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sexta-feira, março 10, 2006

tratado secreto do teatro # 30-35 

# 30 – cena trigésima

a – voltamos a estar sozinhos. podemos voltar ao princípio…
b – não. como queres que tudo volte ao princípio. esquecemos tudo o que dissemos, o que passámos? admito que não façamos as coisas pelas nossa próprias mãos. mais. é isso que quero. mas não é possível esquecer. e estás enganada, não estamos sozinhos…
a – … estamos sozinhos, agora, estamos sozinhos. já não precisamos deles… enganada? eu? voltar ao principio não significa esquecer o que seja. cada palavra que dissemos, cada gesto, foi a recompensa pela nossa espera. se as máquinas tivessem vindo quando as esperávamos pouco ou nada tínhamos sabido um do outro. teríamos ficado afundados nestes escombros sem nos revelarmos. não entendes? isto foi uma dádiva extraordinária.
b – uma dádiva? dádiva! quando isto se iniciou, eu trazia comigo uma força, uma torrente de energia para me libertar, contigo, para me libertar de mim, de ti, de tudo, força que agora não tenho. §

§ não se trata de precisarmos «deles» ou não. «eles» estão aqui. sempre. e tens de saber uma coisa…
a – não tenho de saber nada. pelo menos nada de novo… ou de velho, isso que me queres contar eu sei. és tu aquela rapariga que encontrei no café. não fiques com essa cara. sim, sei que tu és a manifestação masculina que sempre pressenti, o esplendor violeta e laranja. sei que tu e… e «ele» se comunicam. sei que ainda há pouco «ele» aqui esteve. agora acabou. estamos aqui os dois, sob esta forma. o resto já tanto faz.
b – dois actores… a contracena…
a – à pois, dois actores, contra a cena, contra o público.

# 31 – cena trigésima primeira

b – … por termos estado aqui fechados? as coisas que dissemos durante estas horas? que revelações fizemos um ao outro? conhecemo-nos melhor? se nos conhecêssemos estaríamos salvos. é disso que se trata, minha menina: salvação.
a – dizes que chegaste aqui com uma força… que a perdeste. não, chegaste aqui alimentado por uma luz e um poder que EU te dava. sempre te alimentaste de mim. estás como sempre estiveste. com as veias empregadas desta doença que ambos temos, nos condena e enlouquece.
b – passas da lucidez para a loucura?
a – lucidez é loucura. fui contaminada quando te bebi, há tantos anos, no café. a velha empregada marília ajudou-nos, sem saber, com aquele acidente da faca. no meu sangue passou a circular esse veneno teu. sabias na altura o que me estavas a fazer? ou por trás daqueles olhos envergonhados de cândida rapariga havia verdadeira inocência? depois no mar, aquela pele branca não fez mais que dominar a doença, a conduzi-la, e levar-me de novo ao teu encontro. estamos os dois contaminados. não sabemos nada, nada um do outro. o único fio que nos liga é este veneno que se transmite em ciclo vicioso de um para o outro… na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, até que a morte nos separe. e a morte não nos vai separar. não há separação, nem morte sob os ciprestes, ó neófito. tens razão, há vida e não-vida. há o limbo e não és só tu que o habitas. também eu o habito. todos os contaminados do mundo o habitam. §

