terça-feira, março 07, 2006
tratado secreto do teatro # 24
# 24 – cena vigésima quarta cena
a – é mais simples se te disser que foi um sonho. quando contamos alguma coisa assim… simplifica-se tudo se dissermos que foi um sonho…
b – mas não foi?
a – foi.
b – foi um sonho. e como foi?
a – queres saber como foi o sonho ou como era o diabo?
b – não vai dar ao mesmo?
a – não, porque a princípio o sonho… no sonho… não havia diabo.
b – tu achas que o diabo existe, assim mesmo, sendo aquilo que o comum dos crentes pensa que é?
a – como é que o comum dos crentes pensa que o diabo é?
b – a grande força do mal. o anjo revoltado. aquele que foi expulso por deus e jurou vingança. o que possui as pessoas e lhes tira a alma para se alimentar e crescer em força e poder. aquele que toma várias formas, que aparece ao santos e os tenta. essas coisas.
a – sim. sei. existe.
b – mas foi só um sonho. ou não foi só um sonho?
a – foi um sonho. mas sei.
b – sabes como? não basta sonhar… talvez baste… que sei eu destas coisas. e de todas. conta-me então. o sonho e o diabo, ou o diabo e o sonho. conta o que quiseres.
a – há dias em que tudo é tão perfeito que nos tornamos vulneráveis, benignamente vulneráveis, às coisas mais simples. dias em que acordamos com o sol em nós. dias em que o sol acorda connosco dentro dele. dias de luz perfeita. dias em que a harmonia do corpo é máxima, não o sentimos, percebes. não sentir o corpo é sublime. como se tivéssemos tomado uma droga muito poderosa que nos provocasse a mais excelsa das sensações. são dias raros estes. ainda os haverá? às vezes penso que não somos só nós que nos estamos a desagregar desta maneira tremenda. mas pode ser, pode ser que reste alguém a quem estes dias ainda aconteçam. num desses dias resplandecentes de vida, sonhei que tinha fugido da redacção do jornal para ir para a praia. gozar. ter prazer. dar-me ao prazer. simplesmente estar ali. era inverno no sonho. praia deserta. ninguém à volta. ninguém no mar. só eu e os anjos. despi-me e fiquei a sentir a areia na pele. sem frio nem calor. puro deleite. puro deleite na eternidade do tempo dos sonhos.
b – tenho a certeza que não foi sonho. viveste isso tudo não foi?
a – vivi. um sonho. um sonho!
b – um sonho… não duvido…
a – … passou um barco ao longe que depois ficou perto e ainda mais perto, tão perto que de repente estava no barco e a areia é que estava longe. um barco sem ninguém. nem marinheiros, nem pescadores, nem rumo. andava aos círculos. círculos perfeitos. sentia-me completamente a levitar. levada a um céu só meu. ficou verão, um sol muito forte, senti a pele a queimar, na areia da praia ficou repleta de gente. o barco sempre às voltas. bruscamente o idílio em que tinha estado começou a desfazer-se. comecei a sentir-me enjoada com os círculos do barco. do calor na pele passei a sentir um frio tremendo. queria tapar-me vestir-me, mas não havia nada com que me pudesse aquecer. o barco tornou-se feio. perdeu a cor. perdeu o tamanho. desapareceu. fiquei só, numa água lodosa. via toda aquela gente ao longe mas não me saía um som da garganta. tentei nadar mas como o barco só produzia movimentos circulares.. não saía do sítio… §§§
b – estás bem, o que tens? não consegues contar o resto? não contes. abraça-te a mim. estás tão quente. tens febre?
a - … desisti de nadar. pensei na felicidade que seria afogar-me. preparei-me para me afogar. apesar de tudo ainda sentia alguma daquela paz benigna do inicio. foi aí que uma força contrária começou a tomar conta de mim. se me tivesse afogado ter-me-ia afogado ainda com alguns resquícios de harmonia. mas não, o meu corpo foi puxado para cima. fiquei na vertical. contra a gravidade, contra a força da água. como se estivesse de pé. olhei para a areia e estava tudo deserto. outra vez inverno. senti alguém atrás de mim. falava muito baixo. quase em surdina: «o teu tempo não acaba aqui. a tua condenação não acaba aqui». consegui voltar-me e ver-lhe o rosto. era pálido, com os cabelos pelos ombros, muito loiro, muito branco, uma barba ainda mais loira. sorria e era um sorriso doce. tomou-me contra ele. percorreu o meu corpo com as mãos. as pernas. entrou em mim. enquanto ele me tinha a água tornava-se cada vez mais gelada e o corpo dele cada a arder. voltou a repetir agora em voz muito alta: «o teu tempo ainda não acabou. a tua condenação ainda não acabou». senti-me empurrada, cuspida do mar. dei por mim na areia. absolutamente serena. como se nada se tivesse passado. só um fio de sangue que me escorria pelas pernas testemunhava aquele encontro. tudo parecia igual, mas já não era a benignidade de antes que me habitava. o contrário. sentia uma corrente de luz negra a percorrer-me a espinha. §
§ acordei. não há mais nada para contar.
b – mesmo que houvesse… deixa-me agarrar-te bem, estás toda a tremer. tens que te acalmar. tu mesmo me disseste, foi um sonho.
