sexta-feira, fevereiro 13, 2004
HORA DO DIABO #68
"the essential is no longer visible" - Heiner Müller
"Ela pôs-se a atirar ludo pela janela, anéis, pulseiras, um colar, alguns objectos preciosos e, arrancada do porta moedas, uma grande quantidade de dinheiro pelo ar, e as almofadas.
Caem vestidos no passeio. Nua, ela continua a atirar mais vestidos pela janela.
Horror da posse. Insuportável, indigna posse.
Num minuto de iluminação, o véu é rasgado. Ela vê a baixeza de possuir, de guardar, de acumular.
Tornou-se-lhe subitamente insuportável andar com roupas em cima do corpo, e tendo juntado os objectos, ali em monte, pôs-se logo a despir tudo.
Ignóbil ter desejado apropriar-se das coisas, guardá-las para si.
Na sequência deste acto tão pessoal, e todavia público (enxergado da rua), retiraram-lhe a liberdade.
Ela começou por falar muito, depressa, sem cessar, e depois quase nada.
Ao mesmo tempo que outras internadas, foi levada a desenhar, a pintar, e um dia puseram-lhe nas mãos um lápis de cores e colocaram diante dela, numa mesa, uma folha branca de papel.
Inerte, ela traça, distraída, alguns pontos e riscos esparsos, e depois, de súbito e sem parar, flores, flores sem suporte.
Umas flores cândidas, de corolas simples e simplesmente coloridas, flores oferendas, flores de nascimento, flores tingidas de inocência. Muitas. Muitas.
Palavras, nenhumas, nunca mais.
Somente flores, flores, flores.
O dom, dar, dar-se.
«Impunha-se defendê-la de si mesma...» Flores é a sua única resposta. Flores, flores, flores."
Henri Michaux, in "O Retiro pelo Risco"
"Ela pôs-se a atirar ludo pela janela, anéis, pulseiras, um colar, alguns objectos preciosos e, arrancada do porta moedas, uma grande quantidade de dinheiro pelo ar, e as almofadas.
Caem vestidos no passeio. Nua, ela continua a atirar mais vestidos pela janela.
Horror da posse. Insuportável, indigna posse.
Num minuto de iluminação, o véu é rasgado. Ela vê a baixeza de possuir, de guardar, de acumular.
Tornou-se-lhe subitamente insuportável andar com roupas em cima do corpo, e tendo juntado os objectos, ali em monte, pôs-se logo a despir tudo.
Ignóbil ter desejado apropriar-se das coisas, guardá-las para si.
Na sequência deste acto tão pessoal, e todavia público (enxergado da rua), retiraram-lhe a liberdade.
Ela começou por falar muito, depressa, sem cessar, e depois quase nada.
Ao mesmo tempo que outras internadas, foi levada a desenhar, a pintar, e um dia puseram-lhe nas mãos um lápis de cores e colocaram diante dela, numa mesa, uma folha branca de papel.
Inerte, ela traça, distraída, alguns pontos e riscos esparsos, e depois, de súbito e sem parar, flores, flores sem suporte.
Umas flores cândidas, de corolas simples e simplesmente coloridas, flores oferendas, flores de nascimento, flores tingidas de inocência. Muitas. Muitas.
Palavras, nenhumas, nunca mais.
Somente flores, flores, flores.
O dom, dar, dar-se.
«Impunha-se defendê-la de si mesma...» Flores é a sua única resposta. Flores, flores, flores."
Henri Michaux, in "O Retiro pelo Risco"