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terça-feira, março 14, 2006

tratado secreto do teatro # 35-40 

# 36 – cena trigésima sexta

(a e b estão na cama e aí permanecerão até à cena 40.)

a – o telhado já está.
b – três pancadas.
a – quantas toneladas terá aquela esfera?
b – não faço ideia. suficientes para que com um pequeno balanço e três embates consiga demolir toda a cobertura de um prédio.
a – quero chá.
b – não há tempo para aquecer a água.
a – bebe-se água e finge-se que é chá.
b – então finge também a água que finge ser chá.
a – fingimos os dois. §

§ estamos a beber água e esta água é chá. a água morna, chá de perpétuas-roxas. temos de ter a voz clara, não é querido?
b – sim, morna… e nós… chá de sol… perpétuas-roxas… voz clara. visão aberta. pele descoberta.
a – realmente este prédio estava a precisar de ser demolido. olha a humidade no tecto, as vigas a dobrarem-se. quantos anos tem isto?
b – cinquenta, sessenta. podia ser restaurado.
a – não, por mim acho que o melhor é mesmo ir abaixo. limpar este caudal de vidas aqui acontecidas. sabes o que vão pôr aqui?
b – não faço ideia.
a – tenho dores.
b – onde?
a – nas pernas, no peito, na boca, nos dedos, nos olhos.
b – queres ir sangrar à casa de banho?
a – não, quero sangrar aqui, ao pé de ti.
b – então sangra querida. põe-te de lado. volta a boca para o meu peito e deixa que saia. eu recebo-te, beijo-te o sangue… §

§ isso meu tesouro, deita essas dores fora. eu recebo-te. recebo-te e sinto-me belo. feliz por receber este mar-de-mel-vermelho. não pares, não te contenhas, se te contiveres as dores voltarão. é preciso que estejas bem quando aquela esfera celeste entrar por estas paredes para nos levar. §

§ sangue e corpo misturados numa só pele. agora descansa um instante. deito-me sobre ti. aqueço-te. estás melhor?
a – sim. já estou bem. foi qualquer coisa que comi ou bebi. talvez o chá.

# 37 – cena trigésima sétima

a – já está por cima de nós.
b – a seguir é o nosso piso.
a – e as plantas?
b – vão connosco.
a – e a espada e o cálice?
b – voltam ao berço.
a – e esta cama?
b – será pó, como nós. e no pó desta cama estarão sempre vivas as partículas do nosso… de nós… disto. de alguma coisa que tenha a nossa marca inscrita e seja livre da doença. poeiras que não poderão contaminar mais nada.
a – tenho pena que se parta o espelho da casa de banho.
b – os espelhos são eternos. todos os espelhos. multiplicam-se como células. se estilhaças um espelho ficas com dezenas de espelhos.
a – não tens pena de nada do que aqui está e se vai ser destruído?
b – nada. até este estuque e bocados de parede que caem com a trepidação dos embates nos outros andares me faz sentir aliviado.
a – sentes-te aliviado?
b – sim.
a – obrigada por me teres deixado ficar aqui enquanto sangrava. obrigada por me teres recebido no teu peito, no teu rosto, até bebeste este inferno que tenho dentro de mim.
b – nada para agradecer. aqui, sobre ti, sinto-me os poros a abrirem-se de tamanha liberdade.
a – o ruído da maquina abrandou. é o tempo de um recuo da esfera e depois nós.
b – dez minutos. no máximo.
a – lembraste do poema?
b – qual?
a – rilke? o que tinhas escolhido para o último segundo. lembras-te? tens dez minutos para o dizer e partimos.

# 38 – cena trigésima oitava

b – «CAVALGA O CAVALEIRO EM AÇO NEGRO
PARA O MUNDO SUSSURRANTE.
E LÁ FORA HÁ TUDO: DIA E VALE
E AMIGO E INIMIGO E O JANTAR NA SALA
E O MAIO E A DONZELA E O BOSQUE E O GRAAL,
E O PRÓPRIO DEUS SURGE MILHARES DE VEZES
À BEIRA DOS CAMINHOS.

MAS DENTRO DO ARNÊS DO CAVALEIRO,
ATRÁS DOS MAIS ESCUROS ANÉIS,
A MORTE ESPERA ACOCORADA E MEDITA E MEDITA:
– QUANDO SALTARÁ A LÂMINA
POR SOBRE A GRANDE FÉRREA,
A ESTRANHA LÂMINA DA LIBERTAÇÃO,
QUE VENHA BUSCAR-ME DESTE ESCONDERIJO
ONDE PASSO JÁ TANTOS DIAS DOBRADA, –
QUE EU ME POSSA ESTENDER AO COMPRIDO
E BRINCAR
E CANTAR.


Rainer Maria Rilke - «O Cavaleiro»
«O Livro das Imagens» – 1902, tradução de Paulo Quintela


# 39 – cena trigésima nona

a – ainda bem que te conseguiste recordar do poema.
b – não é recordar, ele está dentro de mim desde que decidimos abandonar-nos a esta esfera de salvação… ou mesmo antes, quando soubemos da doença… ou ainda antes, no café, tu me levaste para dentro de ti. se tivéssemos usado a espada e o cálice tê-lo-ia dito antes de me cortar, antes de te cortar. §

§ querida, ouve… é o recuo final da máquina. a bola ganha balanço. faltam uns segundos. deixemos tudo. é preciso estarmos concentrados. enrola-te em mim. vamos também fazer de nós uma esfera. se aquela, de ferro, é celeste, que a dos nossos corpos seja terrestre. §

§ nem mais uma palavra?
a – nem mais uma palavra. um grito?
b – não, o grito seremos nós a conquistar este milagre. a casa ficará vazia. tudo ficará vazio. vão. o grito será a conquista da vacuidade absoluta. o fim da doença. «ele» vai ficar desapontado. imagino a sua pele branca, translúcida, os cabelos e as barbas loiras, como se estivessem a derreter-se. «ele» queria ver-nos no limite. na sombra de nós próprios. mas só haverá luz e o limite não se mede. agora sim, amor, voltamos ao princípio.
a – nem mais uma palavra.
b – enrola-te em mim.

# 40 – cena quadragésima

(sobre a cama, a e b, formam com os corpos uma esfera. a cena passa a ser iluminada apenas por luz negra. a princípio o silêncio é total. a luz apaga-se, escuro absoluto, ouve-se o «sanctus» do requiem de domingos bomtempo.)

fim

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