§ contaminados de todo o mundo uni-vos!
b – a doença deu-nos uma visão clara das coisas. quando me elevo à minha existência etérea – tu sabes que é verdade – não há doença, nem limbo, nem vida, nem não-vida. é aí que a morte habita. tu pressentiste-me assim, elevado, estando eu fechado neste corpo. tu adivinhaste-me… a mim não… adivinhaste a morte. sentiste cheiro a rato. o odor verde da morte.
a – tu não trazes nada em ti. tudo te é exterior. dizes a verdade porque estás convencido dela. a verdade é um horror porque é só uma questão de convencimento. és simplesmente um actor só. só de sozinho. só de lágrimas. só de sangue, só de seiva, só de líquido preso sob a pele. até o teu suor está contaminado por essa verdade doente. enfermas tudo o que te rodeia. há quantos anos? falas-me dessa vida que oferendaste – escolhes belas palavras, são assim os poetas, aprendem depressa o uso maléfico da etimologia – o que te corrói foi também teres contaminado com esta puta desta doença esse «amor». não oferendaste nada a ninguém, nem vida, nem a alma. tiraste tudo… mentira, oferendaste o teu sangue e sabias que ele, o sangue, destruiria propositadamente tudo à tua volta. não é do limbo de que te queres libertar é do peso da contaminação que representas.
b – e tu? não contaminaste ninguém?
a – ah, sim. já o disse. estamos aqui em plena igualdade. sozinhos e iguais. felizmente a um passo de terminar com esta «união de facto».
b – tu é que eras a serpente. a que se enrola e morde a própria cauda. és tu o ciclo vicioso. o réptil que eterniza tudo, que impede o advento da morte. dizes que a lucidez é a loucura. estamos então loucos. isso torna tudo mais fácil. quando aquela bola de ferro rebentar com esta casa, connosco, serão apenas dois reles loucos a dissipar-se entre os escombros. e olha que não há dúvida, estamos completamente lúcidos, portanto loucos.
a – ámen!

# 32 – cena trigésima segunda

b – do que disseste aceito quase tudo. quiseste esconder a palavra culpa. mas era isso que querias dizer, ou não? claro que era! e era isso só isso que interessava dizer. é a culpa que aqui nos retém. o verdadeiro veneno que nos consome é a culpa. a mim e a ti. talvez eu queira fugir dela… mas foi a culpa que nos uniu. nos breves momentos em que consigo sair do meu corpo e ver, coberto de um violeta clarividente, embrenhado num laranja de oceano, olho-nos e é só culpa que vejo. estás suja. asquerosa de culpa. e o homem loiro que te possuiu nas águas, o salvador do mundo, o alfa e o ómega, não tem feito mais que usar a tua culpa para nos manter juntos. §

§ fui poeta, pois fui. tudo isto são só palavras. foi o que aprendi. se «ele» nos tivesse levado para esse céu prometido, se ele tivesse honrado o seu testamento de sacrifício, estaríamos já na palestina solar, a terra prometida. o lugar onde as chamas e o gelo se mesclam em glória. sol e lua. mas não, é assim que ele nos mantém. culpados de tudo. neste existir, este vão de energia… na saúde e na doença, na alegria e na tristeza… mas não haverá morte que nos separe. a morte é uma dádiva individual e aqueles que deus uniu o homem não pode separar.

# 33 – cena trigésima terceira

b – o que estás a fazer aí de cócoras atrás da cama?
a – penso.
b – pensas?
a – sim penso.
b – vais para trás da cama, pões-te nessa posição para pensar?
a – sim.
b – em quê?
a – numa oração. em miúda decorei um missal inteiro.
b – e foste pôr-te de cócoras atrás da cama a pensar no missal?
a – não.
b – então no quê?
a – numa oração.
b – em miúda decoraste um missal inteiro. agora vais para trás da cama acocorada a pensar numa única oração. enquanto isto a máquina começou a içar o guindaste com a bola de ferro.
a – na «oração para o fim».
b – na oração para o fim.
a – sim, na «oração para o fim». é como o nome da oração.
b – bem, diz lá a oração. pode ser que assim saias daí.
a – queres?
b – sei lá o que quero. olha, quero-te fora daí. a bola já vai no segundo andar. pura ascensão divina. não vai rumo ao céu mas vai rumo ao telhado.
a – Ó benigno Senhor, que não faltando às vossas promessas, enviastes o Espírito sobre os discípulos, e sobre Madalena Santíssima! Senhor, por ele vos peço que derrameis sobre a minha alma as divinas luzes, com que possa conhecer o horror do pecado, e seja sempre sensível às inspirações do Divino Espírito. Ó Sábio, que plantada a vossa Igreja com o vosso Leite, a quiseste plantar por todo o mundo para glória vossa, e de Madalena Santíssima! Madalena a quem poderemos chamar João. João a quem poderemos chamar Maria. Maria a quem poderemos chamar Madalena, porque todos os nomes são de um só corpo e esse corpo é a ti que pertence! Senhor, por esses santos nomes e um só corpo, vos peço, que me ensineis a ser fiel à vossa vontade, para ser membro perfeito da Igreja, que adquiriste com o vosso precioso Leite.

