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terça-feira, março 07, 2006

tratado secreto do teatro # 26 

# 26 – cena vigésima sexta

(c fuma o cigarro junto da janela. a luz laranja dissipa-se à medida que uma luz branca, florescente, domina o ambiente. c mantém a cor violeta, mas mais ténue. c ouve a voz feminina de d mas não o vê. a dorme.)

c – escusavas de a ter feito passar por aquilo.
d – ela confia demasiado em ti.
c – confia nela. é forte. e é disso que tens medo.
d – pois talvez e o medo faz-me ser cauteloso. fazê-la reviver o nosso primeiro encontro trouxe-a de volta à insegurança. até se aproximou de ti. confessa que não esperavas. já não julgavas possível que ela voltasse a aninhar-se no teu peito, adormecer com as tuas carícias. és capaz de negar que gostaste? eu sei que sim. como sei que adoraste limpá-la. fizeste-o com a doçura de um verdadeiro amante.
c – ela não tinha sangue nenhum.
d – vá. então? não vais fraquejar agora, tens ido tão bem. és um actor em ascensão. os teus poderes são maravilhosos. és um cavaleiro! não a vais desiludir agora. enquanto assumires essa forma estarás eternamente dentro dela. conseguiste uma coisa maravilhosa, pela primeira vez ela sentiu a tua presença etérea estando tu a usar o outro corpo. já falta tão pouco…
c – é a ela ou a mim que queres?
d – eu? mas eu não vos quero para nada. cito-te: «é o teatro que me interessa». estou-me nas tintas para as vossas almas. é realmente o teatro que me interessa.

(c perde lentamente a sua coloração violeta, retoma o corpo de b. a luz branca torna-se intensa, como um imenso frigorifico, luz gelada, ambiente gelado)

b – e não chega já?
d – não. é preciso limite. quero ver o limite. nem tu nem ela chegaram ao limite. ainda. há quase vinte e quatro horas que estão no limiar desse limite, mas ainda lá não chegaram. será preciso repetir minha besta, quero assistir ao teatro da vossa desagregação. ao momento sem retorno em que já não possam voltar atrás no corpo decomposto, na alma desfeita. no fim quero acender as luzes da plateia, ver, os rostos patéticos deste público, enojado com a vossa flagelação. não te esqueças nunca: eu sou o princípio e o fim. o alfa e o ómega. a cruz da salvação. o anjo caído. o céu às arrecuas. volta para o lado dela. beija-a enquanto dorme. faz-lhe o que nunca tiveste coragem de fazer. faz-lhe o que nunca tiveste coragem de lhe pedir. garanto-te ela não acordará enquanto eu não a despertar. já. assalta-a. consome-a perante o pai e mãe de todas as coisas que existiram, existem e existirão. quando ela activar apenas se lembrará do «sonho com o diabo». tudo o que fizeres e deixar marcas ela só relacionará comigo. o salvador. verás como aquele homem branco e loiro que a contaminou naquele dia estará presente em cada dor, em cada ferida, interior ou exterior. e tu, tu meu querido, serás novamente o colo quente que ela tanto precisará. não é o teu desejo supremo? vai agora. é a hora do supremo sacro-ofício. confia e para ti acabará o limbo. está tudo nas tuas mãos.

(b aproxima-se da cama. retira a manta deixando a completamente vulnerável. deita-se sobre ela. a luz apaga-se com o estrondo de uma lâmpada a fundir-se. no escuro b grita.)

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