertador” deste estado letárgico da humanidade. sem emprego, ao homem só restará o trabalho – o ócio – que é o contrário do negócio. sabemos que esta mudança, como todas, será dramática, catastrófica. que a humanidade mudará o sinal da sua identidade irreversivelmente. mas não é isso que desejamos? a revolução faz-se com os meios que temos ao nosso dispor. a revolução é um estado permanente da acção humana, radical, global e irreversível.
IV.
como tal, a disponibilidade para aprender nascerá de uma ligação directa entre o quotidiano e a expressão artística, ligada às condições sociais de maior sofrimento. hoje, como ontem, a arte deverá ser a arma, usada pelos que hoje nada têm a perder, a ferramenta da construção de um novo tempo.
V.
só assim soarão os corações produtores, os tambores. só assim os olhos cegarão para que seja possível ver, ouvir, cheirar, saborear e tactear pelo desenho.
(1) - expressão de andré malraux
(2) - expressão de francisco louçã