segunda-feira, março 06, 2006
tratado secreto do teatro # 23
# 23 – cena vigésima terceira
b – com que idade começaste a escrever?
a – a escrever? aprender? ou nos jornais?
b – nos jornais, claro. ou mesmo antes, a sério… tu percebes o que estou a perguntar.
a – tinha um diário. sempre tive. com quinze ou dezasseis anos, punha-me à janela e descrevia as coisas absolutamente extraordinárias que aconteciam num salão de jogos mesmo em frente da minha casa. foram esses textos que um dia reescrevi e apresentei ao director do jornal onde comecei a trabalhar. deve ter gostado.
b – salão de jogos?
a – sabes como são os salões de jogos, passa-se de tudo. vende-se tudo. troca-se tudo. são os centros comerciais mais espantosos das cidades. a janela do meu quarto dava para a rua, mesmo em frente do salão. primeiro andar. a «janela indiscreta», tal e qual. fechava a luz para não me verem, tinha uns binóculos do exército soviético que um namorado me tinha comprado na feira da ladra. com aquilo quase conseguia ver a íris dos olhos daquela fauna. sempre à noite, pois, durante o dia aquilo era normal, iam crianças andar nos simuladores de carros e essas coisas. depois das onze misturava-se tudo. polícias, pequenos traficantes a cair de podre, mais drogados que traficantes. os polícias iam lá vender a heroína apreendida, alguns comprar coca para eles mesmos. de vez em quando, para justificar a presença de fardas no salão, lá ia uma puta presa, coisa mais ou menos combinada com os chulos. levavam a que estava a fazer menos dinheiro. punham as sirenes da ramona a gritar e aquilo dava ar de que a bófia andava em cima, «a cumprir o se dever». ouvia-se muito lá no bairro: «se não fosse a polícia ir lá todas as noites nem se podia dormir descansado». eles sabem fazer estas coisas. se lá estivessem pretos também lá ia um ou outro dentro. o dono daquilo tinha sido guarda prisional não sei onde. tinha heroína e pastilhas garantidas a preços de caca, sempre fornecida pelos bófias. produto gamado durante as queimas dos apreendidos. nem imaginas como circula bem o cavalo apreendido pela bófia. imaginas. toda a gente sabe. mas finge não ouvir. não dá jeito falar nisso. se os gajos apanham quinhentos quilos de cavalo, queimam cem e põem quatrocentos a circular. nos fornos da bófia é queimado de tudo: farinha, pó de gesso, bicarbonato, aspirinas. é preciso é que faça peso nas balanças do controlo. eu ia vendo aquelas coisas, no escuro do quarto e depois escrevia. todos os dias uma pequena história. já quando era jornalista propus várias vezes fazer uma reportagem à séria sobre o trafico feito pela bófia, mas nunca houve um cabrão de um jornal que me autorizasse a avançar.
b – e por tua conta, nunca pensaste nisso?
a – claro que pensei. era o que fazia quando era miúda. mas, para além de não servir para nada, por não haver quem me publicasse a história, é um risco descomunal ir assim sozinha, de cabeça, para uma cena dessas. nem tinha dinheiro para isso. não basta descrever. é preciso provar. comprar, subornar, ter fotografias, gravações, identificar os gajos. não se trabalha sozinho numa coisa assim. limpavam-me o sebo em menos de um ai. limpavam-me o sebo de todas as maneiras, se só me matassem seria uma sorte.
b – e que mais?
a – mais?
b – o que é que se passava mais, lá no «chopingue-center»
a – queres ainda mais!... os casais gay não podiam sequer aproximar-se. se quisessem «comprar» tinham de esconder que eram namorados ou namoradas. se dessem nas vistas eram logo caçados e faziam-lhes tudo. fechavam as portas do salão. cá de fora só se ouviam os gritos, misturados com musica em altos berros e aqueles sons infernais das máquinas electrónicas. no fim da «festa» chegava sempre um carro da polícia para os levar para a esquadra. depois de lhes fazerem tudo, saíam verdadeiras bolas de sangue. o dono fazia uma queixa, com testemunhas e tudo. para todos os efeitos eles ou elas é que tinham armado uma confusão qualquer. na esquadra a «festa» devia continuar. palpita-me. no entanto, se algum gajo com massa quisesse um rapazito, ou uma miúda, bastava combinar com o senhor-ex-guarda-prisonal, parava o carro à porta e o miúdo entrava, vindo do nada. aquilo devia ter outras portas… sei lá. arranjavam miúdos novos e vendiam-nos. com dinheiro a «paneleirice» já não lhes fazia confusão nenhuma. os pretos também não entravam. ficavam à porta desde que fossem «comprar» ou «venderem-se». havia muita procura de pretos para o engate. as putas também entravam por outro lado qualquer e só se viam quando havia cliente. foi ali que vi as primeiras reuniões de skins, armados até aos dentes, tudo material vendido pela polícia. tenho mais de sessenta cadernos com estas histórias. apesar de ser uma miúda acho que contei aquilo tudo com alguma qualidade de escrita. um dia o dono foi encontrado morto à porta da padaria. prenderam uma desgraçada, completamente pedrada e bêbeda, desmaiada com um revolver na mão. o salão fechou. agora é uma vídeo-clube. quem ali passa deve achar que aquele lugar sempre foi uma capelinha das aparições.
b – foi aí que viste o diabo?
a – o diabo?
b – sim, ainda há pouco disseste que a minha história das criadas tinha qualquer coisa de diabólico. já viste o diabo?
