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sábado, março 04, 2006

tratado secreto do teatro # 21 

# 21 – cena vigésima primeira

b – ainda te lembras do teu nome?
a – não, mas escrevi-o num papel. o meu e o teu. não os recordo. tive foi a sensação de que um dia, numa outra circunstância, quando despertarmos, teremos a necessidade de os relembrar.
b – despertar?
a – sim.
b – sim o quê?
a – despertar.
b – despertar de quê, a onde, estás a falar de quê? outra circunstância?
a – acho que depois da transformação, habitaremos um outro espaço e uma vez despertos, nesse outro espaço, ser-nos-á concedido um breve período para recordar o que ficou para trás.
b – tu é que andas para trás. primeiro queres um fim, um ponto. agora dizes-me que vais despertar noutro lugar. só se fores tu, mais o teu homenzinho das luzes violeta e laranja, ou mulher ou coisa. eu não quero despertar em lado nenhum. quero ver o sol pela ultima vez, quero que a lua desapareça para sempre da minha frente. nem quero que me expliques mais teorias. fiz-te uma pergunta simples. primeiro: não me lembro do meu nome. segundo: não me lembro do teu nome. perguntei: «ainda te lembras do teu nome?» – porra. tens os nomes escritos num papelinho, não é isto verdade? pois então, será que podes ir ver os nossos nomes ao papelinho e dizer-mos? simplesmente. fulano de tal, fulana de tal. sem mais merdas.
a – não.
b – não podes, não queres, não sabes onde tens o papel ou há uma razão imensamente oculta e espiritual para que eles não possam ser revelados?
a – não.
b – mas qual é o problema de um simples «actorzeco» como eu, prestes a pôr a cabeça no cepo saber o seu nome? e já agora o teu. aliás, a minha cabeça e a tua. ainda por cima o cepo sou eu. cepo e verdugo, qual é o problema?
a – será por acaso que das nossas memórias foi limpa a referência à nossa identidade?
b – é pá, eu sei lá. já te disse, por favor, guarda as tuas maravilhosas explicações para o teu serzinho violeta quando ele estiver resplandecendo no contraste da luz cor de laranja e…
a – … como é que tu sabes que é assim que ele me aparece?
b – porque tu me disseste.
a – não disse.
b – disseste sim. não fizeste tu outra coisa. detalhadamente.
a – não. falei-te nele, na sua presença, falei-te nas cores, falei-te dessas coisas todas mas não da forma como ele se manifesta.
b – falaste sim. não vamos agora discutir isso. a menos que também tenhas um gravador a registar as nossas palavras todas e queiras ir ouvir as nossas conversas palavrinha por palavrinha.
a – não, não tenho nenhum gravador. tenho a ideia de não te ter falado desse pormenor. mas mesmo que o tenha feito, a maneira como o disseste…
b – … começou a chover. não temos mais de duas horas. o céu pôs-se em tempestades azuis. o rio está a exaltar-se. já sei que tens os nossos nomes escritos num lado qualquer. não me lembro deles, não tenho a certeza de que tu não te lembres também, mas adiante. sabes perfeitamente como tenho danificada a memória, danificado o corpo. antes que continues com as tuas histórias, pergunto-te novamente, simplesmente, sem mais: quero reaprender os nossos nomes, poderás fazer a gentileza de mos ensinar?
a – não.
b – obrigado. agora peço-te outra coisa, poderás poupar-me a mais conversas dessas, cheias de significados e combinações secretas, aparições, destinos a cumprir?
a – não.
b – podemos ao menos deitar-nos por uns minutos. guardar o silêncio possível?
a – sim… talvez…
b – ainda bem. então vamos para a cama. abraça-me se puderes. ou talvez seja melhor não. ficamos só ao pé um do outro e se o silêncio for impossível que as palavras durante esse curto espaço de tempo possam ser palavras banais. palavras de carne e osso. fazes isso por mim? ao menos isso.
a – claro que sim. mas se me quiseres abraçar…

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