sábado, março 04, 2006
tratado secreto do teatro # 22
# 22 – cena vigésima segunda
b – até à adolescência a minha vida foi inundada pelo universo das criadas da minha família… estás a ouvir-me?
a – estou, diz.
b – preferes dormir?
a – não, diz lá. estou a ouvir.
b – as criadas já não existem. agora há empregadas domésticas. gente que trabalha como qualquer outra num emprego como qualquer outro. eu ainda apanhei o tempo das criadas. vinham servir – é como se dizia: «vir servir» –, chegavam ainda crianças, oito, nove anos. eram submetidas aos trabalhos mais duros. lavavam, engomavam, esfregavam, limpavam a porcaria das casas de banho. só cozinhar é que era reservado às mais velhas. dormiam em esconsos, sem janela, só tinham uma pia e era raro nessa altura serem autorizadas a tomar banho mais que uma vez por semana. geralmente ao domingo, para irem confessar-se e assistir à missa, em pé. cá atrás. à medida que iam crescendo iam-se tornando seres estranhos. com cabeças maquiavélicas, resultado de todas as coisas porque tinham passado. raras eram aquelas que também não vinham servir o patrão, ou mesmo mais do que um. e até as patroas. tornavam-se seres estranhíssimos. hoje é quase impossível entender este processo todo. lá pela meia idade tornavam-se más, ressabiadas, capazes de fazer coisas grotescas… é isso, grotescas. nisso é que elas se tornavam. frustradas. imersas num sofrimento profundo. e eu adorava. atraído por esse grotesco humano. essência da perversão e do martírio católico romano. adorava respirá-las. desesperadas. viradas do avesso. acossadas.
a – nunca vivi nada assim. nunca assisti a tais enfermidades.
b – dizes isso com ar de riso mas olha que era mesmo assim.
a – acredito. mas dá-me vontade de sorrir. foi tudo tão diferente comigo.
b – quando chegavam a velhas, o normal era serem recambiadas para a terra. mas em velhas ou já tinham normalizado, quer dizer, resignado, ou se tornavam bêbedas. uma ou outra lá casava. com um polícia de preferência, era muito costume. eu já só as apanhei dos cinquenta anos para cima. uma delas gostava que vestisse a roupa dela. roupa que ela roubava aos patrões. meias de vidro – sabes o que isso é? antes de haver collants, nylon e a assim. sabes, claro – e eu estremecia de prazer por vestir-me assim. ligas, cintos de renda, saias justas de cores garridas, lenços ao pescoço. gostava de me ver ao espelho, gostava de perder a noção do sexo que tinha. tornava-me um genuíno andrógino. aparente mulher, rapaz de corpo, na cabeça tanto me fazia. gostava que ela me vestisse e despisse. também gostava que ela me lavasse e de a lavar, porque ela pedia-me para a lavar. tudo às escondidas, mas nem era preciso dizer que era segredo, era evidente, estava implícito o segredo naquele estranho contacto. hoje quando penso nisto, acho curioso que apesar de toda esta mistura nunca tenha havido sombra de intimidade. nem sequer afecto. eram jogos secretos, perversos. pré-versos, que é como a palavra se devia escrever. a intimidade foi coisa que só descobri muito mais tarde. a intimidade só o amor confere. e disso já te falei. do meu encontro com a intimidade e o amor, da vida que doei, da vida que não voltou. agora esta história das criadas… estas coisas ficam. nunca mais nos saem da cabeça. nem do corpo. mesmo agora quando me olho ao espelho, muitas vezes, envés da imagem esperada, é aquela outra, adornada de criada, que vejo. naquela altura foi-me conferido um sexo primordial. nem masculino nem feminino a que depois renunciei. como talvez tenha acontecido contigo, renunciando à tua existência réptil, rastejante, ovípara. §
§ será que uma renuncia é realmente definitiva? não estarei, por exemplo neste dia, a voltar a esse estado primordial? a essa animalidade sem género? isso sim seria uma profunda bênção…
a – não te sei responder, mas faz sentido. enquanto me contavas isso, pensava justamente se não estaria, aqui, a regressar à reptilização do meu estado físico. mas mentalmente acho que a renuncia a que fui obrigada se tornou irreversivelmente humana. essa é a tragédia que sinto desde sempre. mas tu… tu talvez… neste pouco tempo que nos resta aos dois… antes da cruz… tu… sim… talvez consigas recuperar esse estado de graça. agora ainda mais puro, já sem a perversidade da presença diabólica das criadas.
