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quinta-feira, março 02, 2006

tratado secreto do teatro # 19 

# 19 – décima nona cena

b – quando é que fizeste anos?
a – em abril.
b – e quantos?
c – trinta e três.
b – e em que mês estamos?
a – agosto.
b – bem, bem. tens a idade de cristo crucificado e estamos no mês em que alguns estudiosos dizem que ele nasceu, outros que morreu. estamos em agosto é o que interessa. o mês em que o santinho ou nasceu ou morreu.
a – e o que é que isso interessa?
b – interessa-me o teatro minha querida. esta estupenda encenação, não desfazendo, que tu arranjaste. tudo ao pormenor. até deves ter um diário de bordo. trataste de tudo, de tudo, com uma perfeição rigorosa. até a tua idade. escolheste os actores, marcaste as cenas, construíste o cenário, arranjaste adereços – olhós! ali, todos, à espera do momento – é extraordinária a insignificância de um adereço antes e depois do segundo em que é usada. já o cenário está cá sempre, omnisciente, omnipotente. sim, senhor. iluminação natural, a morte à espreita sem nunca mais vir e a vida que já cá não está, actores sempre às voltas. eu falo e tu respondes… está a ir tão bem não está? tu falas eu respondo. ora agora eu, ora agora tu, mais o velho truque do chá de perpétuas-roxas em cena para não cansar a voz e sobre nós uma imensa cruz prepara-se ao olhos do público para nos esborrachar. inventaste o tratado secreto do teatro minha querida. é isso que me interessa. até a janela é uma invenção genial. nós vamos lá e vemos o que quisermos. não temos de provar nada, o publico apanha com isto de lado. dizemos: «olha o rio»! e pumba! o rio está lá, ou os carros, ou as pessoas, urinóis, gatos, borboletas, sapatarias, cornudos, engates, carros da polícia, ambulâncias, motorizadas. vamos ali e podemos ver o que quisermos que o público engole tudo. sim, porque tu até público arranjaste para isto. sem sequer faltar uma pitada de mistério e fantástico. um ser violeta, que agora é homem mas já foi uma gaja normal que partia os cigarros ao meio e queria deixar de fumar. e efeitos. sim, luz cor de laranja e vozes que parecem vir do céu mas é um gajo lá dentro com um microfone. vá, diz-me se estou a inventar. diz-me que não encenaste, montaste, dirigiste, escreveste e estás a representar esta merda toda? diz-me que é mentira. que não estamos aqui os dois a contracenar tal e qual os teus planos, os teus projectos. e eu? e eu hã? estou a fazer as coisinhas bem? ou não estou? olha-me e diz-me nos lhos que esta história das máquinas e da demolição não foi toda inventada, desmente-me, vá, porra! assume que criaste um espectáculo ao milímetro, que tens tudo sob controlo, que me tens sob controlo. eu que não sendo actor nem devia saber reconhecer os teus gestos de direcção e pensar que tudo isto é real: esta cama, estes lençóis sujos. diz-me por uma vez a verdade. eu admito que este quarto cheira a rato. claro que cheira. mas foste tu que empestaste isto com, ou não foi? até essência de rato deves ter trazido num frasquinho. só para eu negar. para eu cheirar e sentir e ver-me obrigado a mentir-ME para guardar a minha pouca força. porquê? se fores capaz de me dizer que tudo isto que passámos, isto que vivemos os dois e nos trouxe até aqui é o teu tratado secreto do teatro, juro-te, juro-te, que sem pestanejar, com todo o vigor que tu exiges, usarei a espada que flameja nas nossas gargantas, farei verter o líquido que nos envenena para o cálice, e, como um cordeiro, voluntariamente, deixarei que se abata sobre nós, sem resistência, a cruz que nos ensombra.
a – meu amor, estás finalmente tão maravilhosamente preparado. tão gloriosamente febril. amo-te.

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