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sábado, fevereiro 07, 2004

DOL-U-RON Forte - 4 

"the essential is no longer visible" - Heiner Müller

não tenho janelas em casa
mas se tivesse janelas em casa
não seriam para ver pores-de-sol, nem amanheceres tranquilos e bucólicos
tão pouco para deixar entrar o ar da manhã – esse resto da madrugada

quero lá saber das manhãs que nascem
ou dos odores dos pomares
ou das lembranças do perfume dos morangos
ou da memória do cheiro a pó de arroz nas mãos da velha
ou das músicas da rádio
ou dos animais de estimação
ou das camas em que dormi

não tenho direito a essas coisas das pessoas que vivem
nem sequer direito a janelas – que se as tivesse não seriam para alimentar o sonho
de as abrir e respirar

decidi
não querer saber das coisas a que não tenho direito,
dos beijos
das vidas passadas
das vidas futuras cheias de banhos no mar
e algas
e esplanadas e cores de rebuçado a derreter

estou aqui e tenho uma porta
uma porta por onde se entra e sai – uma boa porta
estou aqui e tenho cigarros e a dor da culpa de todos os sofrimentos
e o medo de perder a culpa – coisa minha que conheço – e
a culpa de ter medo

janelas… bach… às vezes acontecem, mas é tão raro
janelas e fresco e noites azuis… bach
a mim?
conseguir chegar à casa de banho já é uma bênção
que agradeço, penitente, todos os segundos
divina graça essa a de ter tempo para chegar ao outro lado
da sala, mesmo tropeçando na cama, e não me sujar todo

também tenho recebido a dádiva do banho

isto para dizer
que não me queixo
que não tenho porque me queixar

apenas constato
o facto
nem triste nem contente
de que não tenho janelas em casa
nem luz do dia
nem ar fresco da manhã
nem vistas sobre um mar qualquer, mesmo de pedra – évora
nem noites de verão com mosquitos
nem horas vagas vendo carros ao fundo, e donos de casa com cães a passear

não tenho
é um facto
e é só

obrigado


(hino)

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