b – diabólica?
b – até à adolescência a minha vida foi inundada pelo universo das criadas da minha família… estás a ouvir-me?
a – estou, diz.
b – preferes dormir?
a – não, diz lá. estou a ouvir.
b – as criadas já não existem. agora há empregadas domésticas. gente que trabalha como qualquer outra num emprego como qualquer outro. eu ainda apanhei o tempo das criadas. vinham servir – é como se dizia: «vir servir» –, chegavam ainda crianças, oito, nove anos. eram submetidas aos trabalhos mais duros. lavavam, engomavam, esfregavam, limpavam a porcaria das casas de banho. só cozinhar é que era reservado às mais velhas. dormiam em esconsos, sem janela, só tinham uma pia e era raro nessa altura serem autorizadas a tomar banho mais que uma vez por semana. geralmente ao domingo, para irem confessar-se e assistir à missa, em pé. cá atrás. à medida que iam crescendo iam-se tornando seres estranhos. com cabeças maquiavélicas, resultado de todas as coisas porque tinham passado. raras eram aquelas que também não vinham servir o patrão, ou mesmo mais do que um. e até as patroas. tornavam-se seres estranhíssimos. hoje é quase impossível entender este processo todo. lá pela meia idade tornavam-se más, ressabiadas, capazes de fazer coisas grotescas… é isso, grotescas. nisso é que elas se tornavam. frustradas. imersas num sofrimento profundo. e eu adorava. atraído por esse grotesco humano. essência da perversão e do martírio católico romano. adorava respirá-las. desesperadas. viradas do avesso. acossadas.
a – nunca vivi nada assim. nunca assisti a tais enfermidades.
b – dizes isso com ar de riso mas olha que era mesmo assim.
a – acredito. mas dá-me vontade de sorrir. foi tudo tão diferente comigo.
b – quando chegavam a velhas, o normal era serem recambiadas para a terra. mas em velhas ou já tinham normalizado, quer dizer, resignado, ou se tornavam bêbedas. uma ou outra lá casava. com um polícia de preferência, era muito costume. eu já só as apanhei dos cinquenta anos para cima. uma delas gostava que vestisse a roupa dela. roupa que ela roubava aos patrões. meias de vidro – sabes o que isso é? antes de haver collants, nylon e a assim. sabes, claro – e eu estremecia de prazer por vestir-me assim. ligas, cintos de renda, saias justas de cores garridas, lenços ao pescoço. gostava de me ver ao espelho, gostava de perder a noção do sexo que tinha. tornava-me um genuíno andrógino. aparente mulher, rapaz de corpo, na cabeça tanto me fazia. gostava que ela me vestisse e despisse. também gostava que ela me lavasse e de a lavar, porque ela pedia-me para a lavar. tudo às escondidas, mas nem era preciso dizer que era segredo, era evidente, estava implícito o segredo naquele estranho contacto. hoje quando penso nisto, acho curioso que apesar de toda esta mistura nunca tenha havido sombra de intimidade. nem sequer afecto. eram jogos secretos, perversos. pré-versos, que é como a palavra se devia escrever. a intimidade foi coisa que só descobri muito mais tarde. a intimidade só o amor confere. e disso já te falei. do meu encontro com a intimidade e o amor, da vida que doei, da vida que não voltou. agora esta história das criadas… estas coisas ficam. nunca mais nos saem da cabeça. nem do corpo. mesmo agora quando me olho ao espelho, muitas vezes, envés da imagem esperada, é aquela outra, adornada de criada, que vejo. naquela altura foi-me conferido um sexo primordial. nem masculino nem feminino a que depois renunciei. como talvez tenha acontecido contigo, renunciando à tua existência réptil, rastejante, ovípara. §
§ será que uma renuncia é realmente definitiva? não estarei, por exemplo neste dia, a voltar a esse estado primordial? a essa animalidade sem género? isso sim seria uma profunda bênção…
a – não te sei responder, mas faz sentido. enquanto me contavas isso, pensava justamente se não estaria, aqui, a regressar à reptilização do meu estado físico. mas mentalmente acho que a renuncia a que fui obrigada se tornou irreversivelmente humana. essa é a tragédia que sinto desde sempre. mas tu… tu talvez… neste pouco tempo que nos resta aos dois… antes da cruz… tu… sim… talvez consigas recuperar esse estado de graça. agora ainda mais puro, já sem a perversidade da presença diabólica das criadas.
b – diabólica?