Santíssima e indivisa trindade: Tu, Madalena ou Maria e João, eu vos dou muitas graças pelos benefícios que me concedeste. Atendei, Senhor, ao quanto Ele padeceu para salvar-me: atendei também às Dores de Madalena, Maria Santíssima e João, minha Mãe e Senhora, para que vos digneis conceder-me o que humildemente vos pedi, por sua intercessão.

Dignai-vos, Senhor, perdoar-me as distracções e negligências com que assisti a este Santo Sacrifício, pelo qual vos peço me concedais os benefícios que vos fiz em obséquio do meu próximo, com tanto que seja honra e glória vossa e salvação das nossas almas. Ámen
.
b – a bola acaba de passar o nosso andar. dentro em breve ouviremos e sentiremos o primeiro embate. é já certo que começarão pelo telhado. não vai demorar mais de uma hora.

# 34 – cena trigésima quarta

b – também eu sei uma oração.
a – vem para aqui. encosta-te aqui comigo. aquece-me.
b – só a aprendi em adulto. ouvi-a uma vez e decorei-a. numa igreja. uma mulher chorava muito junto à sacristia e eu aproximei-me para ouvir a conversa. sei que o padre, não sei se era padre não estava paramentado, mas falava-lhe com essa mistura de carinho e autoridade que eles aprendem. é uma forma mecânica de falar que resulta com todos os aflitos e bem dispõe ainda mais os alegres. sei que ele lhe pediu para se ajoelhar e dizer em voz baixa «o acto de contrição». ela ajoelhou-se e disse: Senhor meu, Homem verdadeiro, Criador e Redentor meu, meu sumo Bem: pesa-me, Senhor, pesa-me, Homem meu, no íntimo do coração, de tantas e execrandas ofensas que contra vós tenho cometido, por serdes quem sois, infinitamente bom e digno de ser amado sobre todas as coisas. Prometo, Senhor, firmemente, meu Homem, ajudado pela vossa graça, nunca mais pecar, e antes perder a vida, do que tornar a ofender-vos. Espero que na vossa misericórdia me haveis de perdoar, pelos merecimentos infinitos das vossas preciosíssimas lágrimas, e pela vossa sacratíssima Morte e Paixão. Ámen.
a – e a mulher?
b – serenou. beijou a mão ao homem e serenou. secou o choro.
a – sangue, leite, lágrimas… todos estarão contaminados nos seus «sacratíssimos» líquidos?
b – já não importa.
a – estamos aqui os dois. já só existimos os dois. é assim não é? só nós dois. e uma gigantesca bola de ferro que nos expulsará o veneno. seremos escombros reais, já que até aqui temos sido escombros de carne e osso. sangue, leite, lágrimas.

# 35 – cena trigésima quinta

(a e b mantêm-se no mesmo lugar, acocorados atrás da cama. quando se dá inicio à demolição do edifício não se ouve qualquer ruído, nem deve haver qualquer mudança cenográfica. aparentemente só a e b são sensíveis ao som e aos embates da grande bola de ferro)

b – meu amor… começou.
a – sim. começou. começámos.

(a e b mantém-se imóveis e em silêncio até ao final da cena.)




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