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sexta-feira, março 03, 2006

tratado secreto do teatro # 20 

# 20 – cena vigésima

a – estamos a um passo de reviver. tens razão. este é o meu tratado secreto do teatro. é verdade. é tudo verdade. a encenação. a crucificação. os passos da paixão. o violeta da manta e a coroa de espinhos, os meus trinta e três anos. tudo foi meticulosamente preparado: chá de perpétuas-roxas, lençóis, cama. a janela invisível onde podemos ver o queremos mas só vemos o que está determinado. o que eu determinei. só erras quando dizes que não és actor. claro que és actor. és mais do que isso, és cúmplice. ser actor é ser cúmplice de tudo, co-autor. há um momento em que a criatura de mescla com o criador. um actor nunca é manipulado. mesmo que pense que é. nem uma marioneta é manipulada. sabes tão bem como eu que um títere tem uma autonomia imensa, que ultrapassa em tanto, tanto, a vontade daquele que lhe puxa os fios. também é verdade que contracenas comigo desde o inicio. mas repara bem nessa palavra: contracenar, contra-cenar: estar contra a cena. impedi-la de passar. se um de nós avança o outro é uma barreira, um muro invisível de poder e palavra. a cada passo, o nosso trabalho é abater essa barreira. contra a cena. esperar a réplica. o público olha-nos. sabe. escuta. tem medo. o público tem sempre medo. o público vem ao teatro para ter medo. em que plano estamos nós em relação a eles? será que podemos sair daqui e tocar-lhes e bater-lhes e beijá-los? será que neste preciso momento, público e nós habitamos a mesma bolha de espaço? é possível, não se sabe. nem sequer o tempo. nós e o publico vivemos no mesmo tempo? temos a mesma hora no relógio? não saberemos nunca. e o público somos nós ou são eles? quem é o público? quem são os actores? onde estão? onde estamos? nem os vemos. sentimo-los? sim, sentimo-los, mas sentimos tantas coisas, tantos milhares de biliões de coisas, sentir o público é só mais uma coisa. não somos nada. nada que interesse. o público não é nada. é uma amalgama de carnes e banhas e ossos e olhos. e nós, os actores, tão iguais. sacerdotes? seria bom. nem carne, nem banha, nem osso. meu amor, nós só somos uma imagem, a diferença é que morreremos aqui. se tivermos sorte. se tu mantiveres esse vigor e essa febre vibrante. que a cruz se abata sobre nós. que as nossas gargantas se abram e em jorro o veneno que nos enferma verta sobre o cálice por onde gerações e gerações de público e de actores beberão, graal teatral, pelos séculos dos séculos, ámen… ou… §

§ … talvez seja tudo ilusão. nada disto tenha sido planeado. talvez eu pense que criei este espectáculo… a verdade? pois, e se não é isto? pode não ser. pode ser verdade o que disse antes. pode ser verdade o que não sei dizer. pode ser tudo. já não tenho consciência. trinta e três anos? será mesmo? não te posso jurar nada. nem que estamos em agosto, talvez ainda nem tenha chegado abril. nem sei se… sei lá se faço mesmo anos em abril. tenho a memória dessa data. lembro-me das festas de aniversário em criança. lembro-me, mas lembrar significa que aconteceu? não sei. não me interessa saber. quero escorrer. não sei a verdade. nem a mentira. nem a ilusão. desejo. desejo imensamente que esta cruz caia sobre nós e as nossas gargantas se rasguem. mais nada.
fim da segunda parte

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