a – já… §
§ …mas não foi ali.
b – com que idade começaste a escrever?
a – a escrever? aprender? ou nos jornais?
b – nos jornais, claro. ou mesmo antes, a sério… tu percebes o que estou a perguntar.
a – tinha um diário. sempre tive. com quinze ou dezasseis anos, punha-me à janela e descrevia as coisas absolutamente extraordinárias que aconteciam num salão de jogos mesmo em frente da minha casa. foram esses textos que um dia reescrevi e apresentei ao director do jornal onde comecei a trabalhar. deve ter gostado.
b – salão de jogos?
a – sabes como são os salões de jogos, passa-se de tudo. vende-se tudo. troca-se tudo. são os centros comerciais mais espantosos das cidades. a janela do meu quarto dava para a rua, mesmo em frente do salão. primeiro andar. a «janela indiscreta», tal e qual. fechava a luz para não me verem, tinha uns binóculos do exército soviético que um namorado me tinha comprado na feira da ladra. com aquilo quase conseguia ver a íris dos olhos daquela fauna. sempre à noite, pois, durante o dia aquilo era normal, iam crianças andar nos simuladores de carros e essas coisas. depois das onze misturava-se tudo. polícias, pequenos traficantes a cair de podre, mais drogados que traficantes. os polícias iam lá vender a heroína apreendida, alguns comprar coca para eles mesmos. de vez em quando, para justificar a presença de fardas no salão, lá ia uma puta presa, coisa mais ou menos combinada com os chulos. levavam a que estava a fazer menos dinheiro. punham as sirenes da ramona a gritar e aquilo dava ar de que a bófia andava em cima, «a cumprir o se dever». ouvia-se muito lá no bairro: «se não fosse a polícia ir lá todas as noites nem se podia dormir descansado». eles sabem fazer estas coisas. se lá estivessem pretos também lá ia um ou outro dentro. o dono daquilo tinha sido guarda prisional não sei onde. tinha heroína e pastilhas garantidas a preços de caca, sempre fornecida pelos bófias. produto gamado durante as queimas dos apreendidos. nem imaginas como circula bem o cavalo apreendido pela bófia. imaginas. toda a gente sabe. mas finge não ouvir. não dá jeito falar nisso. se os gajos apanham quinhentos quilos de cavalo, queimam cem e põem quatrocentos a circular. nos fornos da bófia é queimado de tudo: farinha, pó de gesso, bicarbonato, aspirinas. é preciso é que faça peso nas balanças do controlo. eu ia vendo aquelas coisas, no escuro do quarto e depois escrevia. todos os dias uma pequena história. já quando era jornalista propus várias vezes fazer uma reportagem à séria sobre o trafico feito pela bófia, mas nunca houve um cabrão de um jornal que me autorizasse a avançar.
b – e por tua conta, nunca pensaste nisso?
a – claro que pensei. era o que fazia quando era miúda. mas, para além de não servir para nada, por não haver quem me publicasse a história, é um risco descomunal ir assim sozinha, de cabeça, para uma cena dessas. nem tinha dinheiro para isso. não basta descrever. é preciso provar. comprar, subornar, ter fotografias, gravações, identificar os gajos. não se trabalha sozinho numa coisa assim. limpavam-me o sebo em menos de um ai. limpavam-me o sebo de todas as maneiras, se só me matassem seria uma sorte.
b – e que mais?
a – mais?
b – o que é que se passava mais, lá no «chopingue-center»
a – queres ainda mais!... os casais gay não podiam sequer aproximar-se. se quisessem «comprar» tinham de esconder que eram namorados ou namoradas. se dessem nas vistas eram logo caçados e faziam-lhes tudo. fechavam as portas do salão. cá de fora só se ouviam os gritos, misturados com musica em altos berros e aqueles sons infernais das máquinas electrónicas. no fim da «festa» chegava sempre um carro da polícia para os levar para a esquadra. depois de lhes fazerem tudo, saíam verdadeiras bolas de sangue. o dono fazia uma queixa, com testemunhas e tudo. para todos os efeitos eles ou elas é que tinham armado uma confusão qualquer. na esquadra a «festa» devia continuar. palpita-me. no entanto, se algum gajo com massa quisesse um rapazito, ou uma miúda, bastava combinar com o senhor-ex-guarda-prisonal, parava o carro à porta e o miúdo entrava, vindo do nada. aquilo devia ter outras portas… sei lá. arranjavam miúdos novos e vendiam-nos. com dinheiro a «paneleirice» já não lhes fazia confusão nenhuma. os pretos também não entravam. ficavam à porta desde que fossem «comprar» ou «venderem-se». havia muita procura de pretos para o engate. as putas também entravam por outro lado qualquer e só se viam quando havia cliente. foi ali que vi as primeiras reuniões de skins, armados até aos dentes, tudo material vendido pela polícia. tenho mais de sessenta cadernos com estas histórias. apesar de ser uma miúda acho que contei aquilo tudo com alguma qualidade de escrita. um dia o dono foi encontrado morto à porta da padaria. prenderam uma desgraçada, completamente pedrada e bêbeda, desmaiada com um revolver na mão. o salão fechou. agora é uma vídeo-clube. quem ali passa deve achar que aquele lugar sempre foi uma capelinha das aparições.
b – foi aí que viste o diabo?
a – o diabo?
b – sim, ainda há pouco disseste que a minha história das criadas tinha qualquer coisa de diabólico. já viste o diabo?
a – já… §
§ …mas não foi ali.