a – vê querido, olha para as minhas pernas, vê como voltou a escorrer de mim o sangue daquele dia.
a – é mais simples se te disser que foi um sonho. quando contamos alguma coisa assim… simplifica-se tudo se dissermos que foi um sonho…
b – mas não foi?
a – foi.
b – foi um sonho. e como foi?
a – queres saber como foi o sonho ou como era o diabo?
b – não vai dar ao mesmo?
a – não, porque a princípio o sonho… no sonho… não havia diabo.
b – tu achas que o diabo existe, assim mesmo, sendo aquilo que o comum dos crentes pensa que é?
a – como é que o comum dos crentes pensa que o diabo é?
b – a grande força do mal. o anjo revoltado. aquele que foi expulso por deus e jurou vingança. o que possui as pessoas e lhes tira a alma para se alimentar e crescer em força e poder. aquele que toma várias formas, que aparece ao santos e os tenta. essas coisas.
a – sim. sei. existe.
b – mas foi só um sonho. ou não foi só um sonho?
a – foi um sonho. mas sei.
b – sabes como? não basta sonhar… talvez baste… que sei eu destas coisas. e de todas. conta-me então. o sonho e o diabo, ou o diabo e o sonho. conta o que quiseres.
a – há dias em que tudo é tão perfeito que nos tornamos vulneráveis, benignamente vulneráveis, às coisas mais simples. dias em que acordamos com o sol em nós. dias em que o sol acorda connosco dentro dele. dias de luz perfeita. dias em que a harmonia do corpo é máxima, não o sentimos, percebes. não sentir o corpo é sublime. como se tivéssemos tomado uma droga muito poderosa que nos provocasse a mais excelsa das sensações. são dias raros estes. ainda os haverá? às vezes penso que não somos só nós que nos estamos a desagregar desta maneira tremenda. mas pode ser, pode ser que reste alguém a quem estes dias ainda aconteçam. num desses dias resplandecentes de vida, sonhei que tinha fugido da redacção do jornal para ir para a praia. gozar. ter prazer. dar-me ao prazer. simplesmente estar ali. era inverno no sonho. praia deserta. ninguém à volta. ninguém no mar. só eu e os anjos. despi-me e fiquei a sentir a areia na pele. sem frio nem calor. puro deleite. puro deleite na eternidade do tempo dos sonhos.
b – tenho a certeza que não foi sonho. viveste isso tudo não foi?
a – vivi. um sonho. um sonho!
b – um sonho… não duvido…
a – … passou um barco ao longe que depois ficou perto e ainda mais perto, tão perto que de repente estava no barco e a areia é que estava longe. um barco sem ninguém. nem marinheiros, nem pescadores, nem rumo. andava aos círculos. círculos perfeitos. sentia-me completamente a levitar. levada a um céu só meu. ficou verão, um sol muito forte, senti a pele a queimar, na areia da praia ficou repleta de gente. o barco sempre às voltas. bruscamente o idílio em que tinha estado começou a desfazer-se. comecei a sentir-me enjoada com os círculos do barco. do calor na pele passei a sentir um frio tremendo. queria tapar-me vestir-me, mas não havia nada com que me pudesse aquecer. o barco tornou-se feio. perdeu a cor. perdeu o tamanho. desapareceu. fiquei só, numa água lodosa. via toda aquela gente ao longe mas não me saía um som da garganta. tentei nadar mas como o barco só produzia movimentos circulares.. não saía do sítio… §§§
b – estás bem, o que tens? não consegues contar o resto? não contes. abraça-te a mim. estás tão quente. tens febre?
a - … desisti de nadar. pensei na felicidade que seria afogar-me. preparei-me para me afogar. apesar de tudo ainda sentia alguma daquela paz benigna do inicio. foi aí que uma força contrária começou a tomar conta de mim. se me tivesse afogado ter-me-ia afogado ainda com alguns resquícios de harmonia. mas não, o meu corpo foi puxado para cima. fiquei na vertical. contra a gravidade, contra a força da água. como se estivesse de pé. olhei para a areia e estava tudo deserto. outra vez inverno. senti alguém atrás de mim. falava muito baixo. quase em surdina: «o teu tempo não acaba aqui. a tua condenação não acaba aqui». consegui voltar-me e ver-lhe o rosto. era pálido, com os cabelos pelos ombros, muito loiro, muito branco, uma barba ainda mais loira. sorria e era um sorriso doce. tomou-me contra ele. percorreu o meu corpo com as mãos. as pernas. entrou em mim. enquanto ele me tinha a água tornava-se cada vez mais gelada e o corpo dele cada a arder. voltou a repetir agora em voz muito alta: «o teu tempo ainda não acabou. a tua condenação ainda não acabou». senti-me empurrada, cuspida do mar. dei por mim na areia. absolutamente serena. como se nada se tivesse passado. só um fio de sangue que me escorria pelas pernas testemunhava aquele encontro. tudo parecia igual, mas já não era a benignidade de antes que me habitava. o contrário. sentia uma corrente de luz negra a percorrer-me a espinha. §
§ acordei. não há mais nada para contar.
b – mesmo que houvesse… deixa-me agarrar-te bem, estás toda a tremer. tens que te acalmar. tu mesmo me disseste, foi um sonho.
a – vê querido, olha para as minhas pernas, vê como voltou a escorrer de mim o sangue daquele dia.